La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Pier Paolo Pasolini, comunista, por Mariarosaria Fabris

 


Carteiras de filiado ao Partido
Comunista Italiano (1948 e 1949)

Em 26 de janeiro de 1947, Pier Paolo Pasolini publica um artigo em Libertà, jornal de Údine (Friul), em que afirma: “Nós, de nossa parte, estamos convencidos de que, atualmente, só o comunismo é capaz de fornecer uma nova cultura ‘verdadeira’, uma cultura que seja moralidade, interpretação total da existência”.[1]
Essa afirmação pode causar estranheza, tendo em vista as circunstâncias da morte de seu irmão caçula, Guido, menos de dois anos antes. Ele era um dos dezessete integrantes da Brigada Osoppo assassinados, em fevereiro de 1945, no massacre de Porzûs, perpetrado por partisans comunistas, em virtude de divergências ideológicas e do controle territorial da região do Friul. Como escreveu Cesare Medail: 

Em relação a sua escolha política, Pasolini tenderá para colocar entre parênteses a morte do irmão, até porque sua militância não era tanto partidária, mas ideológica, filosófica: depois de ter lido Marx, tinha se convencido de que aquelas teorias podiam explicar a realidade, independentemente de culpas e erros do PCI.[2]
 
De fato, terminada a guerra, o jovem escritor abre os olhos para os problemas sociais e começa a interessar-se pelas ideias de Karl Marx e, sobretudo, de Antonio Gramsci. Filiado ao Partido Comunista Italiano (PCI) desde fins de 1947, milita ativamente na região de Casarsa (pequeno município natal de sua mãe, que, na época, fazia parte da microrregião de Údine), engajando-se na campanha das eleições de 1948 e na luta dos camponeses contra os latifundiários.

Numa entrevista a Jean Duflot em 1969, Pasolini afirmava:
 
Lá fiz uma primeira experiência da luta de classe. A luta dos trabalhadores rurais despertava em mim toda uma saudade da justiça, ao mesmo tempo em que satisfazia minha inclinação à poesia. Logo, a ideia de comunismo veio naturalmente se associar, se fundir com a das lutas dos camponeses, com as realidades da terra. Pode até ser que mesmo minha adesão ao PCI tenha sido determinada sentimentalmente por aquela experiência... Não vou negar... e isso não me parece em contradição com uma formação marxista.[3]

Renato Guttuso, emblema do PCI (1953)
 
E, na opinião de seu primo e biógrafo Nico Naldini:
 
O seu é um marxismo em estado germinal, mas puro, que nasceu do choque com os acontecimentos, sabendo que estas experiências sociais serão destinadas a imprimir-se em novas visões poéticas. Não é mais uma poesia entendida apenas como graça e privilégio, mas como história, cultura e ideologia. [...] para Pasolini a adesão ao PCI era um amadurecimento necessário do pensamento e dos sentimentos, e, pela leitura de Gramsci, agora ele acredita poder situar a própria posição de intelectual pequeno-burguês entre o partido e as massas, tornando-se um verdadeiro eixo de mediação entre as classes.[4]

 
Expulso do PCI, em 26 de outubro de 1949, por “indignidade moral”,[5] no dia 28 de janeiro de 1950, Pasolini chega a Roma, onde se defronta com a vida nos subúrbios que circundam a cidade, que retratará em seus primeiros romances publicados – Ragazzi di vita (Meninos da vida, 1955) e Una vita violenta (Uma vida violenta, 1959) – e em realizações cinematográficas subsequentes: Accattone (Desajuste social, 1961), Mamma Roma (Mamma Roma, 1962) e “La ricotta” (“A ricota”), episódio de RoGoPaG o Laviamoci il cervello (RoGoPaG – Relações humanas, 1963).
Uma realidade que ele mesmo enfrentou nos primeiros anos romanos – quando morava em Ponte Mammolo (a 7 km do centro), perto do presídio de Rebibbia, e dava aulas em Ciampino (a 14 km de distância) –, feita de dias duros, como relembra no poema “Il pianto della scavatrice” [O pranto da escavadeira, 1956]:
 
Estupenda e mísera cidade
que me ensinou o que, alegres e ferozes,
os homens aprendem em criança. [...]
Pobre como um gato do Coliseu,
vivia num subúrbio todo cal
e poeirento, longe da cidade
e do campo, espremido todo dia
num ônibus arquejante:
e cada ida, e cada volta
era um calvário de suor e ansiedade.
Longas caminhadas numa cálida caligem
longos crepúsculos diante de papéis
amontoados na mesa, entre ruas de lama,
muretas, casinhas vestidas de cal,
sem batentes e cortinas como portas...
[...] Esse subúrbio nu no vento,
não romano, não meridional,
não operário, era a vida
em sua luz mais atual:
vida, e luz da vida plena
no caos ainda não proletário [...].[6]

Pasolini na periferia romana, na época de Accattone
 
Segundo o escritor Alberto Moravia, amigo de longa data,[7] que havia sublinhado as coincidências entre os romances romanos e os primeiros filmes – “Mesmas personagens, mesmos ambientes, mesma mistura de verismo lírico e de esteticismo crítico”[8] –, foi a descoberta do “lumpemproletariado enquanto sociedade revolucionária análoga às sociedades protocristãs, ou seja, portadoras de uma mensagem inconsciente de humildade ascética a ser contraposta à sociedade burguesa, hedonista e soberba”, que mudou o marxismo ortodoxo de Pasolini e o moldou definitivamente:
 
O seu, portanto, não será um comunismo de revolta, e nem mesmo iluminista, e muito menos científico; em resumo, nem verdadeiramente marxista. Será um comunismo populista, “romântico”, isto é, animado por uma piedade pátria arcaica, um comunismo quase místico, enraizado na tradição e projetado na utopia.[9]
 
Numa entrevista que deu na Suécia pouco antes de morrer, ao dividir sua trajetória cinematográfica em três etapas, o diretor assim se refere à do início: “uma primeira fase abarca os que Gramsci chamaria de filmes de caráter nacional-popular, logo bem simples, bem acessíveis ao público, e fundamentalmente épicos, de Accattone a Il vangelo secondo Matteo” [O evangelho segundo São Mateus, 1963].[10]
O ciclo dedicado a Roma será encerrado com Uccellacci e uccellini (Gaviões e passarinhos, 1966), em que o cineasta focaliza simbolicamente a crise do marxismo, anunciando o fim dos tempos épicos de Bertolt Brecht e de Roberto Rossellini, que, no filme coincide com o enterro de Palmiro Togliatti.

Fotograma de Uccellacci e uccellini

A despedida do pai do comunismo italiano representa o adeus a todo um período da história do país e a um tipo de produção cinematográfica até então alimentada pela “lição” ética do neorrealismo e por uma visão gramsciana, a qual se desfaz diante da realidade dos anos 1960: novos rumos do proletariado, crise dos intelectuais numa sociedade abalada pelos acontecimentos de 1956 em diante (revelações de Nikita Kruschev no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, invasão da Hungria, levante da Polônia), questionamento da fé marxista etc.[11] Questões e inquietações já presentes no poema “Le ceneri di Gramsci” (1954):

 
atraído por uma vida proletária
anterior a você, é para mim religião
sua alegria, não sua milenar
luta: sua natureza, não sua
consciência: é a força originária
do homem, que se perdeu na ação,
a dar-lhe a embriaguez da nostalgia,
uma luz poética [...]
Como os pobres, pobre, me apego
como eles a humilhantes esperanças,
como eles para viver me bato
todo dia [...]
[...] Mas eu, com o coração consciente
de quem somente na história tem vida,
ainda poderei com pura paixão obrar,
se sei que nossa história acabou?[12]

Pasolini diante do túmulo de Antonio Gramsci
 
Como observou Alain-Michel Boyer, nesse poema, o autor, ao defrontar-se com o “conflito entre as exigências do indivíduo e a visão marxista do mundo, expõe, com a maior lucidez, sua postura perante a política, num sonho utópico que afirma os direitos do homem diante da indiferença das ideologias”.[13] Publicado pela Garzanti num momento conturbado para as esquerdas italianas, o volume Le ceneri di Gramsci (1957) atraiu um grande número de leitores por sua profunda reflexão sobre a situação política e cultural do país.
Pasolini mantém até o fim sua visão de marxismo, um marxismo “mais de crente que de político, mais populista do que científico”, retomando os dizeres de Moravia.[14] Em Petrolio (1992), romance inacabado, o escritor assim descreve um grupo de militantes:
 
São comunistas, naquela hora, estão voltando, talvez, de uma manifestação no centro. Estão alegres. Seus olhos emanam luz. Uma luz negra, meridional. A pobreza e a injustiça contra as quais lutam, não os esmorecem. Dentro de si, aproveitam a vida como ela é; porque sabem também, dentro de si, que um dia irão vencer e o mundo, o mundo inteiro, será deles.
Agitam também bandeiras vermelhas. O Partido Comunista não é um grande partido impoluto; é um grande partido sujo: mas, está sujo de graxa das fábricas, de ferro, ferrugem, farinha, peixe seco, sangue, hortelã, suor e pó. O que ele oferece não é menor nem menos humano de quem recebe. Quem entrega a bandeira e quem a carrega são verdadeiros camaradas, embora, talvez, tão diferentes entre si, como podem ser diferentes um intelectual de um operário ou um operário de um pobre.[15]

 

                                       Renato Guttuso, I funerali di Togliatti (1972)[16]

 
Como ponderou a escritora Dacia Maraini, que foi amiga e colaboradora do cineasta:
 
Pier Paolo, decerto, tinha um fraco pelo Partido Comunista como ele o via, um movimento popular, amado e atuado pelos excluídos, pelos deserdados. [...] continuava a sentir uma espécie de ternura pelo velho e ingênuo PCI, como ele gostava de vê-lo, por suas lutas antifascistas, por seu credo insurrecional, por seus militantes corajosos, por sua ousadia ao reivindicar a terra para os camponeses.[17]
 
Uma visão poética, consoante com os sentimentos populares em relação ao comunismo, a qual ecoa o que Pasolini havia externado em “Le ceneri di Gramsci”.

 

        Túmulo de Gramsci[18]

________________________ 

Como citar: FABRIS, Mariarosaria. "Pier Paolo Pasolini, comunista", In "Literatura Italiana Traduzida", v. 2, n. 2, fev. 2021.  Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/219892



[1] NALDINI, Nico. “Cronologia”. In: PASOLINI, Pier Paolo. Per il cinema. 2 v. Milão: Mondadori, 2001, v. I, p. LXXI. A tradução desta e das demais citações é da autora.
[2] MEDAIL, Cesare. “Naldini: ‘L’ultima accusa di Guido Pasolini’”. Corriere della Sera, 20 ago. 1997. Disponível em <http://pasolinipuntonet.blogspot.com/2013/01/ naldini-l-ultima-accusa-di-guido.html> Acesso: 15 jun. 2020.
[3] PASOLINI, Pier Paolo. Il sogno del centauro. Roma: Editori Riuniti, 1983, p. 27.
[4] NALDINI, Nico. “Cronologia”, op. cit., p. LXXII, LXXIV.
[5] Pasolini foi expulso da Federação de Pordenone depois de uma denúncia por atos libidinosos envolvendo menores, crime do qual foi absolvido em 1952. Cf. MEDAIL, Cesare, op cit.
[6] PASOLINI, Pier Paolo. “Il pianto della scavatrice” (1956). Disponível em <library.weschool.com/lezione/le-ceneri-di-gramsci-riassunto-pasolini-poesia-2863. html>. Acesso: 5 de maio de 2020.
[7] Moravia conhece Pasolini em 1955, quando publica o poema Le ceneri di Gramsci no n. 17-18 (nov. 1955- fev. 1956) de Nuovi Argomenti, revista fundata por ele e por Alberto Carocci em 1953.
[8] MORAVIA, Alberto. “Un corvo che ha letto Marx”. In: Cinema italiano: recensioni e interventi 1933-1990. Milão: Bompiani, 2010, p. 630.
[9] MORAVIA, Alberto. “Ma che cosa aveva in mente”. In: Cinema italiano, op. cit, p. 1034.
[10] apud: CHIARCOSSI, Graziella. “La vita”. In: Album Pasolini. Milão: Mondadori, 2005, p. 297.
[11] Cf. FABRIS, Mariarosaria. “Um corvo no meio do caminho”. O Estado de S. Paulo, 11 dez. 2005.
[12] PASOLINI, Pier Paolo. “Le ceneri di Gramsci”. In: ZANZOTTO, Andrea; NALDINI, Nico. Pasolini: poesie e pagine ritrovate. Roma: Lato Side Editori, 1980, p. 122-123, 128.
[13] BOYER, Alain-Michel. Pier Paolo Pasolini – Qui êtes-vous?. Lyon: La Manufacture, 1987, p. 135.
[14] MORAVIA, Alberto. “Il ritorno al Kikuyu”. In: Lettere dal Sahara. Milão: Bompiani, 2007, p. 162.
[15] PASOLINI, Pier Paolo. Petrolio. Turim: Einaudi, 1992, p. 376.
[16] Em I funerali di Togliatti [O enterro de Togliatti], Renato Guttuso, pintor oficial do PCI, sem deixar de homenagear o velho líder comunista, faz da figura de Enrico Berlinguer, novo Secretário Geral do PCI, o ponto de fuga da composição. O vermelho das bandeiras, que predomina sobre a representação dos personagens retratados em branco, cinza e preto, reforça a ideia de transmissão do credo marxista de geração em geração, e o destaque dado a Berlinguer pode ser interpretado como uma continuação e uma renovação do partido, pois o novo líder conseguirá distanciar-se do modelo soviético para estar entre os fundadores do Eurocomunismo (meados dos anos 1970). No painel, que integra o acervo do MAMBO (Museu de Arte Moderna de Bolonha), além do homenageado, de Berlinguer, do próprio pintor, de sua esposa Mimise Guttuso e de um seu amigo, o geoquímico Marcello Carapezza, é possível reconhecer, dentre outros, Karl Marx, Friedrich Engels, Antonio Gramsci; os líderes soviéticos Leon Trótski, Vladimir Lênin, Josef Stálin e Leonid Brejnev; o estadista búlgaro Georgi Dimitrov; o líder vietnamita Ho Chi Minh; a fundadora da Liga Spartakus, Rosa Luxemburgo; a revolucionária russa Anna Kulichoff; Dolores Ibárruri Gómez, vulgo La Pasionaria; a deputada Nilde Iotti, companheira de Togliatti; a ativista norte-americana Angela Davis; Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre; o poeta chileno Pablo Neruda; o dramaturgo Eduardo De Filippo; os escritores Carlo Levi e Elio Vittorini; o poeta Salvatore Quasimodo; Pier Paolo Pasolini e Luchino Visconti; o editor Giangiacomo Feltrinelli; o fotógrafo Mario Carnicelli; o ex-partisan Alcide Cervi, pai de sete filhos fuzilados pelos fascistas; os deputados comunistas Mario Alicata, Giorgio Amendola, Alessandro Natta e Luigi Longo, Secretário Geral do PCI depois da morte de Togliatti; o deputado socialista Riccardo Lombardi; os senadores comunistas Paolo Bufalini e Umberto Terracini; o líder sindicalista Giuseppe Di Vittorio; os dirigentes comunistas Pietro Ingrao e Gian Carlo Pajetta.
[17] MARAINI, Dacia. “Riscrittura, da parte di Dacia Maraini, di una lunga conversazione avuta con Gianni Borgna nell’estate de 2012”. In: BALLÓ, Jordi (org.). Pasolini Roma. Milão: Skira, 2014, p. 224.
[18] Imagem n. 15 de uma “poesia visual”. PASOLINI, Pier Paolo. “Iconografia ingiallita (per un ‘Poema fotografico’)”. In: La divina mimesis. Turim: Einaudi, 1975, p. 79.