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Literatura “de urgência”: experiências de manicômio em L´altra verità. Diario di una diversa, de Alda Merini e Diário do hospício, de Lima Barreto, por Lucia Wataghin
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Alda Merini
Lima Barreto
Lucia Wataghin
em
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Imagem: pxhere.com |
Meu propósito é pensar em
pontos de vista sobre experiências de “manicômio” de dois escritores de valor, que
sofreram longas internações em instituições psiquiátricas, que denominaram,
respectivamente, “manicômio” e “hospício”: a poeta Alda Merini (1931-2009), mulher,
de condição socioeconômica modesta, na Milão dos anos sessenta e setenta, e o
escritor Afonso Henrique de Lima Barreto (1881-1922), homem, negro, modesto
amanuense na Secretaria da Guerra e jornalista na Rio de Janeiro do começo do
século XX. Alda Merini foi internada pela primeira vez em 1965 no instituto
Paolo Pini de Milão e sofreu internações por cerca de 14 anos (1965-1978), com
diagnóstico de esquizofrenia; Lima Barreto foi internado nos anos 1917, 1918,
1919, 1920, no Hospital dos Alienados (“hospício”) do Rio de Janeiro, por
delírios e alucinações devidos ao alcolismo, e morreu em 1922. Os dois autores
dedicaram especificamente a essas experiências textos narrativos de caráter
diarístico, que pertencem a um gênero que definimos, com Luciana Hidalgo, “literatura
da urgência”[1]: textos caracterizados pela urgência de
situações de extremo sofrimento e dificuldade, que nascem em relação, ou como
reação a essas condições; se encontram no limite entre documental e ficcional, e
pela forte relação com experiências autobiográficas podem ser definidos
autoficcionais, segundo uma formulação de Serge Doubrovsky. Não se quer aqui sugerir
nenhuma relação entre a qualidade da obra literária e a doença mental e/ou a condição
material de internação em hospitais psiquiátricos. Há muita autoconsciência e
ironia seja em Merini, seja em Lima Barreto (“Cada poeta vende seus apuros [guai] melhores”, é um aforismo de
Merini) e é verdade que, como disse Brodsky, mesmo nos casos de poetas que
tiveram um “destino horroroso” (como ele mesmo, preso nos anos sessenta pelo
regime soviético, e mantido inclusive em hospitais psiquiátricos), como os que
tiveram o azar de nascer na Europa nos anos vinte e trinta, “a identidade de um
poeta deve ser construída mais ao redor de estrofes que de catástrofes”[2]. Quero
aqui apenas apontar para semelhanças e diferenças entre expressões literárias
mais diretas das reações dos dois autores à violência da instituição e da
doença, pensar em dois exemplos de escritas literárias de resistência ao mesmo
tipo de situação-limite, indicar alguns dos temas que formam a rede de relações
entre doença psíquica e experiência literária: da ideia da escrita como cuidado
de si à oposição aos processos de despersonalização e aniquilação impostos às
pacientes pela doença, os tratamentos médicos e as instituições, no âmbito da relação
com as diversas autoridades: das instituições psiquiátricas, das leis, das
famílias, do sistema social, da tradição.
Nesse limiar entre
gêneros, encontramos muitos textos, diários, memórias, confissões: de
Dostoevski a Lima Barreto, de Amelia Rosselli a Alda Merini, muitos autores se
dedicaram a temas relacionados ao binômio literatura e instituições de
reclusão, privativas de liberdade, como manicômio, cárcere, campos de prisão
etc.: em Memórias da Casa dos Mortos (1861),
Dostoiévski fala de seus quatro anos de reclusão na Sibéria, de 1850 a 1854, em
campos de trabalho forçado, em que “quase todos os detentos falavam de noite e
deliravam”[3], aludindo
às relações de proximidade entre dor e doença mental; textos mais ou menos
precisamente relacionados com o tema são também, de Amelia Rosselli, Sanatorio (1954), escrito durante a
permanência no sanatório Bellevue na Suíça e Storia di una malattia (1977), documento-relato de delírios e
persecuções, onde observamos limites
sutis entre escrita literária e discurso delirante.
Os diários de manicômio
de Merini e Lima Barreto apresentam características comuns: são autobiográficos,
têm um claro compromisso com a busca da “verdade” dos fatos, têm ambição de
sinceridade, intenção de testemunho e denúncia, são exemplos de escrita de
resistência, exercício de fortalecimento do escritor contra a doença e contra
as condições de vida nas instituições; por fim, tratam da angustiante relação
com a autoridade. Os dois autores têm intenção de transformar esperiências
autobiográficas em literatura; no entanto, Merini publica seu diário
diretamente como obra literária, enquanto para Lima Barreto o diário é um rascunho
do romance, em que a experiência será filtrada novamente. O Diário do hospício é a base do romance,
inacabado, O cemitério dos vivos (coincidência,
por antítese, do título com o dostoievskiano Memórias da casa dos mortos); inspirado pela leitura de A China e os Chins e pelas gravuras que encontra no livro Recordações de viagem de Henrique C. R.
Lisboa (1888); em mérito, registra o significado da expressão “o cemitério dos
vivos”: “Nas imediações da cidade, um lugar apropriado de domínio público era
reservado aos indigentes que se sentiam morrer. Dava-se-lhes comida, roupa e o
caixão fúnebre em que se deviam enterrar”[4].
Merini informa ter se
inspirado, no seu Diario di una diversa, na
História de uma alma, de Santa Teresa
de Lisieux; no Diário, assim como na
poesia, observamos uma forte conexão com experiências místicas e com os
martírios cristãos; o manicômio é definido terra
santa, onde “o martírio se tornava tão alto, a ponto de beirar o êxtase”, ao
sair para um passeio, com outras internadas, tem uma “visão de Santa Teresinha
que amava se definir ‘pequena andorinha de Deus’”, em outra ocasião, se vê como
crucificada, vivendo a paixão de Cristo. Mas também declara: “Como disse, não
escrevo essas coisas apenas para fazer delas um romance. Eu desejo que a doença
mental seja finalmente desmistificada e reconduzida à sua verdadeira base, que
é um distúrbio da emotividade”. E ainda,
“O diário é uma obra lírica em prosa, mas é também uma exegese, uma imploração
e a completa destruição de toda filosofia e de todo ato conceitual”; no segundo
post scriptum às “Notas à margem”,
escreve “Com este volume Alda Merini coloca à disposição dos outros suas
experiências, para um profícuo êxito da psicanálise e para uma emancipação
humanística da psiquiatria”.[5]
Os dois diários nos
fornecem ao mesmo tempo autorretratos dos autores nessas situações e retratos das
condições sociais, desfavorecida, feminina e negra, nos quais é central o tema
da relação com a autoridade. As gravíssimas humilhações (em ambos, punições
estarrecedoras, vergonha pela exposição da nudez em público, com conotações sexuais
em Merini, porque os corpos nus são “deixados à mercê da obscena cobiça dos
outros”), os sofrimentos de todos os tipos, o cotidiano de manicômio e
hospício, as relações sociais, os fármacos, os pacientes, as infermeiras (“seres
desprovidos de qualquer sentimento humano”), a degradação dos corpos (“bagno di pena”, ou banho de punição) [6]; a
crueldade e a arrogância “clínica” dos médicos, que Lima Barreto discute e satiriza
em vários pontos do diário, amargamente), a perda de “todo o direito sobre o (...)
corpo – escreve Barreto – era assim como um cadáver de anfiteatro de anatomia”[7]. Ambos
tratam o manicômio como inferno[8]; para o
brasileiro, a loucura é pior que a morte: “Todos
eles (os pacientes) estão na mão de um poder que é mais forte do que a Morte. A
esta, dizem, vence o amor; a loucura, porém, nem ele”[9].
Há, certamente, uma tematização
direta da relação com a autoridade, com diferentes níveis de articulação, de
sofisticação, de cultura, e diferentes relações com a tradição, a sociedade
culta e com a lingua culta.
A relação com a tradição é
tematizada diretamente por Merini, por exemplo,
quando dedica uma poesia a Maria Corti, autoridade da crítica, afirmando
seu valor como poeta, mas se autodefinindo “simples”:
A Maria Corti
Questa malagevole sorte
mi fa soffrire
perché non sono che una semplice
e la pazzia ahimè
è un albero troppo alto
perché possa
toccarlo![10]
É uma declaração de
humildade diante da sociedade culta, talvez, mas também diante do mistério da
doença mental, e é, finalmente, uma afirmação de si. Lima Barreto tem
consciência da sua superioridade intelectual, inclusive em relação às
autoridades médicas e toda sua obra se coloca como afirmação e desafio às
instituições. Diante das humilhações, lembra outros grandes humilhados da
história da literatura e aposta no seu talento:
Voltei para o pátio.
Que coisa, meu Deus! (...) Todos nós estávamos nus, as portas abertas, e eu
tive muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoiévski, na Casa dos mortos. Quando baldeei, chorei;
mas lembrei de Cervantes, do próprio Dostoiévski, que pior deviam ter sofrido
em Argel e na Sibéria. // Ah! A Literatura me mata ou me dá o que eu peço dela.[11]
Literatura ou morte,
resgate pela literatura – a pergunta tem a ver com o lugar do intelectual e do
artista no mundo:
em nenhuma carreira se enriquece ou
mesmo se sobe em honraria, sem ter nascimento ou fortuna, ou senão empregando
muita abdicação de suas opiniões, ou – o que é pior - perdendo muito de sua
autonomia e independênca intelectual na gratidão por seu protetor.[12]
A pressão das condições
econômicas e sociais é tão grande que o escritor precisa se perguntar se com
todo o seu imenso talento e sua obra, pode conseguir um lugar no mundo, viver e
escrever, ou se deve viver nas piores condições e morrer miserável e
desclassificado.
Em ambos os diários, reconhecemos
elementos presentes na inteira obra desses dois autores: misticismo, erotismo,
desvelamento da intimidade em Alda Merini, análise social e histórica,
racionalismo, resguardo da intimidade pessoal em Lima Barreto.
Mais notáveis ainda talvez
sejam as diferentes considerações sobre o mistério da loucura: Lima Barreto
demonstra angústia e preocupação, mas contesta as teorias positivistas que
atribuíam a doença a taras, hereditariedade; ele não tem doença mental, é alcoolista;
tem horror da doença, mas não se considera louco (“De mim para mim, tenho
certeza que não sou louco”, escreve, nas primeiras páginas do Diário), dos companheiros de sofrimento, no hospício, diz: “eu passo e
perpasso por eles como um ser vivente entre sombras”. Afirma: “Não há dinheiro
que evite a Morte, quando ela tenha de vir; e não há dinheiro nem poder que
arrebate um homem da loucura”; observa, no hospício, “o horror misterioso da
loucura”, “a mais triste moléstia da humanidade”, “o espetáculo da loucura,
(...) dos mais dolorosos e tristes espetáculos que se pode oferecer a quem
ligeiramente meditar sobre ele”, “a loucura, a degradação humana – horror desse
espetáculo”[13];
faz perguntas como homem racional e critica a psiquiatria, os preconceitos, a ignorância
dos médicos, das instituições e do senso comum.
Alda Merini indaga os
mistérios da doença mental, detém-se na ideia das revelações oferecidas pela
doença e, em versos notáveis, por “quel vecchio infinito manicomio / che è
l´ospedale della gente ignuda”.[14]
Num poema enigmático,
interroga o manicômio:
Il manicomio è una grande cassa di
risonanza
e il delirio diventa eco
l´anonimità misura,
il manicomio è il monte Sinai,
maledetto, su cui tu ricevi
le tavole di una legge
agli uomini sconosciuta.[15]
A escrita é sim testemunho,
cuidado de si e resistência, mas é também o lugar onde se espera uma revelação,
porque a experiência do manicômio é reveladora; no manicômio se recebe ao mesmo
tempo a lei do encarceramento e a lei, aos homens desconhecida, da doença.
Como citar: WATAGHIN, Lucia. "Literatura 'de urgência': experiências de manicômio em L´altra verità. Diario di una diversa, de Alda Merini e Diário do hospício, de Lima Barreto". In "Revista de Literatura Italiana", v. 2, n. 3, mar. 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/ handle/123456789/220897.
[1] HIDALGO, Luciana. Literatura da urgência. Lima Barreto no
domínio da loucura. São Paulo: Anablume, 2008.
[2] BRODSKY, Joseph. A musa em exílio. HAVEN, Cynthia L.
(org.). Trad. Diogo Rosas G. Belo Horizonte/Veneza:
Ed. Ayiné, 2018, p. 174.
[3]
DOSTOEVSKIJ, Fëdor. Memorie dalla casa
dei morti. Trad. Enrichetta Carafa d´Andria. Roma: Biblioteca Economica Newton, 1995, p. 29. (Tradução minha)
[4] LIMA BARRETO. Diário do hospício. O cemitério dos vivos. MASSI, Augusto e MOURA,
Murilo Marcondes (org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 169.
[5] MERINI, Alda. L´altra verità. Diario
di una diversa. Milão: BUR, 1997, pp. 106, 107, 66, 120, 133, 145
(traduções minhas).
[6] Idem,
pp. 95, 30, 38.
[7] LIMA
BARRETO, op. cit., p. 194
[8] LIMA
BARRETO, op. cit., p. 41; MERINI,
Alda, op. cit., pp. 37, 100.
[9] LIMA BARRETO, op. cit., p.
74.
[10]
MERINI, Alda. Il suono dell´ombra.
Poesie e prose 1953-2009. BORSANI, Ambrogio (org.). Milão: Mondadori, 2010, p. 281. (A Maria
Corti. ... Essa árdua sorte / me faz sofrer / porque sou apenas simples / e a
loucura, ai de mim, é uma árvore
demasiado alta / para que eu possa tocá-la!). Tradução minha.
[11] LIMA
BARRETO, op. cit., p. 36.
[12] Idem, p. 123.
[13] Ibidem, p´. 34, 47, 74, 167, 175,
162, 104.
[14] MERINI, Alda. Il suono dell´ombra, op. cit., p. 550 (daquele velho infinito
manicômio / que é o hospital da gente nua”). Tradução minha.
[15] Idem, p. 204 (O manicômio é
uma grande caixa de ressonância /e o delírio se torna eco / a anonimidade
medida, / o manicômio é o monte Sinai, / maldito, em que recebes / as tábuas de
uma lei / aos homens desconhecida). Tradução minha.
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