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Maternidade nas escritas de Elena Ferrante e Donatella Di Pietrantonio, por Marlene Rodrigues Brandolt
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Donatella Di Pientrantonio
Elena Ferrante
Marlene Rodrigues Brandolt
em
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Foto: pxhere.com |
O presente estudo aponta
para três eixos de análise literária: a maternidade, a capa no lugar do
paratexto e a escrita de autoria feminina italiana traduzida no Brasil. Para esta análise, os textos traduzidos,
ligados a elementos paratextuais – sobretudo a capa e os anexos – revelam
pontos de vista femininos que podem estimular um diálogo contínuo sobre quais
transformações surgem no complicado espaço da maternidade na contemporaneidade.
As versões selecionadas circulam
entre os leitores brasileiros com os títulos A filha perdida, de Elena Ferrante[1],
em tradução de Marcello Lino, pela Editora Intrínseca, e A devolvida, de Donatella Di Pietrantonio[2],
livro traduzido por Mario Bresighello, pela Faro Editorial.
Para as reflexões, o pensamento de Gérard Genette[3].
em Paratextos editoriais, será auxiliar
para se entender o lugar da capa como um instrumento que “indica, por si só”[4], a apresentação do livro, cujos direcionamentos têm
identificação com o modo de pensar das narradoras acerca da maternidade
nos romances mencionados.
Os romances podem
esclarecer algumas dessas colocações, a exemplo da personagem Leda, de A filha perdida, caracterizada como uma
mulher que se divide entre as obrigações maternas convencionais de mãe e o que
a contemporaneidade explica sobre uma identidade em busca de libertação. Assim,
sem se despojar de suas aspirações, a protagonista Leda exige a cumplicidade do
marido para ficar com as filhas pequenas, uma vez que não aceita “oportunidades
perdidas”[5],
o que a faz abandonar as meninas quando tinham a idade de 4 e 6 anos.
Entretanto, a fase torna-se constrangedora para ela, levando-a a se justificar
com as filhas, que nunca aceitaram conversar sobre tal episódio.
A
devolvida, de Donatella Di Pietrantonio, elege falar de uma
protagonista narradora que, no início da adolescência, se vê entre duas mães: a
adotiva e a “a mulher que [a] havia concebido”[6].
Surge na ficção o problema que vai do abandono físico ao desamparo emocional da
garota de 13 anos, que sente a indiferença das mães diante da sua transformação
no retorno forçado à casa original. Nesse novo contexto, a menina assume uma
identidade dividida, provocada pela condição de quem ficou à margem do amor de mães
que oscilam entre a indiferença e a rejeição.
A narrativa de Donatella
Di Pietrantonio, ancorada na história ficcional de duas mães com diferentes
níveis sociais e econômicos, trata da entrega e da devolução de uma filha,
conseguindo, com ou sem propósito, interferir nos sentimentos mais profundos da
protagonista que, vinte anos depois, mantém laços afetivos com a irmã Adriana e
o irmão Giuseppe. São esses os familiares que aparecem na rotina da narradora
adulta; o rapaz vive num internato e, “em todas as visitas”, a Devolvida, “em
geral”, tem a companhia da irmã Adriana[7].
Aliás, a protagonista desenvolve com a irmã adolescente um elo de afeto aliado
a um conforto diante das verdades que a desmoronaram. Adriana é, igualmente, uma
figura de resistência às dificuldades sociais, o que permitiu à “filha das
separações”, a devolvida, reconstruir com menor peso uma impressão familiar,
cujo “desconforto foi diminuindo um pouco, como uma febre”[8].
Inversamente à presença dos irmãos que circulam no tempo presente da escrita da
narradora, as mães ficam à sombra da protagonista numa condição equivalente ao que
ela experimentou com a separação por ser adotiva.
Na ficção traduzida de
Donatella, as progenitoras, em análise, não renunciam a suas vontades, opções que acabam por determinar o apagamento
das mães – adotiva e biológica – que são consideradas injustas pela a devolvida;
provável motivo para as personagens não figurarem nas memórias que atravessam
os vinte anos da história daquela que retornou ao antigo lar. Tal cenário
parece a expressão da realidade, diz Donatella Di Pietrantonio em entrevista a Andrea Pérez[9],
em que a prática de adoção “por parte de las familias pobres, a parejas
estériles”, era bastante comum, sendo “una dinámica no regulada pero muy
extendida en la Italia de las décadas de los sesenta y setenta”, cujo saldo toma por
vezes uma aparência de desamor, independentemente das circunstâncias sociais que
as mães vivenciam.
Os
romances acompanham um perfil contemporâneo identificado
como uma tendência na lida com a maternidade
que ganhou vigor a partir dos anos de 1970, quando as mulheres, dentre
algumas necessidades, começaram a discutir o compromisso de submissão que a maternidade
lhes exigia. É essa dependência que permanece na mulher contemporânea dificultando
a capacidade de ela se convencer de que “a mãe é também uma mulher, isto é, um
ser específico dotado de aspirações próprias que frequentemente nada têm a ver
com as do esposo ou com os desejos do filho”, diz Elisabeth Badinter[10].
Nos romances enfocados no artigo, a maternidade não é ato de devotamento, pois as
personagens não excluem o apego a outras responsabilidades e, às vezes, a narradora
de Elena Ferrante revela uma ambição de somar um projeto a outro, comprometida
em “parecer livre: de todos os preconceitos morais, de todas as ligações
sentimentais”[11].
Para tanto, ela substitui o convívio familiar por “oportunidades de uma possível
carreira”[12].
Mesmo que as mulheres tenham
conquistado espaço na economia a partir da Segunda Guerra Mundial, não parecem tão
confortáveis para encarar a ideia de que: a) “passada uma certa etapa física e
intelectual, os laços e a afeição que unem pais e filhos não são nem
necessários, nem obrigatórios”, e sim “passíveis de rompimento”[13],
e b) é preciso aceitar que o filho, ainda que “momentaneamente frágil e
alienado”, carece de oportunidades para encontrar-se como “pessoa autônoma”,
conforme palavras da historiadora francesa Elisabeth Badinter[14].
Vale comentar que, enquanto a sociedade se fechar em um esquema de proteção
autoritária, a saída de casa será concebida como uma decepção psicológica no
núcleo familiar.
Na memória coletiva da
humanidade, a bíblia é o reservatório dos conceitos de opressão materna, ao torná-la confinada ao
ambiente doméstico e devotada a amar unicamente seus
filhos. Em Isaías 49:15[15],
o questionamento “pode uma mulher esquecer-se de seu filho de peito, de maneira
que não se compadeça do filho do seu ventre?” lembra o princípio da palavra
grega phileoteknos[16],
que significa um tipo especial de “mãe-amor”, que vai: “preferir, cuidar, alimentar,
abraçar e satisfazer as necessidades de seu filho amavelmente”. Os sentidos acolhidos
tradicionalmente repelem a ideia de a mulher seguir outra formação que não seja
a de amparar os filhos, seus ou adotivos, e isso sem discutir os efeitos dessa
inclinação materna.
A feminista
italiana Silvia Federici diz que é quase impossível aproveitar qualquer
liberdade se, desde os primeiros dias da sua vida, a mulher “tem sido treinada
para ser dócil, subserviente, dependente e, o mais importante, para se
sacrificar e até mesmo sentir prazer com isso. Se você não gosta, o problema é
seu, o fracasso é seu, a culpa e a anormalidade”[17]
é sua, que deve combinar o papel de mãe com o de dona de casa, “tornando
seu trabalho tão pesado e, ao mesmo tempo, tão invisível”[18].
As mulheres das obras de
ficção aqui estudadas escapam do senso de dedicação, uma vez que, em A filha perdida, a personagem narradora,
professora universitária e escritora, rompe com o conceito de que a maternidade
por si indica a realização da mulher, ou seja, ela procura se afastar dos
“sacrifícios associados à criação dos filhos”[19].
A protagonista de Elena Ferrante traz um movimento interior e exterior associado
ao trabalho profissional com o qual pode se socializar com maior liberdade fora
do âmbito doméstico. De certa forma, as justificativas para Elena são
diferentes da ficção de Donatella, que descortina a realidade de uma infância
sufocada por determinações exclusivas de mães com comportamento de desinteresse,
submetendo a filha a uma existência marcada pelo estranhamento de se reconhecer
como “a devolvida”[20].
Em
outros termos, as escritoras atravessam territórios familiares
guiados por uma linguagem que traduz o mais profundo sentimento das mulheres em
suas lutas de libertação humana, reveladas por uma prática maternal de
contradições cujos sentidos de perda e de divisão podem ser vistos nos enredos
e nos títulos estampados nas capas das obras escolhidas.
O termo capa equivale a
“um artefato de recepção ou de comentário”[21];
em outras palavras, nos romances comentados, forma aliança com
ilustrações e expressões verbais fazendo as primeiras chamadas para a ideia da
maternidade desenvolvida no texto principal.
A natureza
das capas conectadas ao enredo do autor cria um modo de interação com outros
paratextos; no presente estudo, as contracapas informam ao público dados sobre
as autoras, os títulos além de trazerem um comentário acerca da libertação
feminina em situações maternais biológicas ou por adoção.
Em Elena Ferrante, na
capa, o título vem abaixo do nome da autora, ambos com igual importância, considerando
que um e outro elemento se apresentam em cor branca e em letras de caixa-alta.
O branco contrasta com os desenhos de telhados avermelhados que escondem becos próximos
a uma região praiana, cenário onde a protagonista, sozinha em férias, não
consegue fugir de recordações maternais as quais são desencadeadas pela figura
de uma menina que perde a boneca entre os turistas. Na capa, assinada por
Angelo Allevato Bottino, os contornos em labirintos remetem ao mergulho conflituoso
de uma protagonista que espia a relação das próprias filhas com o pai, ao lado
do qual estão encontrando um caminho profissional. Assim, o tema-título “Aliviada
depois de as filhas já crescidas”, na contracapa, dá lugar a um breve resumo
que lembra a “infância infeliz [e] segredos da vida adulta” que a protagonista
“nunca conseguiu revelar a ninguém”[22].
Além
da breve síntese da obra, a contracapa disponibiliza citações de manchetes
internacionais que ressaltam a importância de Elena Ferrante para a literatura
de autoria feminina com registros de comentários, por exemplo, da revista The New Yorker: “[o romance é
brutalmente sincero sobre a ambivalência da maternidade”, acrescentando ainda
uma referência ao talento da escritora que “se revela de forma imediata e
visceral”[23].
Entretanto, falta o retrato
de Elena Ferrante, mas a lacuna não deve surpreender o leitor, porque ela é
conhecida como a autora sem rosto, cujo pseudônimo é ligado por vezes à
escritora Elsa Morante, nome que Donatella Di Pietrantonio cita em epígrafe de A devolvida; guardando, de certa forma,
um lugar de lembranças para apresentar outras artistas italianas. Elsa Morante
foi uma das autoras mais importantes da Itália no século 20 e ressurge nas
livrarias em meio a um interesse renovado pela literatura do país, aspecto
resultante do carisma de Elena Ferrante.
Por
sua vez, Donatella Di Pietrantonio tem estampada a sua foto na segunda orelha da
edição traduzida de 2019, cujo projeto gráfico é de Osmane Garcia Filho, com
direcionamentos ilustrativos que sugerem uma personagem dividida. No discurso
da capa, o caráter ficcional do texto de uma protagonista sem nome é
subentendido por efeitos artísticos que indicam um movimento em câmera lenta de
um rosto em partes separadas, capturado em sequência, produzindo a sensação de
uma garota espiando de modo secreto as próprias amarguras.
Os
enredos e os paratextos eleitos contrariam os laços estáveis da maternidade
previstos pelo evangelho. Para exemplificar, a capa do livro A devolvida anuncia o deslocamento
da protagonista
que, sem pertencer “a nenhum lugar, [...] era sempre uma hóspede”[24].
A contracapa com um subtítulo em letras de caixa-alta induz à ideia de divisão da
narradora “entregue a outra família pela segunda vez”, o que a faz não saber
“mais qual parte da sua vida é real”; assim, “como uma estrangeira”[25],
não consegue dizer a palavra mãe que fica travada em sua garganta. Interessante
pensar que há uma singular relação dos recursos gráficos com a própria
descrição da maternidade exposta pelas narradoras que tocam o
passado na sua profunda obscuridade para uma organização dos fatos presentes e
daqueles que alcançam o futuro das personagens.
Considerações
finais
Em suma, como é possível
perceber, as ficções reproduzem paratextos entrelaçados pelas restrições
históricas feitas à mulher e por imprevistos que modificam o curso de vida de
mães e filhas. Nesse sentido, a capa constitui o guia de recepção das obras,
cujo acolhimento junto ao leitor somente é possível pelo trabalho do tradutor,
que torna “a vida do original [...] de maneira constantemente renovada” em seu
“mais abrangente desdobramento”[26].
Com isso, o processo tradutório lida com a permanência do livro entre
culturas e geografias, levando em conta os romances traduzidos que deixam de
pertencer apenas ao “coração [...] italiano”, uma vez que, pela tradução,
pertencem a “todos os indivíduos”, para usar o pensamento de Elena Ferrante, em sua obra Fratumaglia[27].
Os romances aqui focalizados
descrevem análises ligadas: a) ao preconceito com filhos adotivos silenciados
pelas mães, medida que atingiu a devolvida ao sofrer a discriminação que gera
conflitos preconcebidos sobre alguém, o que excluiu da garota um nome próprio,
b) aos traços da punição às personagens maternas que mudam o roteiro clássico
de uma sociedade patriarcal, uma vez que as duas progenitoras da obra A devolvida se tornam vítimas das
próprias escolhas; um indício dessa penalidade imposta é o declínio afetivo nas
recordações da protagonista que passa a ignorar “qual lugar seja o de uma mãe”[28]
e c) com uma sensação de mal-estar diante de um perfil tradicional no espaço
maternal e filial, o livro A filha
perdida declara os problemas da maternidade em termos de abnegação,
indicando que ser mãe não é o principal motivo de realização do pensamento
feminino. Por razões alusivas à memória coletiva, as práticas das mulheres que
envolvem permanências e faltas ainda precisam ser aceitas socialmente; daí, com
imagens de desencontros, Elena Ferrante e Donatella Di Pietrantonio reunirem as
dificuldades de escolhas maternais não convencionais na relação com a narrativa
de autonomia da mulher.
Como citar: BRANDOLT, Marlene Rodrigues. "Maternidade nas escritas de Elena Ferrante e Donatella Di Pietrantonio". In "Literatura Italiana Traduzida", v. 2, n. 1, jan. 2021.
Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/ handle/123456789/219755
[1] FERRANTE, Elena. A filha perdida. Trad. Marcello Lino.
Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.
[2] PIETRANTONIO,
Donatella di. A devolvida. Trad. Mario
Bresighello. São Paulo: Faro Editorial, 2019.
[3] GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2009.
[4] GENETTE, Gérard, op. cit., p. 28.
[5] FERRANTE, Elena, op. cit., p. 87.
[9] PÉREZ, Andrea. ‘La Retornada’: el nuevo fenómeno
literario que llega de Italia, 2018. Disponível em:
https://www.elmundo.es/cultura/literatura/2018/09/19/5ba259b246163f70a48b45f6.htm.
Consultado em: 20/03/2020.
[10] BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno,
1985, p. 15. Disponível em:
http://www.redeblh.fiocruz.br/media/livrodigital%20(pdf)%20(rev).pdf.
Consultado em: 7/09/2020.
[11] BADINTER, Elisabeth, op. cit., p. 82.
[12] FERRANTE, Elena, op. cit., p. 87.
[13] BADINTER, Elisabeth, op. cit., p. 118.
[14] BADINTER, Elisabeth, op. cit., p. 120.
[15] ] BÍBLIA SAGRADA. O
Evangelho segundo Isaías: “O servo do Senhor é a luz das nações”. Trad. João
Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1974. p. 771.
[16] FIALHO, Rosiani. Diário das Marias: significado da
palavra grega phileoteknos. jun. 2016. Disponível em:
http://diariodasmariasblog.blogspot.com/2016/06/
significado-da-palavra-grega.html. Consultado em: 07/09/2020.
[17] FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho
doméstico, reprodução e luta feminista. Trad. Coletivo Sycorax. São Paulo:
Elefante, 2019, p. 44. Disponível em: https://coletivossycorax.org. Consultado
em: 20/08/2020.
[18] FEDERICI, Silvia, op. cit., 2019, p. 45.
[19] FEDERICI, Silvia, op. cit., 2019, p. 101.
[20] PIETRANTONIO, Donatella di, op. cit., p. 69.
[21] GENETTE, Gérard, op. cit., p. 55.
[26] BENJAMIN, Walter. “A tarefa do
tradutor”. In Escritos sobre mito e
linguagem. GAGNEBIN, Jeanne Marie (org.). Trad. Susana Kampff Lages e
Ernani Chaves. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 105.
[27] FERRANTE, Elena. Fratumaglia:
os caminhos de uma escritora. Trad. Marcello Lino. Rio de Janeiro:
Intrínseca, 2017, p.
146.
[28] PIETRANTONIO,
Donatella di, op. cit., p. 100.
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