La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Breves considerações sobre a palavra em Giorgio Caproni, por Rafaela Cechinel Fieira

 

Foto: Dino Ignani


A obra do poeta Giorgio Caproni (Livorno, 1912 - Gênova, 1990) é bastante difundida e conhecida pelo público italiano. Sua estréia nas livrarias se dá em 1932 com a publicação de Come un’allegoria[1], obra que aborda temas da guerra, a natureza, a cidade de Gênova e Annina, falecida mãe do poeta. No Brasil, os leitores foram apresentados à sua poesia através da antologia A coisa perdida: Agamben comenta Caproni, traduzida e organizada pela prof. Aurora Bernardini. Ao longo dos anos de atuação poética, sua produção pode ser dividida em três fases, segundo Mengaldo[2]: o primeiro Caproni, segundo Caproni e último Caproni.
A fase definida por Mengaldo como o último Caproni[3] tem seu em início com Il muro della terra, em 1957, e segue até seus os dois últimos livros publicados em vida Il franco cacciatore (1982), Il Conte di Kevenhüller (1986), e a obra póstuma organizada por Giorgio Agamben, Res amissa (1998). Nesta que é considerada a fase mais amadurecida do poeta, a linguagem é esgarçada ao seu limite[4]; conhecido desde as primeiras obras por sua cadência melancólica e a busca constante por um novo “tom”, Caproni emplaca nessas obras finais, movimentos de experimentação e escavação com a linguagem.
O livro Il franco cacciatore é visto pelos críticos como o primeiro do que se entende como uma trilogia final. Nesta obra, Caproni debruça-se sobre a linguagem na busca de “uma coisa” não identificada, adentrando às explorações metafísicas – dos sentidos, sensoriais e abstratas – que culminam em uma viagem pela consciência e a solidão na ausência de uma figura divina. Esta busca é trabalhada em seus versos através da metáfora trazida na figura da caça e do caçador, que constrói uma alegoria para o trabalho com a linguagem proposto pelo poeta. Para Caproni existe uma relação intrínseca entre a palavra e natureza[5], mas a potência da linguagem não se restringe somente ao que se encontra na natureza, existe entre esses dois pontos uma “coisa” não identificada.


Desde suas primeiras coletâneas, era comum em suas composições a presença de elementos naturais – o mar, as montanhas, o sol, o vento. Em Il franco cacciatore, essa característica retorna de forma mais abstrata. Se nos primeiros livros, o poeta criava através de palavras quadros com descrições físicas dos lugares, que nos levavam a vislumbrar a imagem física proposta, aqui, a natureza compõe o vazio de sentidos delineado por Caproni. As descrições vão desaparecendo de seus versos, tendência que acompanha sua crescente negação ao nominalismo – ou seja, a capacidade das palavras de nomearem as coisas.
A relação de Caproni com a linguagem – entra aqui, principalmente, desconfiança com o nominalismo – perpassa também a relação do poeta com a religião, a figura divina. Nota-se que o título “Il franco cacciatore” faz referência direta à ópera romântica de autoria do alemão Carl Maria von Weber. Composta em três atos, a ópera narra a história de um homem e uma mulher apaixonados, que vêem seu amor sabotado por um jovem caçador que, também apaixonado pela moça, tenta fazer um acordo com o Diabo para tê-la para si. Na ópera, é forte a presença das figuras de Deus e o Diabo, representados pelo caçador e por um ermitão, que na cultura popular seria como um porta voz de Deus. Logo, percebe-se a forte influência do Deus cristão bem como da música , nessa coletânea e, é através da desconfiança com a linguagem, que sua relação com o Divino se manifesta.
Retomando o primeiro versículo do Evangelho de São João, “E no princípio era o verbo”[6], a Bíblia coloca a palavra (no sentido divino) como origem de tudo, porém, Caproni enxerga uma incapacidade na linguagem de criar conhecimento, de representar com exatidão as coisas como elas são. Essa desconfiança também existe quando falamos de sua relação com Deus, o poeta não vê a possibilidade de uma existência divina, mas sente a necessidade de acreditar em algo essas relações entre palavra, Deus, a natureza e a solidão que são investigadas ao longo desta fase.
Na introdução de Res amissa, obra póstuma organizada pelo filósofo e amigo próximo, Giorgio Agamben (1991), traduzido na antologia brasileira organizada por Aurora Bernardini, o autor traz um percurso sobre a obra do poeta, na qual afirma, a respeito dessas últimas composições, que elas “vão assumindo não uma teologia negativa ou cristologia ateia, mais uma queda sonambúlica do divino e do humano rumo a uma zona incerta, sem mais sujeito”[7]. Desta forma, o divino e a palavra em Caproni conectam-se por movimentos de desconfiança e incerteza, no qual o poeta vê a necessidade da existência de um Deus para complementar um sentido, que a linguagem falha em lhe dar. No poema “A Resposta”, por exemplo, tem-se uma narrativa curta a partir da figura do caçador, que abre as investigações trazidas ao longo da obra.
 
O guarda-bosque,
com um sorriso irônico
- Caçador, eu nunca
vi a presa que caças.
O caçador,
embraçando um fuzil:
- Calado. Deus existe somente
na átimo em que tu o matas.[8]
 


Apresentam-se aqui elementos chaves para a poesia caproniana: a figura de Deus, a presença da natureza, a escrita em negativo, a forma do poema – que não segue um padrão tradicional, mas se molda conduzindo uma cadência própria de Caproni. Além dos instrumentos já apontados que perfilam a poesia de Giorgio Caproni, nesses versos existe também a presença, ainda que de forma mais discreta, de rimas, como é o caso de caça: mata, e de figuras de linguagem, como repetição e variação. Os instrumentos poéticos utilizados aqui indicam, mesmo que de forma indireta, os rumos que a linguagem assume nas composições desta terceira fase do poeta – na qual se moldam de forma abstrata, sem representações concretas.
O tratamento dado à linguagem, como nos demais poemas e escritos de Caproni, é marcado pela forte presença de termos em negativo, mesmo sem usar necessariamente o “não”. No poema, ao responder sobre a presa, que nunca foi vista, o caçador responde “Deus existe somente / no átimo em que tu o matas”. Além da própria forma que a poesia é escrita, os versos implicam em uma impossibilidade de existência de um Deus, e a sua possibilidade de existência como um “vazio” –resido aqui, também, uma conexão com as metáforas da palavra pela caçada, que também existe dentro de um vazio que a impossibilita de criar. Esse olhar negativo em relação à linguagem já deixava rastros no livro Il passaggio di Enea (1956), como o próprio Caproni afirma nas entrevistas radiofônicas para o programa Antologia em janeiro de 1988, seis anos após a publicação de Il franco cacciatore.
 
CAPRONI: Aqui começa a surgir a minha desconfiança na palavra, aquele meu, chamaremos, nominalismo, não? Pouco relacionado com aquele de Roscellino, que hoje se tornou moda, com Blanchot e outros teóricos, não é? Mas eu sentia já naqueles tempos, aquela insuficiência da palavra: o meu ideal era aquele de escrever na pauta, enfim, ir além da palavra; para mim, precisamente...escrevi exatamente aquilo que escreveu Blanchot: a palavra dissolve o objeto, cria uma outra realidade que não é a verdadeira, se existe, que falta.[9]
 
Pode-se perceber que a obra de Caproni tem forte influência do trabalho do filósofo francês Maurice Blanchot, atributo que fica claro em seus poemas, no trabalho de exploração com a palavra e com abandono do nominalismo. Blanchot no ensaio “Literatura e o direito à morte”, afirma que todo cidadão tem o direito a morrer, e é no desaparecimento da morte que a liberdade o faz nascer[10]. A ruína de Deus apresentada no poema – e, também, da palavra – pode ser lida, portanto, como o encontro com a liberdade, e somente na liberdade poderia existir a presença divina. Para além, se pode pensar na afirmação de sua existência somente com a sua morte – com o fim, do que seria, em planos da realidade, a existência. E a liberdade, em relação à linguagem, de não estar mais restrita a correspondências exatas, que não conseguem suprir por completo seu significado.
Caproni é um poeta de alegorias, e as figuras da caça e do caçador não poderiam ser diferentes; a representação da caçada funciona como uma alegoria para a própria linguagem – que já se fazia presente nas reflexões capronianas publicadas no final da década de 1940 em La Fiera Letteraria[11] -, no melhor dos aspectos blanchotianos. A presa (caça) é algo indefinível, que nunca está presente ou tomando forma, mas, se dá a ver por meio de seus rastros. E assim também é a figura do caçador, sabe-se apenas que está caçando algo, mas nunca onde ou quem ele é. A ausência de figuras concretas, a busca pela “presa” – que volta a aparecer em seu livro seguinte, Il Conte di Kevenhüller, em forma de uma Besta –, fazem ecos à potencialidade da palavra de ser muitas coisas, tornando-se, portanto, incapaz de nomear o objeto, de chegar a um sentido único.
O lugar da ausência também é o lugar da potência. Os vestígios deixados pela presa constroem um espaço vago e abstrato, que se abre para questionar não apenas a existência, mas também a certeza sobre o conhecimento. Na possibilidade de negação da existência da presa, se deixa ao ar a sua ausência, e apresenta-se um vazio ao qual se dá lugar a criação. Portanto, a linguagem é uma forma de criar, e conforme nos lembra Blanchot, a literatura está ligada à linguagem; “a palavra dá o ser, mas ele chegará privado do ser. Ela é a ausência desse ser, seu nada, o que resta dele quando perdeu o ser, isto é, o único fato que ele não é.”[12]
Para Caproni, a palavra cria uma realidade e querer usar a palavra para conhecer a coisa é como querer usar uma coisa para conhecer outra.[13] O tom que Caproni busca constantemente nos escritos de sua última fase, reside no esvaziamento do sentido da linguagem, na exploração e no esgarçamento da palavra. O ritmo que marca a composição única de Caproni tem seu nascimento na subjetivação da poesia. O poema apresentado acima é escrito na forma de uma narração curta, onde o sujeito do “eu” encontra-se camuflado, quase que irreconhecível. Não existe, em momento algum, a utilização de verbos em primeira pessoa. Ainda assim, é possível ouvir a voz de Caproni ecoando nos versos.
O vazio, portanto, encontra-se não na criação de Deus ou da presa, mas na linguagem. É a linguagem que possui esse poder de dar lugar ao nascimento de uma nova forma de vida – e também de esvaziar a sua existência, pois, como a palavra designa não o que a coisa é, mas o que a coisa não é, acaba por esvaziá-la de sentido no momento em que lhe dá vida. Mas, é no esvaziamento da linguagem que se dá seu sentido. Ao falar da presa, não temos a presa, mas possuímos o significado que sua menção nos remete; sua significância reside, portanto, no imaginário do leitor. Assim, a língua torna-se uma forma de mediação – que muitas vezes falha em exprimir uma essência concreta. E o escritor é quem gera a vida, com e pela palavra. Essa potência é contida, principalmente, na poesia, local na qual a linguagem está constantemente se transformando, (re)criando-se como forma.
Logo, o poeta não é quem busca na poesia retratar a vida, espelhar-se na vida, mas quem busca na linguagem uma forma de criação para uma vida nova, transformando a vida pela linguagem e a linguagem pela vida simultaneamente.[14] A língua é a mediação existente entre o indivíduo e o psicológico e metafísico, através dela o ser se subjetiva até estar tão dentro dela, que o poema vira uma nova forma de vida, chegando a confundir biografia do poeta com psicologia do indivíduo; representação com forma; o real e o irreal, até mais nada existir por completo – contendo, portanto, seu sentido no vazio.
O poema, para Meschonnic[15], faz de nós uma forma-sujeito. Não nos valemos da linguagem, mas nos tornamos linguagem. Nesse sentido, o “eu” do poema de Caproni, se faz presente no poema mesmo sem estar presente. É através de subjetivação da linguagem, do se transformar em linguagem que se dá a voz do eu do poema. É o sujeito transformando a linguagem, de forma que se deixa quase imperceptível entre os versos. E, ao subjetivizar o “eu” ao extremo, surge uma nova voz, que não é mais a voz do poeta, mas sim a voz do poema. O ofício poético torna-se poema quando consegue atingir o “nós”, iluminando as camadas mais internas escondidas do eu.

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Como citar: FIEIRA, Rafaela Cechinel. "Breves considerações sobre a palavra em Giorgio Caproni". In "Revista de Literatura Italiana", v. 2, n. 2, fev. 2021.  Disponível em:  https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/220069



[1] Para uma análise mais completa das primeiras obras de Caproni, ver: ASSINI, Fabiana Vasconcellos. Um olhar sobre “Come um’allegoria” de Giorgio Caproni. Trabalho de Conclusão de Curso - Curso de Letras - Língua e Literatura Italiana, Departamento de Língua e Literatura Estrangeira, UFSC, Florianópolis, 2015.
[2] MENGALDO, Pier Vincenzo. “Per la poesia di Giorgio Caproni”. In: CAPRONI, Giorgio. L’opera in versi., Milano: Mondadori, 1998. p. XIII
[3] Ibid. p. XXX
[4] Ver PETERLE, Patricia. A palavra esgarçada: poesia e pensamento em Giorgio Caproni. 1a Edição, Florianópolis: Rafaela Copetti Editor, 2018. p. 22.
[5] CAPRONI, Giorgio. “O quadrado da verdade”. In: CAPRONI, Giorgio.  A Porta Morgana: ensaios sobre poesia e tradução. Trad. Patricia Peterle (org),.São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2017, p. 75-77.
[6] BÍBLIA, João, 1:1.
[7] AGAMBEN, Giorgio. “Desapropriada Maneira”. In: CAPRONI, Giorgio. A coisa perdida: Agamben comenta Caproni. Trad. de Aurora F. Bernardini (org.) Florianópolis: Ed. da Ufsc, 2011. p. 29.
[8] Op cit. p. 201.
[9] “CAPRONI: Qui comincia ad affiorare appunto questa mia sfiducia nella parola, questo mio, chiamiamolo, nominalismo, no? Lontanamente imparentabile con quello di Roscellino, che pi è diventato oggi di moda, con Blanchot e altri teorici, no? Ma io la sentivo già a quei tempi, questa insufficienza della parola: il mio ideale era quello di scrivere sul pentagramma, insomma, andare oltre la parola; per me, appunto... scrissi proprio quello che poi ha scritto Blanchot: la parola dissolve l'oggetto, crea un’altra realtà che non è quella vera, se esiste, che manca.” SURDICH, Luigi. “La voce dello “scrittore in versi””. In: CAPRONI, Giorgio. Era così bello parlare: conversazione radiofoniche con Giorgio Caproni. Genova: Il melangolo, 2004. p. 164. (tradução nossa)
[10] BLANCHOT, Maurice. Literatura e o Direito à Morte”. In: BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. São Paulo: Rocco, 1998. p. 290-330
[11] Os textos se encontram reunidos na sessão “Laboratório poético I: sobre poesia” do livro A porta morgana. Cf: CAPRONI, Giorgio. Op cit., 2017.
[12] BLANCHOT, Maurice. Op. cit. p. 311
[13] CAPRONI, Giorgio. “A precisão dos vocábulos, ou seja, a Babel”. In: CAPRONI, Giorgio. Op. cit. 2017, p. 79-81.
[14] MESCHONNIC, Henri. Manifesto em Defesa do Ritmo. 2015. Caderno de Leituras - Edições Chão de Feira. Disponível em: https://chaodafeira.com/catalogo/caderno-n-41-manifesto-em-defesa-do-ritmo/. Acesso em: 10 set. 2020.
[15] Ibid.