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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Alexandre Manoel Nascimento
Cinema
Michelangelo Antonioni
em
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Em tradução literal, blow-up significa explodir. No filme de
Michelangelo Antonioni, o termo- que é também o título da obra- faz referência
à técnica utilizada na fotografia analógica de ampliação e distorção de
imagens. A cada ampliação da mesma, embora a técnica permita enxergar com maior
aumento aspectos específicos da captura em questão, a tendência é estar cada
vez mais distante da sua impressão original, que por si só já está,
evidentemente, distante do instante captado.
É esse processo de manipulação
imagética a figura central do filme de Antonioni, que conta a história de um
fotografo, interpretado por David Hemmings, que acredita ter capturado um
assassinato em uma sessão de fotos em um parque de Londres. Por meio da
investigação utilizando a já citada técnica na foto que tirou, o protagonista
acaba se vendo perdido entre o que é realidade e o que é alteração dessa mesma
realidade por meio da captura de imagem- teria o assassinato acontecido, de
fato, ou o borrão que acredita ser um corpo na imagem não é nada além do fruto
de uma ficção arquitetada por sua mente?
Didi-Huberman nos diz que “a imagem
queima: ela se inflama e, em contrapartida, nos consome”[1]. É essa
relação entre a chama da imagem e a afetação que a mesma causa ao personagem do
fotógrafo: a combustão do título encontra vazão justamente no modo com que
consome a conduta ética do personagem.
Pois se percebermos, é a partir da
imagem da fotografia no parque que seu questionamento inicia. É na alteração da
imagem, na sua manipulação, no seu incêndio, como diria Huberman, que o
possível corpo que jaz aparece. Ao passo que o filme avança, vemos que o
assassinato, sem provas concretas de que de fato aconteceu, antes que nada, só
pode existir de fato neste mundo da imagem mesmo, da fotografia. “A imagem em
contato com o real — uma fotografia, por exemplo — nos revela ou nos oferece
unívocamente a verdade dessa realidade? Claro que não.”[2]
Pode-se ler, então, no filme de
Antonioni, o ponto de partida de toda ficção, como nos lembra o Blanchot de O livro porvir[3]: as
narrativas de ficção só podem existir em um tempo outro; não este, do aqui e
agora, mas um tempo em suspensão ainda porvir, o que Blanchot chama de tempo da
narrativa- um entretempo de passagem do real para o imaginário. “Assim, a
narrativa deixa de ser o relato de um acontecimento e se torna ela mesma
acontecimento, possibilidade de acontecimento de um tempo aberto”[4].
Mantendo em jogo essa ideia,
Blanchot cita o canto das sereias para descrever o fenômeno da narrativa- as
sereias que Ulisses enfrenta para retornar a sua origem e sua casa. Para o
autor, o canto seria o chamado da literatura, da palavra, como a principal
força que faz e rege o ato da escrita. Mas a partir do momento em que o jogo se
inicia, a narrativa se apresenta como “intangível, pois assim se constitui,
para ele (Blanchot): sua marca é a impossibilidade”[5]- o tempo
aberto.
Pela impossibilidade de se encerrar,
de estar sempre nesta suspensão temporal, a literatura, a fotografia e as
narrativas que podem ser extraídas da imagem, do som e da palavra, são uma
forma de ampliação (o blow-up na foto do filme) e contato com a realidade.
Nessa nova realidade decorrente do contato, pela capacidade de alteração do
retrato- do processo de ampliação da foto- a verdade não se apresenta mais como
o objetivo final, mas também sim como o extremo oposto de um desencadeamento
que tem no processo de embate entre real x imagem a sua potência. Vemos isso,
em Blow-up, em que a verdade não é
alcançada por Thomas ao fim do filme, mas o que temos é mais uma confirmação do
jogo de suspensão entre a possibilidade e o acontecimento.
Então Proust não diz a verdade? Mas ele não nos deve essa
verdade, e seria mesmo incapaz de dizê-la. Ele só poderia exprimi-la, torná-la
real, concreta e verdade, projetando-a no próprio tempo em que ela é realizada
e do qual a obra depende: o tempo da narrativa na qual, embora ele diga ‘eu’,
não é mais o Proust real nem o Proust escritor que tem o poder de falar, mas
sua metamorfose na sombra que é o narrador tornado personagem do livro, o qual,
na narrativa, escreve uma narrativa que é a própria obra e produz, por sua vez,
as outras metamorfoses dele mesmo que são os diversos ‘eus’ cujas experiências
ele conta.[6]
É no processo de metamorfose que
paira a luta de Thomas, o protagonista de Blow
Up. A fotografia não trará a verdade que ele procura. Durante todo o
processo de investigação, não há uma resposta concreta, porque a foto não
condiz mais com o tempo real que Thomas procura recriar. Ela é uma criação em
si mesma de um tempo outro. E Antonioni, ao não nos dar uma resposta concreta
sobre haver de fato ou não um assassinato, parece corroborar desse pensamento.
Em seus livros sobre cinema, Deleuze
aponta para esse tempo outro a partir da imagem cinematográfica. No capítulo Potências do falso de Imagem-tempo[7],
ele monta o conceito de narração falsificante. Para tal, ele faz uma
diferenciação entre imagem, descrição e narrativas orgânica e cristalina. Nas
primeiras, pressupõe-se uma interdependência do objeto, um tempo cronológico,
uma ação com maior “importância” do que o tempo. Já nas imagens, descrições e
narrativas cristalinas, esses pólos colocados como opostos na imagem orgânica
são agora um “circuito em que o real e o imaginário, o atual e o virtual,
correm um atrás do outro”[8].
Sobre a narração cristalina, ainda, Deleuze coloca que “o que caracteriza esses
espaços é que seus caracteres não podem ser explicados de modo apenas espacial”[9],
colocando a noção de um tempo crônico, não cronológico, “que produz movimentos
necessariamente ‘anormais’, essencialmente ‘falsos’”[10].
É aí que Deleuze sente a necessidade
de trazer, então, esse conceito de narração falsificante, com foco também no
tempo e de que ele é o causador do que chama de crise da noção de verdade.
Desse emaranhado, Deleuze aponta o tempo como labirinto a falsificação como um
novo estatuto da narração, que deixaria de buscar justamente a verdade para dar
atenção ao falso, à bifurcação dos labirintos do tempo, às possibilidades. Daí
todo esse jogo entre pontas de presentes desatualizados, lençóis de passados
virtuais, presentes incompossíveis, passados não necessariamente verdadeiros.
As ideias de Deleuze convergem com a
trama de Antonioni se levarmos em consideração que, assim como no cinema, a
fotografia é um registro maleável do “real”, uma captura de um momento ímpar
que não tornará a acontecer senão nesse registro, que passou por escolhas,
voluntárias ou involuntárias, e tem no seu resultado enquadramento, luz e
composição específica.
E, por meio da técnica, Thomas pode
alterar o quanto quiser esse registro. Pode ser cada vez mais consumido por ele
até aceitar, como apresenta o fim do filme, esse corrompimento do real como uma
forma de se inserir no jogo de ficção que usamos para viver e nos inserir na
sociedade- as máscaras sociais se apresentam ao longo de todo o filme,
colocando em voga também personagens da indústria da moda, por exemplo, em que
vestidos e roupas são mascaramentos das quais se servem as modelos para mostrar
uma narratividade outra.
A crítica vai justamente neste
sentido, converge nessa possibilidade de contato. Ainda que o filme tenha sido
lançado em 1966, os pontos de contato entre a trama de Antonioni encontram
correspondência com o século 21, ainda se traçarmos paralelos com a morte da
verdade apontada por Kakutani[11] ou
ainda, em uma linha paralela, a modernidade líquida da qual fala Bauman[12]. Se
na fotografia de Blow-Up Thomas pode
ou não interpretar o registro como prova de um assassinato, essas duas
alternativas parecem pálidas hoje em relação ao que temos na era das redes
sociais, em que pesa justamente o consumo da imagem mais do que qualquer tipo
de processo que possa surgir dela. A virtualidade da ficção está cada vez mais
incrustada na cultura, agora até em níveis individuais, como permitem estas
redes online, mas não só neste
âmbito: “Nunca a imagem se impôs com tanta força em nosso universo estético,
técnico, cotidiano, político, histórico”[13].
A resposta para esse desvio que
parece assolar a imagem no agora está na luta de Thomas com sua fotografia. Na
cena final de Blow-up, o protagonista
volta ao parque em que fez o registro e lá encontra um grupo de artistas de
circo que parecem especializados em mímica jogando uma partida de tênis- com
exceção de que, nesta partida, não há bola nem raquetes. O jogo se dá no campo
do imaginário, nessa temporalidade outra- na partida de tênis em questão, se dá
no campo da performance, da arte. É neste espaço em que a imagem pode ser
possibilidade antes que seja verdade encerrada.
Os apontamentos de Antonioni que
permitem a leitura de que a imagem parece, mais do que o conceito um tanto sem
fronteiras de real, bastar, permite, ainda que a negatividade do termo falso
possa trazer uma herança ruim a esse desvio, que traçamos uma nova
historicidade com essas narrativas que ficam à margem, que precisam de
ampliação- da combustão- para conseguir abalar o processo histórico com sua
potência narrativa. Ainda que com cuidado, o que Thomas parece encontrar, ao
fim, é que, para o bem, a verdade pode ser volátil enquanto a imagem estiver
queimando.
Como citar: NASCIMENTO, Alexandre Manoel. "A imagem que queima em Blow-up, de Michelangelo Antonioni", In "Literatura Italiana Traduzida", v. 2, n. 1, jan. 2021.
Disponível em:https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/ 219119
[1] DIDI-HUBERMAN,
Georges. A imagem queima. Curitiba:
Medusa, 2018.
[2] DIDI-HUBERMAN,
Georges. Quando as imagens tocam o real. In: Pós: Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 204-219. nov. 2012. Acesso em
15 nov. 2018.
[3] BLANCHOT,
Maurice. O livro porvir. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
[4] VARGAS,
Alexandre Linck. A invenção dos quadrinhos:
teoria e crítica da sarjeta. Tese (doutorado em Literatura)- Pós-Graduação
em Literatura, Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa
Catarina. Florianópolis, p. 239, 2015.
[5] BLANCHOT,
Maurice. O livro porvir, op. cit.
[6] BLANCHOT, Maurice.
O livro porvir, op.cit.
[7] DELEUZE,
Gilles. Imagem-tempo: Cinema 2. São
Paulo. Brasiliense, 1990.
[8] DELEUZE,
Gilles. Imagem-tempo: Cinema 2, op. cit.
[9] DELEUZE,
Gilles. Imagem-tempo: Cinema 2, op. cit.
[10] DELEUZE,
Gilles. Imagem-tempo: Cinema 2, op. cit.
[11] KAKUTANI,
Michiko. A morte da verdade. Rio de
Janeiro. Intrínseca, 2018.
[12] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro.
Editora Zahar, 2001.
[13] DIDI-HUBERMAN,
Georges. A imagem queima, op. cit.
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