La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

A imagem que queima em Blow-up, de Michelangelo Antonioni, por Alexandre Manoel Nascimento

 



 

Em tradução literal, blow-up significa explodir. No filme de Michelangelo Antonioni, o termo- que é também o título da obra- faz referência à técnica utilizada na fotografia analógica de ampliação e distorção de imagens. A cada ampliação da mesma, embora a técnica permita enxergar com maior aumento aspectos específicos da captura em questão, a tendência é estar cada vez mais distante da sua impressão original, que por si só já está, evidentemente, distante do instante captado.
É esse processo de manipulação imagética a figura central do filme de Antonioni, que conta a história de um fotografo, interpretado por David Hemmings, que acredita ter capturado um assassinato em uma sessão de fotos em um parque de Londres. Por meio da investigação utilizando a já citada técnica na foto que tirou, o protagonista acaba se vendo perdido entre o que é realidade e o que é alteração dessa mesma realidade por meio da captura de imagem- teria o assassinato acontecido, de fato, ou o borrão que acredita ser um corpo na imagem não é nada além do fruto de uma ficção arquitetada por sua mente?
Didi-Huberman nos diz que “a imagem queima: ela se inflama e, em contrapartida, nos consome”[1]. É essa relação entre a chama da imagem e a afetação que a mesma causa ao personagem do fotógrafo: a combustão do título encontra vazão justamente no modo com que consome a conduta ética do personagem.
Pois se percebermos, é a partir da imagem da fotografia no parque que seu questionamento inicia. É na alteração da imagem, na sua manipulação, no seu incêndio, como diria Huberman, que o possível corpo que jaz aparece. Ao passo que o filme avança, vemos que o assassinato, sem provas concretas de que de fato aconteceu, antes que nada, só pode existir de fato neste mundo da imagem mesmo, da fotografia. “A imagem em contato com o real — uma fotografia, por exemplo — nos revela ou nos oferece unívocamente a verdade dessa realidade? Claro que não.”[2]
Pode-se ler, então, no filme de Antonioni, o ponto de partida de toda ficção, como nos lembra o Blanchot de O livro porvir[3]: as narrativas de ficção só podem existir em um tempo outro; não este, do aqui e agora, mas um tempo em suspensão ainda porvir, o que Blanchot chama de tempo da narrativa- um entretempo de passagem do real para o imaginário. “Assim, a narrativa deixa de ser o relato de um acontecimento e se torna ela mesma acontecimento, possibilidade de acontecimento de um tempo aberto”[4].
Mantendo em jogo essa ideia, Blanchot cita o canto das sereias para descrever o fenômeno da narrativa- as sereias que Ulisses enfrenta para retornar a sua origem e sua casa. Para o autor, o canto seria o chamado da literatura, da palavra, como a principal força que faz e rege o ato da escrita. Mas a partir do momento em que o jogo se inicia, a narrativa se apresenta como “intangível, pois assim se constitui, para ele (Blanchot): sua marca é a impossibilidade”[5]- o tempo aberto.
Pela impossibilidade de se encerrar, de estar sempre nesta suspensão temporal, a literatura, a fotografia e as narrativas que podem ser extraídas da imagem, do som e da palavra, são uma forma de ampliação (o blow-up na foto do filme) e contato com a realidade. Nessa nova realidade decorrente do contato, pela capacidade de alteração do retrato- do processo de ampliação da foto- a verdade não se apresenta mais como o objetivo final, mas também sim como o extremo oposto de um desencadeamento que tem no processo de embate entre real x imagem a sua potência. Vemos isso, em Blow-up, em que a verdade não é alcançada por Thomas ao fim do filme, mas o que temos é mais uma confirmação do jogo de suspensão entre a possibilidade e o acontecimento.
 
Então Proust não diz a verdade? Mas ele não nos deve essa verdade, e seria mesmo incapaz de dizê-la. Ele só poderia exprimi-la, torná-la real, concreta e verdade, projetando-a no próprio tempo em que ela é realizada e do qual a obra depende: o tempo da narrativa na qual, embora ele diga ‘eu’, não é mais o Proust real nem o Proust escritor que tem o poder de falar, mas sua metamorfose na sombra que é o narrador tornado personagem do livro, o qual, na narrativa, escreve uma narrativa que é a própria obra e produz, por sua vez, as outras metamorfoses dele mesmo que são os diversos ‘eus’ cujas experiências ele conta.[6]
 
É no processo de metamorfose que paira a luta de Thomas, o protagonista de Blow Up. A fotografia não trará a verdade que ele procura. Durante todo o processo de investigação, não há uma resposta concreta, porque a foto não condiz mais com o tempo real que Thomas procura recriar. Ela é uma criação em si mesma de um tempo outro. E Antonioni, ao não nos dar uma resposta concreta sobre haver de fato ou não um assassinato, parece corroborar desse pensamento.
Em seus livros sobre cinema, Deleuze aponta para esse tempo outro a partir da imagem cinematográfica. No capítulo Potências do falso de Imagem-tempo[7], ele monta o conceito de narração falsificante. Para tal, ele faz uma diferenciação entre imagem, descrição e narrativas orgânica e cristalina. Nas primeiras, pressupõe-se uma interdependência do objeto, um tempo cronológico, uma ação com maior “importância” do que o tempo. Já nas imagens, descrições e narrativas cristalinas, esses pólos colocados como opostos na imagem orgânica são agora um “circuito em que o real e o imaginário, o atual e o virtual, correm um atrás do outro”[8]. Sobre a narração cristalina, ainda, Deleuze coloca que “o que caracteriza esses espaços é que seus caracteres não podem ser explicados de modo apenas espacial”[9], colocando a noção de um tempo crônico, não cronológico, “que produz movimentos necessariamente ‘anormais’, essencialmente ‘falsos’”[10].
É aí que Deleuze sente a necessidade de trazer, então, esse conceito de narração falsificante, com foco também no tempo e de que ele é o causador do que chama de crise da noção de verdade. Desse emaranhado, Deleuze aponta o tempo como labirinto a falsificação como um novo estatuto da narração, que deixaria de buscar justamente a verdade para dar atenção ao falso, à bifurcação dos labirintos do tempo, às possibilidades. Daí todo esse jogo entre pontas de presentes desatualizados, lençóis de passados virtuais, presentes incompossíveis, passados não necessariamente verdadeiros.
As ideias de Deleuze convergem com a trama de Antonioni se levarmos em consideração que, assim como no cinema, a fotografia é um registro maleável do “real”, uma captura de um momento ímpar que não tornará a acontecer senão nesse registro, que passou por escolhas, voluntárias ou involuntárias, e tem no seu resultado enquadramento, luz e composição específica.
E, por meio da técnica, Thomas pode alterar o quanto quiser esse registro. Pode ser cada vez mais consumido por ele até aceitar, como apresenta o fim do filme, esse corrompimento do real como uma forma de se inserir no jogo de ficção que usamos para viver e nos inserir na sociedade- as máscaras sociais se apresentam ao longo de todo o filme, colocando em voga também personagens da indústria da moda, por exemplo, em que vestidos e roupas são mascaramentos das quais se servem as modelos para mostrar uma narratividade outra.
A crítica vai justamente neste sentido, converge nessa possibilidade de contato. Ainda que o filme tenha sido lançado em 1966, os pontos de contato entre a trama de Antonioni encontram correspondência com o século 21, ainda se traçarmos paralelos com a morte da verdade apontada por Kakutani[11] ou ainda, em uma linha paralela, a modernidade líquida da qual fala Bauman[12]. Se na fotografia de Blow-Up Thomas pode ou não interpretar o registro como prova de um assassinato, essas duas alternativas parecem pálidas hoje em relação ao que temos na era das redes sociais, em que pesa justamente o consumo da imagem mais do que qualquer tipo de processo que possa surgir dela. A virtualidade da ficção está cada vez mais incrustada na cultura, agora até em níveis individuais, como permitem estas redes online, mas não só neste âmbito: “Nunca a imagem se impôs com tanta força em nosso universo estético, técnico, cotidiano, político, histórico”[13].
A resposta para esse desvio que parece assolar a imagem no agora está na luta de Thomas com sua fotografia. Na cena final de Blow-up, o protagonista volta ao parque em que fez o registro e lá encontra um grupo de artistas de circo que parecem especializados em mímica jogando uma partida de tênis- com exceção de que, nesta partida, não há bola nem raquetes. O jogo se dá no campo do imaginário, nessa temporalidade outra- na partida de tênis em questão, se dá no campo da performance, da arte. É neste espaço em que a imagem pode ser possibilidade antes que seja verdade encerrada.
Os apontamentos de Antonioni que permitem a leitura de que a imagem parece, mais do que o conceito um tanto sem fronteiras de real, bastar, permite, ainda que a negatividade do termo falso possa trazer uma herança ruim a esse desvio, que traçamos uma nova historicidade com essas narrativas que ficam à margem, que precisam de ampliação- da combustão- para conseguir abalar o processo histórico com sua potência narrativa. Ainda que com cuidado, o que Thomas parece encontrar, ao fim, é que, para o bem, a verdade pode ser volátil enquanto a imagem estiver queimando.

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Como citar: NASCIMENTO, Alexandre Manoel. "A imagem que queima em Blow-up, de Michelangelo Antonioni", In "Literatura Italiana Traduzida", v. 2, n. 1, jan. 2021. 

Disponível em:https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/219119




[1] DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem queima. Curitiba: Medusa, 2018.
[2] DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. In: Pós: Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 204-219. nov. 2012. Acesso em 15 nov. 2018.
[3] BLANCHOT, Maurice. O livro porvir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[4] VARGAS, Alexandre Linck. A invenção dos quadrinhos: teoria e crítica da sarjeta. Tese (doutorado em Literatura)- Pós-Graduação em Literatura, Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, p. 239, 2015.
[5] BLANCHOT, Maurice. O livro porvir, op. cit.
[6] BLANCHOT, Maurice. O livro porvir, op.cit.
[7] DELEUZE, Gilles. Imagem-tempo: Cinema 2. São Paulo. Brasiliense, 1990.
[8] DELEUZE, Gilles. Imagem-tempo: Cinema 2, op. cit.
[9] DELEUZE, Gilles. Imagem-tempo: Cinema 2, op. cit.
[10] DELEUZE, Gilles. Imagem-tempo: Cinema 2, op. cit.
[11] KAKUTANI, Michiko. A morte da verdade. Rio de Janeiro. Intrínseca, 2018.
[12] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro. Editora Zahar, 2001.
[13] DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem queima, op. cit.