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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Aislan Maciera
Domenico Scarpa
Primo Levi
em
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“Fuma la Buna dai mille camini” é uma frase
que pode parecer um trava-línguas. Com as suas assonâncias e aliterações, com a
dúplice obscuridade dos “us” já no início, com a vibração de “m” e de “n” que
se alternam e se unem, com a sua teimosa sequência
de sílabas breves, poderia ser o verso de uma
cantiga infantil. É, ao contrário, o primeiro verso de uma poesia que se
intitula “Buna Lager”, onde Buna quer dizer – em alemão – borracha sintética,
enquanto a outra palavra alemã, todos conhecemos.
A
“Buna” era exatamente a fábrica de borracha destinada a surgir dentro de um dos
campos-satélites de Auschwitz, uma fábrica em cuja construção Primo Levi
trabalhou com outros dez mil deportados: em condições de escravidão e, além
disso, em vão, pois ela nunca entrou em atividade. Os vinte e dois
versos de “Buna Lager” foram uma pequena janela tipográfica que se abriu com
grossas tintas dentro da página de cultura – a chamada terza pagina – do
semanário comunista de Vercelli, “L’amico del popolo”[2].
Apareceram no número 26, do segundo ano, em 22 de junho de 1946. E são a
primeira publicação de Primo Levi depois de seu retorno de Auschwitz:
absolutamente a primeira conhecida até hoje.
Somente
nove meses mais tarde, o “L’amico del
popolo” – que era dirigido por Silvio Ortona, velho amigo de Levi – iria
publicar cinco episódios de É isto um homem?, além do célebre texto em
versos que figura hoje como epígrafe do livro: “Vós que viveis seguros/ Em
vossas casas aquecidas”.
Na
coletânea definitiva das poesias de Levi, publicada em 1984 pela editora
Garzanti com o título Em hora incerta [Ad ora incerta][3],
“Buna Lager” intitula-se simplesmente “Buna” (a precisão era, naquele momento,
supérflua) e traz a data de 28 de dezembro de 1945. Exatamente naquele mês,
Levi escrevia também “História de dez dias”, ou seja, o capítulo conclusivo de É
isto um homem?. Redigido sob forma de diário, foram as páginas do seu livro
de estreia que Levi, com a máxima urgência, sentiu o dever de escrever.
Descrevem,
como se sabe, um Lager abandonado pelos dominadores alemães: Auschwitz
em dissolução. “Buna Lager” apresenta-nos, ao contrário, a fábrica do
extermínio que funciona a todo vapor: com um ritmo intenso, com uma
vocalidade atormentada, com um registro declamatório. E essa primeira redação
do texto, subdividida em quatro estrofes que se projetam e recuam em blocos
alternados, se oferecem ao olhar do leitor com uma solenidade inclusive
tipográfica: na versão recolhida no volume de 1984, as estrofes são apenas
duas, com uma interrupção após o oitavo verso, enquanto o texto é normalmente
alinhado à esquerda.
Pode-se
dizer que na obra de Primo Levi, Auschwitz seja, antes de mais nada, um
conjunto de sons. Entre os últimos dias de 1945 e as primeiras semanas de 1946,
Levi escreveu uma dúzia de poemas que, trinta anos mais tarde, no conto “Cromo”
de A tabela periódica[4],
teria definido “concisos e sangrentos”. Esses versos, nascidos antes de grande
parte de É isto um homem?, emitem uma voz bem diversa daquela de sua
grande obra-prima. São os acordes de prelúdio do livro, mais altissonantes e
mais estridentes em relação ao memorial que lhes seguiria dali a pouco tempo.
Com a primazia assegurada pelas datas de composição e publicação, “Buna Lager”
testemunha que Levi esculpiu, primeiramente em versos, aquele Lager que
tinha apenas começado a desenhar em prosa; a poesia testemunha, em sentido mais
amplo, que Levi agiu plenamente como escritor, desde seu primeiro passo
público. Aquele breve e violento ciclo de versos projeta o leitor a uma
situação – que o autor-testemunha constrói com instrumentos formais, com
procedimentos literários – análoga àquela na qual se encontrava jogado o
neo-prisioneiro em seu ingresso no Lager. Os versos de Levi infligem um choque
acústico que se converte no instante em choque moral: não é por acaso
que os últimos versos de “Buna Lager” evoquem a vergonha de ter atravessado
aquela experiência de anulação da dignidade. “A poesia me pegou em flagrante”,
teria admitido Levi muito tempo depois.
A primeira
aparição de “Buna Lager” em L’amico del popolo deve-se a uma preciosa
pesquisa de Franco Crosio e Bruno Ferrarotti, publicada online em 2007,
na seção “Cultura” do site www.grupposenzasede.it. Aqui está o texto do poema,
assim como aparece no jornal comunista de Vercelli:
Piedi piagati e terra maledetta,
Lunga la schiera nei grigi mattini.
Fuma la Buna dai mille camini,
Un giorno come ogni giorno ci aspetta.
Terribili nell’alba le sirene:
“Voi moltitudine dei visi spenti,
Sull’orrore monotono del fango
È nato un altro giorno di dolore”.
Compagno
stanco ti vedo nel cuore
Ti
vedo negli occhi compagno dolente
Hai
dentro il petto freddo fame niente,
Hai
rotto dentro l’ultimo valore.
Compagno grigio fosti un uomo forte,
Una donna ti camminava accanto.
Compagno vuoto che non hai più nome,
Uomo deserto che non hai più pianto,
Così povero che non hai più male,
Così stanco che non hai più spavento,
Uomo spento che fosti un uomo forte:
Se ancora ci trovassimo davanti
Lassù nel dolce mondo sotto il sole,
Con quale viso ci staremmo a fronte?[5]
Aproximadamente
a um ano de distância de “Buna Lager”, em 31 de maio de 1947, também o quinto e
o último episódio de É isto um homem?, publicados em L’amico del
popolo, foram acompanhados por um poema, que nas páginas do semanário
intitulou-se “Salmo”. Foi esse o título original dos versos mais célebres de
Primo Levi: “Vos comando estas palavras”. A disposição das estrofes de “Salmo”,
em blocos recuados, era a mesma de “Buna Lager”, e assim permaneceu até hoje,
sem nenhuma mudança. Com o título, porém, não foi assim. Levi o aboliu quando
escolheu exatamente aqueles versos como epígrafe de É isto um homem?
(seja na primeira edição, lançada em Turim pela editora De Silva em 1947, seja
na versão definitiva, publicada pela Einaudi em 1958) e, enfim, o mudou para
“Shemá” quando, em agosto de 1964, republicou o poema no segundo número de Sigma,
uma revista universitária de Turim; e “Shemá” é o título com o qual o poema é hoje
conhecido no mundo todo.
“Salmo”
e “Shemá” são ambos títulos religiosos, e ambos vêm do Velho Testamento. Em
“Shemá”, a conotação judaica resulta mais clara, sendo essa a primeira palavra
da oração fundamental do judaísmo: “Shemá Israel” (“Ouça Israel, o Senhor é
nosso Deus, o Senhor é Um”). No seu comentário a uma das edições italianas de É
isto um homem? (Einaudi, 2012)[6],
Alberto Cavaglion escreve que, em “Shemá”, Levi nos faz ouvir a “voz de Deus”,
evocada no final do capítulo “O canto de Ulisses”. É uma observação
fundamentada. Foi, na verdade, o próprio Levi a definir “Shemá”, em uma
entrevista com Gabriella Monticelli[7]
(“Epoca”, 17 de setembro de 1982), como “a minha interpretação blasfema de uma
oração iídiche”. Aquele poema-epígrafe, aquela voz de comando tão solene e
irada, era uma oração laica: a paródia de uma oração, uma “contra-oração” que
afirmava a unicidade do extermínio mais do que a unicidade de Deus, e que
açoitava a indiferença do leitor-espectador recorrendo a um refinado estratagema
literário.
“É
isto um homem? é um livro escrito subitamente”, disse Primo Levi em
novembro de 1975, durante um encontro com os leitores ocorrido em Cuneo; e é
uma afirmação que pode ser entendida: tão contraída, e tão concreta, é uma
frase substancialmente verdadeira, ainda que É isto um homem? tenha
aparecido somente no outono de 1947, isto é, quase três anos depois da
liberação de Auschwitz, e quando na Itália já haviam sido lançadas dezenas de
testemunhos sobre a deportação.
Apesar
de tudo isso, deve-se destacar um fato fundamental: Levi não se dedicou à
escrita do seu primeiro livro durante a travessia da Europa que o manteve “parado”
por nove meses antes de devolvê-lo finalmente a Turim, em 19 de outubro de
1945. A prosa de seu memorial, assim como as poesias que o precedem e o
acompanham, teriam começado a ser produzidas somente alguns meses depois da sua
chegada. Por que não antes? Porque Levi não se lançou subitamente a escrever (a
fixar a lembrança, a liberá-la e a liberar-se) imediatamente depois de ter
passado pelos portões de Auschwitz, talvez durante sua permanência em Cracóvia
e Katowice? Pode-se arriscar duas razões: primeiro porque a
experiência-Auschwitz não tinha acabado, e a vicissitude da repatriação, tão
desesperadora, mas mesmo assim fascinante, foi o seu rastro; segundo porque
ainda não existia um público ao qual direcionar as histórias, dado que naquela
peregrinação continental todos eram sobreviventes ou combatentes, e todos
faziam parte da história e da geografia na qual estava o Lager. O
testemunho era direcionado a outros: a quem não esteve lá, a quem não sabia, a
quem tivesse preferido não saber, aos indiferentes, aos renitentes, aos
incrédulos. Para Levi, portanto, “a trégua” foi também o meio tempo no qual não
escreveu nada sobre Auschwitz: salvo uma significativa exceção.
Em
Katowice, na primavera de 1945, uma comissão do governo soviético interpelou
3000 deportados de várias nacionalidades, pedindo-lhes para documentar a
própria experiência no Lager de Oświęcim – o nome polonês de Auschwitz.
Foi aquela investigação precoce a delinear, de modo ainda sumário, mas com
suficiente confiabilidade, o papel-chave de Auschwitz na “solução final”: o
número de vítimas, a estrutura e o funcionamento da indústria da morte. Entre
as testemunhas, dois judeus turinenses: um médico de 47 anos, Leonardo De
Benedetti, e um químico de 25 anos, Primo Levi. Talvez redigido originalmente
em francês, talvez ainda rastreável em algum arquivo da ex União Soviética, o
seu “Relatório sobre a organização
higiênico-sanitária do Campo de concentração para judeus de Monowitz (Auschwitz
– Alta Silésia)” seria publicado em novembro de 1946, na prestigiada
revista “Minerva Medica”, um
semanário impresso em Turim que era o homólogo italiano da inglesa “Lancet”. O texto do Relatório
é conhecido pelos estudiosos há vinte e nove anos, graças à recuperação que
dele foi feita por Alberto Cavaglion, em 1991, depois de décadas de
esquecimento. Foi incluído na edição das obras completas de Levi em 1997,
organizada por Marco Belpoliti[8].
Depois que, em 2008, o texto foi revisto e corrigido pelo jovem filólogo Matteo
Fadini, o Relatório foi colocado em destaque, como abertura de um novo
volume de textos de Primo Levi, organizado pelo historiador Fabio Levi, diretor
do Centro Internazionale di Studi Primo Levi de Turim, e pelo autor
deste artigo. O livro, intitulado Assim foi Auschwitz. Testemunhos 1945-1986[9], foi publicado
pela Einaudi em 27 de janeiro de 2015, nos setenta anos da liberação do Lager,
e foi traduzido no Brasil por Federico Carotti, sendo publicado no mesmo ano
pela Companhia das Letras[10]. Na
capa do volume figura também o nome de Leonardo Debenedetti, do qual são incluídos
outros testemunhos sobre o Lager, feitos nos anos seguintes. Mas Assim
foi Auschwitz é um livro repleto de textos e documentos inéditos que o
tornam uma nova obra de Primo Levi, que se junta àquelas já conhecidas pelos
leitores. É um instrumento precioso para a releitura de sua biografia
intelectual, reconsiderando a sua capacidade de transformar-se, de prisioneiro
do Lager, como foi, em um estudioso do sistema concentracionário, e mais
propriamente em um verdadeiro pesquisador que, por toda a vida, soube agir com
base em um método dúctil e sutil, um método que o permitiu obter o máximo de
informações factuais e do significado moral de sua pesquisa de campo: um
sintagma, este último, que indica a competência de Primo Levi também como
etnólogo do Lager.
Ao
lado de outros textos reunidos em Assim
foi Auschwitz, o Relatório assinado com Leonardo De Benedetti volta para lançar a sua
desconcertante precisão testemunhal. Espanta a capacidade de memorizar, reunir
e organizar informações de minuciosa complexidade (antropológica, não menos do
que clínica; política, não menos do que científica) por parte de dois
prisioneiros colocados no chão, na lama: a sua capacidade de derrotar a
estúpida ignorância espaço-temporal que lhes foi infligida antes de qualquer
outra humilhação. O Relatório deve ser lido e estudado isoladamente, e
não como um primeiro esboço de É
isto um homem?: confirmando que,
antes de se entregar à meditação narrativa de sua obra de estreia, Primo Levi
divulgou o próprio testemunho sobre Auschwitz em um breve ciclo de versos que,
em muitos casos, apresentam-se como os versos de um atroz hino sagrado (tanto
mais sagrado, quanto mais irreligioso) e em um relato que absorve, na nua
descrição dos fatos, um ato de acusação implacável.
Esses
dois modelos de brevidade testemunhal, esses dois estilos morais ao esculpir
Auschwitz, encontrariam uma síntese em outubro de 1947, quando a editora De
Silva de Turim, dirigida por Franco Antonicelli, publicou a primeira edição de É
isto um homem?. Antonicelli fez todo esforço para promover um livro que,
imediatamente, lhe pareceu único: antecipações, anúncios na imprensa, um
folheto colorido. E depois, um quartino, isto é (no jargão da editoria
italiana) um folheto em-16º dobrado em dois, para o qual foi pedida ao autor
uma frase que resumisse o significado de seu livro. Esse “Volantino n. 15” da
De Silva também – até agora desconhecido, assim como a primeira aparição de
“Buna Lager” – ressurgiu há pouco tempo. A frase que Primo Levi fez publicar,
com a sua assinatura, é a seguinte: “Este livro não foi escrito para acusar, e
nem para suscitar horror e execração. O ensinamento que dele vem é de paz: quem
odeia, contraria uma lei lógica antes de um princípio moral”. A precisão da
última sentença possui um recorte do pensamento de Pascal: aplicando até as
consequências extremas aquela lei do mais forte, que surge do ódio contra quem
é diferente, o resultado inevitável será o aniquilamento da raça humana: da
espécie “homem” à qual se intitula a obra. Nessas palavras, bem como em seu
livro, a espinha dorsal ética de Primo Levi combinava com a sua exatidão como
testemunha e a sua potência como escritor.
Domenico Scarpa é o consultor literário do Centro
Internazionale di Studi Primo Levi de Turim (www.primolevi.it), para o qual organiza as Lezioni
Primo Levi, conferências anuais proferidas por especialistas na obra do
autor, cujos textos são publicados em versão bilíngue (italiano e inglês) pela
editora Einaudi. Conduziu com Ann Goldstein a VI Lezione Primo Levi,
publicada em 2015 com o título In un’altra lingua, e proferida também na
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em 2016. Junto a Goldstein, colaborou –
como consultor das traduções e como autor das notas histórico-críticas, além de
uma bibliografia crítica – à edição em três volumes intitulada Complete
Works de Primo Levi, lançada em 2015 pela Liveright de Nova Iorque. Além do
volume Assim foi Auschwitz, organizou junto com Roberta Mori o Album
Primo Levi, publicado em 2017 pela Einaudi; pela mesma editora sairá, em
2021, a sua Bibliografia Primo Levi – 1937-2020.
Como citar: SCARPA, Domenico. "A estreia absoluta de Primo Levi: 'Buna Lager'". Trad. Aislan Camargo Maciera. In "Revista de Literatura Italiana", v. 2, n. 3, mar. 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/221439
[4] LEVI, Primo. A tabela periódica. Trad. Luís Sérgio
Henriques. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
[5] Pés doloridos e
terra amaldiçoada,/
Longa a fila nas manhãs cinzentas/ Fuma a Buna de mil chaminés,/Um dia como todo os dias nos espera./As sirenes terríveis ao amanhecer:/ “Vós,
multidão de rostos apagados,/ Sobre
o horror monótono da lama/ Nasceu mais um dia de dor”./ Companheiro cansado eu te vejo no coração/ te vejo nos olhos companheiro ferido/ Tens dentro do peito frio,
fome, nada,/ Você quebrou por dentro seu último valor./ Companheiro cinza fostes
um homem forte,/ Uma mulher caminhou ao teu lado./ Companheiro
vazio que não tem mais nome,/ Homem deserto que não chora mais,/ Tão pobre que você não tem mais dor,/ Tão cansado que não tem mais medo,/Homem apagado, que foste um homem forte:/ Se ainda nos encontrássemos/ Lá em cima, no doce mundo sob o sol,/ Qual rosto enfrentaríamos?
[7] LEVI, Primo. Opere complete. Vol. 3. A cura di
Marco Belpoliti. Torino: Einaudi, 2018, p. 298-302.
[9] DE BENEDETTI, Leonardo; LEVI, Primo. Così fu Auschwitz. Testimonianze 1945-1986. Torino:
Einaudi, 2015.
[10] DE BENEDETTI, Leonardo; LEVI, Primo. Assim foi Auschwitz. Testemunhos 1945-1986. Trad.
Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
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