La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

A estreia absoluta de Primo Levi: “Buna Lager”, por Domenico Scarpa[1]

 



 

Fuma la Buna dai mille camini” é uma frase que pode parecer um trava-línguas. Com as suas assonâncias e aliterações, com a dúplice obscuridade dos “us” já no início, com a vibração de “m” e de “n” que se alternam e se unem, com a sua teimosa sequência de sílabas breves, poderia ser o verso de uma cantiga infantil. É, ao contrário, o primeiro verso de uma poesia que se intitula “Buna Lager”, onde Buna quer dizer – em alemão – borracha sintética, enquanto a outra palavra alemã, todos conhecemos.
A “Buna” era exatamente a fábrica de borracha destinada a surgir dentro de um dos campos-satélites de Auschwitz, uma fábrica em cuja construção Primo Levi trabalhou com outros dez mil deportados: em condições de escravidão e, além disso, em vão, pois ela nunca entrou em atividade. Os vinte e dois versos de “Buna Lager” foram uma pequena janela tipográfica que se abriu com grossas tintas dentro da página de cultura – a chamada terza pagina – do semanário comunista de Vercelli, “L’amico del popolo”[2]. Apareceram no número 26, do segundo ano, em 22 de junho de 1946. E são a primeira publicação de Primo Levi depois de seu retorno de Auschwitz: absolutamente a primeira conhecida até hoje.
Somente nove meses mais tarde, o “L’amico del popolo” – que era dirigido por Silvio Ortona, velho amigo de Levi – iria publicar cinco episódios de É isto um homem?, além do célebre texto em versos que figura hoje como epígrafe do livro: “Vós que viveis seguros/ Em vossas casas aquecidas”.
Na coletânea definitiva das poesias de Levi, publicada em 1984 pela editora Garzanti com o título Em hora incerta [Ad ora incerta][3], “Buna Lager” intitula-se simplesmente “Buna” (a precisão era, naquele momento, supérflua) e traz a data de 28 de dezembro de 1945. Exatamente naquele mês, Levi escrevia também “História de dez dias”, ou seja, o capítulo conclusivo de É isto um homem?. Redigido sob forma de diário, foram as páginas do seu livro de estreia que Levi, com a máxima urgência, sentiu o dever de escrever.
Descrevem, como se sabe, um Lager abandonado pelos dominadores alemães: Auschwitz em dissolução. “Buna Lager” apresenta-nos, ao contrário, a fábrica do extermínio que funciona a todo vapor: com um ritmo intenso, com uma vocalidade atormentada, com um registro declamatório. E essa primeira redação do texto, subdividida em quatro estrofes que se projetam e recuam em blocos alternados, se oferecem ao olhar do leitor com uma solenidade inclusive tipográfica: na versão recolhida no volume de 1984, as estrofes são apenas duas, com uma interrupção após o oitavo verso, enquanto o texto é normalmente alinhado à esquerda.
Pode-se dizer que na obra de Primo Levi, Auschwitz seja, antes de mais nada, um conjunto de sons. Entre os últimos dias de 1945 e as primeiras semanas de 1946, Levi escreveu uma dúzia de poemas que, trinta anos mais tarde, no conto “Cromo” de A tabela periódica[4], teria definido “concisos e sangrentos”. Esses versos, nascidos antes de grande parte de É isto um homem?, emitem uma voz bem diversa daquela de sua grande obra-prima. São os acordes de prelúdio do livro, mais altissonantes e mais estridentes em relação ao memorial que lhes seguiria dali a pouco tempo. Com a primazia assegurada pelas datas de composição e publicação, “Buna Lager” testemunha que Levi esculpiu, primeiramente em versos, aquele Lager que tinha apenas começado a desenhar em prosa; a poesia testemunha, em sentido mais amplo, que Levi agiu plenamente como escritor, desde seu primeiro passo público. Aquele breve e violento ciclo de versos projeta o leitor a uma situação – que o autor-testemunha constrói com instrumentos formais, com procedimentos literários – análoga àquela na qual se encontrava jogado o neo-prisioneiro em seu ingresso no Lager. Os versos de Levi infligem um choque acústico que se converte no instante em choque moral: não é por acaso que os últimos versos de “Buna Lager” evoquem a vergonha de ter atravessado aquela experiência de anulação da dignidade. “A poesia me pegou em flagrante”, teria admitido Levi muito tempo depois.
A primeira aparição de “Buna Lager” em L’amico del popolo deve-se a uma preciosa pesquisa de Franco Crosio e Bruno Ferrarotti, publicada online em 2007, na seção “Cultura” do site www.grupposenzasede.it. Aqui está o texto do poema, assim como aparece no jornal comunista de Vercelli:




 

Piedi piagati e terra maledetta,

Lunga la schiera nei grigi mattini.

Fuma la Buna dai mille camini,

Un giorno come ogni giorno ci aspetta.

Terribili nell’alba le sirene:

“Voi moltitudine dei visi spenti,

Sull’orrore monotono del fango

È nato un altro giorno di dolore”.

            Compagno stanco ti vedo nel cuore

            Ti vedo negli occhi compagno dolente

            Hai dentro il petto freddo fame niente,

            Hai rotto dentro l’ultimo valore.

Compagno grigio fosti un uomo forte,

Una donna ti camminava accanto.

Compagno vuoto che non hai più nome,

Uomo deserto che non hai più pianto,

Così povero che non hai più male,

Così stanco che non hai più spavento,

Uomo spento che fosti un uomo forte:

Se ancora ci trovassimo davanti

Lassù nel dolce mondo sotto il sole,

            Con quale viso ci staremmo a fronte?[5]

 

Aproximadamente a um ano de distância de “Buna Lager”, em 31 de maio de 1947, também o quinto e o último episódio de É isto um homem?, publicados em L’amico del popolo, foram acompanhados por um poema, que nas páginas do semanário intitulou-se “Salmo”. Foi esse o título original dos versos mais célebres de Primo Levi: “Vos comando estas palavras”. A disposição das estrofes de “Salmo”, em blocos recuados, era a mesma de “Buna Lager”, e assim permaneceu até hoje, sem nenhuma mudança. Com o título, porém, não foi assim. Levi o aboliu quando escolheu exatamente aqueles versos como epígrafe de É isto um homem? (seja na primeira edição, lançada em Turim pela editora De Silva em 1947, seja na versão definitiva, publicada pela Einaudi em 1958) e, enfim, o mudou para “Shemá” quando, em agosto de 1964, republicou o poema no segundo número de Sigma, uma revista universitária de Turim; e “Shemá” é o título com o qual o poema é hoje conhecido no mundo todo.
“Salmo” e “Shemá” são ambos títulos religiosos, e ambos vêm do Velho Testamento. Em “Shemá”, a conotação judaica resulta mais clara, sendo essa a primeira palavra da oração fundamental do judaísmo: “Shemá Israel” (“Ouça Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é Um”). No seu comentário a uma das edições italianas de É isto um homem? (Einaudi, 2012)[6], Alberto Cavaglion escreve que, em “Shemá”, Levi nos faz ouvir a “voz de Deus”, evocada no final do capítulo “O canto de Ulisses”. É uma observação fundamentada. Foi, na verdade, o próprio Levi a definir “Shemá”, em uma entrevista com Gabriella Monticelli[7] (“Epoca”, 17 de setembro de 1982), como “a minha interpretação blasfema de uma oração iídiche”. Aquele poema-epígrafe, aquela voz de comando tão solene e irada, era uma oração laica: a paródia de uma oração, uma “contra-oração” que afirmava a unicidade do extermínio mais do que a unicidade de Deus, e que açoitava a indiferença do leitor-espectador recorrendo a um refinado estratagema literário.
É isto um homem? é um livro escrito subitamente”, disse Primo Levi em novembro de 1975, durante um encontro com os leitores ocorrido em Cuneo; e é uma afirmação que pode ser entendida: tão contraída, e tão concreta, é uma frase substancialmente verdadeira, ainda que É isto um homem? tenha aparecido somente no outono de 1947, isto é, quase três anos depois da liberação de Auschwitz, e quando na Itália já haviam sido lançadas dezenas de testemunhos sobre a deportação.
Apesar de tudo isso, deve-se destacar um fato fundamental: Levi não se dedicou à escrita do seu primeiro livro durante a travessia da Europa que o manteve “parado” por nove meses antes de devolvê-lo finalmente a Turim, em 19 de outubro de 1945. A prosa de seu memorial, assim como as poesias que o precedem e o acompanham, teriam começado a ser produzidas somente alguns meses depois da sua chegada. Por que não antes? Porque Levi não se lançou subitamente a escrever (a fixar a lembrança, a liberá-la e a liberar-se) imediatamente depois de ter passado pelos portões de Auschwitz, talvez durante sua permanência em Cracóvia e Katowice? Pode-se arriscar duas razões: primeiro porque a experiência-Auschwitz não tinha acabado, e a vicissitude da repatriação, tão desesperadora, mas mesmo assim fascinante, foi o seu rastro; segundo porque ainda não existia um público ao qual direcionar as histórias, dado que naquela peregrinação continental todos eram sobreviventes ou combatentes, e todos faziam parte da história e da geografia na qual estava o Lager. O testemunho era direcionado a outros: a quem não esteve lá, a quem não sabia, a quem tivesse preferido não saber, aos indiferentes, aos renitentes, aos incrédulos. Para Levi, portanto, “a trégua” foi também o meio tempo no qual não escreveu nada sobre Auschwitz: salvo uma significativa exceção.
Em Katowice, na primavera de 1945, uma comissão do governo soviético interpelou 3000 deportados de várias nacionalidades, pedindo-lhes para documentar a própria experiência no Lager de Oświęcim – o nome polonês de Auschwitz. Foi aquela investigação precoce a delinear, de modo ainda sumário, mas com suficiente confiabilidade, o papel-chave de Auschwitz na “solução final”: o número de vítimas, a estrutura e o funcionamento da indústria da morte. Entre as testemunhas, dois judeus turinenses: um médico de 47 anos, Leonardo De Benedetti, e um químico de 25 anos, Primo Levi. Talvez redigido originalmente em francês, talvez ainda rastreável em algum arquivo da ex União Soviética, o seu “Relatório sobre a organização higiênico-sanitária do Campo de concentração para judeus de Monowitz (Auschwitz – Alta Silésia)” seria publicado em novembro de 1946, na prestigiada revista “Minerva Medica”, um semanário impresso em Turim que era o homólogo italiano da inglesa “Lancet”. O texto do Relatório é conhecido pelos estudiosos há vinte e nove anos, graças à recuperação que dele foi feita por Alberto Cavaglion, em 1991, depois de décadas de esquecimento. Foi incluído na edição das obras completas de Levi em 1997, organizada por Marco Belpoliti[8]. Depois que, em 2008, o texto foi revisto e corrigido pelo jovem filólogo Matteo Fadini, o Relatório foi colocado em destaque, como abertura de um novo volume de textos de Primo Levi, organizado pelo historiador Fabio Levi, diretor do Centro Internazionale di Studi Primo Levi de Turim, e pelo autor deste artigo. O livro, intitulado Assim foi Auschwitz. Testemunhos 1945-1986[9], foi publicado pela Einaudi em 27 de janeiro de 2015, nos setenta anos da liberação do Lager, e foi traduzido no Brasil por Federico Carotti, sendo publicado no mesmo ano pela Companhia das Letras[10]. Na capa do volume figura também o nome de Leonardo Debenedetti, do qual são incluídos outros testemunhos sobre o Lager, feitos nos anos seguintes. Mas Assim foi Auschwitz é um livro repleto de textos e documentos inéditos que o tornam uma nova obra de Primo Levi, que se junta àquelas já conhecidas pelos leitores. É um instrumento precioso para a releitura de sua biografia intelectual, reconsiderando a sua capacidade de transformar-se, de prisioneiro do Lager, como foi, em um estudioso do sistema concentracionário, e mais propriamente em um verdadeiro pesquisador que, por toda a vida, soube agir com base em um método dúctil e sutil, um método que o permitiu obter o máximo de informações factuais e do significado moral de sua pesquisa de campo: um sintagma, este último, que indica a competência de Primo Levi também como etnólogo do Lager.
Ao lado de outros textos reunidos em Assim foi Auschwitz, o Relatório assinado com Leonardo De Benedetti volta para lançar a sua desconcertante precisão testemunhal. Espanta a capacidade de memorizar, reunir e organizar informações de minuciosa complexidade (antropológica, não menos do que clínica; política, não menos do que científica) por parte de dois prisioneiros colocados no chão, na lama: a sua capacidade de derrotar a estúpida ignorância espaço-temporal que lhes foi infligida antes de qualquer outra humilhação. O Relatório deve ser lido e estudado isoladamente, e não como um primeiro esboço de É isto um homem?: confirmando que, antes de se entregar à meditação narrativa de sua obra de estreia, Primo Levi divulgou o próprio testemunho sobre Auschwitz em um breve ciclo de versos que, em muitos casos, apresentam-se como os versos de um atroz hino sagrado (tanto mais sagrado, quanto mais irreligioso) e em um relato que absorve, na nua descrição dos fatos, um ato de acusação implacável.
Esses dois modelos de brevidade testemunhal, esses dois estilos morais ao esculpir Auschwitz, encontrariam uma síntese em outubro de 1947, quando a editora De Silva de Turim, dirigida por Franco Antonicelli, publicou a primeira edição de É isto um homem?. Antonicelli fez todo esforço para promover um livro que, imediatamente, lhe pareceu único: antecipações, anúncios na imprensa, um folheto colorido. E depois, um quartino, isto é (no jargão da editoria italiana) um folheto em-16º dobrado em dois, para o qual foi pedida ao autor uma frase que resumisse o significado de seu livro. Esse “Volantino n. 15” da De Silva também – até agora desconhecido, assim como a primeira aparição de “Buna Lager” – ressurgiu há pouco tempo. A frase que Primo Levi fez publicar, com a sua assinatura, é a seguinte: “Este livro não foi escrito para acusar, e nem para suscitar horror e execração. O ensinamento que dele vem é de paz: quem odeia, contraria uma lei lógica antes de um princípio moral”. A precisão da última sentença possui um recorte do pensamento de Pascal: aplicando até as consequências extremas aquela lei do mais forte, que surge do ódio contra quem é diferente, o resultado inevitável será o aniquilamento da raça humana: da espécie “homem” à qual se intitula a obra. Nessas palavras, bem como em seu livro, a espinha dorsal ética de Primo Levi combinava com a sua exatidão como testemunha e a sua potência como escritor.

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Domenico Scarpa é o consultor literário do Centro Internazionale di Studi Primo Levi de Turim (www.primolevi.it), para o qual organiza as Lezioni Primo Levi, conferências anuais proferidas por especialistas na obra do autor, cujos textos são publicados em versão bilíngue (italiano e inglês) pela editora Einaudi. Conduziu com Ann Goldstein a VI Lezione Primo Levi, publicada em 2015 com o título In un’altra lingua, e proferida também na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em 2016. Junto a Goldstein, colaborou – como consultor das traduções e como autor das notas histórico-críticas, além de uma bibliografia crítica – à edição em três volumes intitulada Complete Works de Primo Levi, lançada em 2015 pela Liveright de Nova Iorque. Além do volume Assim foi Auschwitz, organizou junto com Roberta Mori o Album Primo Levi, publicado em 2017 pela Einaudi; pela mesma editora sairá, em 2021, a sua Bibliografia Primo Levi – 1937-2020.

 

 

 Como citar: SCARPA, Domenico. "A estreia absoluta de Primo Levi: 'Buna Lager'". Trad. Aislan Camargo Maciera. In "Revista de Literatura Italiana", v. 2, n. 3, mar. 2021.  Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/221439 



[1] Tradução de Aislan Camargo Maciera.
[2] LEVI, Primo. “Buna Lager”. In: L’amico del popolo. Ano II, n. 26, 22 de junho de 1946.
[3] LEVI, Primo. Ad ora incerta. Milano: Garzanti, 1984.
[4] LEVI, Primo. A tabela periódica. Trad. Luís Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
[5] Pés doloridos e terra amaldiçoada,/ Longa a fila nas manhãs cinzentas/ Fuma a Buna de mil chaminés,/Um dia como todo os dias nos espera./As sirenes terríveis ao amanhecer:/ “Vós, multidão de rostos apagados,/ Sobre o horror monótono da lama/ Nasceu mais um dia de dor”./ Companheiro cansado eu te vejo no coração/ te vejo nos olhos companheiro ferido/ Tens dentro do peito frio, fome, nada,/ Você quebrou por dentro seu último valor./ Companheiro cinza fostes um homem forte,/ Uma mulher caminhou ao teu lado./ Companheiro vazio que não tem mais nome,/ Homem deserto que não chora mais,/ Tão pobre que você não tem mais dor,/ Tão cansado que não tem mais medo,/Homem apagado, que foste um homem forte:/ Se ainda nos encontrássemos/ Lá em cima, no doce mundo sob o sol,/ Qual rosto enfrentaríamos?
 [6] LEVI, Primo. Se questo è un uomo. Edizione comentata a cura di Alberto Cavaglion. Torino: Einaudi, 2012, p. XIII. Edição organizada pelo Centro Internazionale di Studi Primo Levi.
[7] LEVI, Primo. Opere complete. Vol. 3. A cura di Marco Belpoliti. Torino: Einaudi, 2018, p. 298-302.
[8] LEVI, Primo. Opere complete. Vol. 1. A cura de Marco Belpoliti. Torino: Einaudi, 1997.
[9] DE BENEDETTI, Leonardo; LEVI, Primo. Così fu Auschwitz. Testimonianze 1945-1986. Torino: Einaudi, 2015.
[10] DE BENEDETTI, Leonardo; LEVI, Primo. Assim foi Auschwitz. Testemunhos 1945-1986. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.