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A reescrita da tradição em Elena Ferrante ou novas vestimentas para o velho realismo italiano, por Erica Salatini
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Elena Ferrante
Erica Salatini
Literatura feminina
em
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Fonte: pxhere.com |
A Vida Mentirosa dos
Adultos, de Elena Ferrante (Editora Intrínseca,
2020, tradução de Marcello Lino) começa com a afirmação da narradora Giovanna, que
relembra sua adolescência: “Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha
mãe que eu era muito feia”. Para além da ressonância da fala de Emma
Bovary, que comenta, a respeito da própria filha: “É estranho como
é feia essa criança”, citada pela própria Ferrante a propósito de seus gostos e
influências literárias[1], duas
importantes vozes narrativas ressoam no recém publicado romance ferrantiano: a
de Elsa Morante, em especial, de A ilha
de Arturo, que narra a infância do ponto de vista masculino, e outra, menos
evidente, a de Luigi Pirandello e de seu emblemático personagem Vitangelo
Moscarda, de Um, Nenhum, Cem mil, protagonista
que empreende uma incansável busca e tentativa de compreensão e de percepção de
si mesmo por meio do olhar do outro.
Giovanna, diante do espelho, reflete sobre a sua imagem a partir
dessa constatação do pai que, na narrativa, tem o mesmo efeito da constatação
da esposa de Moscarda sobre seu nariz torto: falas que desencadeiam uma
inesgotável pesquisa sobre a própria aparência, sobre como o outro o vê e por
fim, sobre como ele mesmo se vê. A partir da fala da esposa tem início a crise
de identidade de Moscarda, o desdobramento da personalidade, a decomposição em
vários eus, a dissociação entre “o que eu sou e o que o outro vê”, temas
fundamentalmente pirandellianos, mas que também estão presentes na jovem
personagem de Ferrante, em chave adolescente.
Após a observação do pai, a jovem sai da tranquilidade de sua vida
idílica, acomodada no seio da burguesia intelectual napolitana, no nobre bairro
do Rione Alto, limpo e organizado, em uma busca pela “feia” tia Vittoria, irmã
do pai, duplo familiar às avessas, trazendo para a sua realidade a degradação e
a transgressão, representada na narrativa pela pobreza e pela sujeira do bairro
do Vomero, pela linguagem “baixa” e vulgarizada, muitas vezes dialetal e, por
fim, pela descoberta da sexualidade, que começam a fazer parte da antes pacata vida
da adolescente.
A linguagem usada no romance também acompanha esse desdobramento:
num primeiro momento, ainda que reflita a fala de uma adolescente, é clara,
límpida, em um italiano padrão, escolar, fluente e bastante sofisticado. O
encontro com as origens familiares traz para a narrativa o registro coloquial,
a vulgaridade da linguagem sexual, expressa na maioria das vezes pelo dialeto[2]: a
linguagem “baixa” dos familiares excluídos vai aos poucos se misturando ao
universo da linguagem “elevada”, característica dos pais, professores de liceu,
dos quais Giovanna vai, também aos poucos, se afastando.
Mas não ecoa na narrativa de Ferrante apenas o duplo
pirandelliano, o relativismo do olhar, da percepção do eu em relação ao outro,
mas também a questão da máscara social que em A Vida Mentirosa dos Adultos se traduz como mentira. A
vida mentirosa dos adultos se revela como mascaramento social: o universo
harmonioso dos pais, a linguagem perfeita que usam são, na verdade, mentiras
que os pais proíbem a menina de dizer, mas que contam o tempo todo ao assumir
máscaras de uma feliz vida conjugal. São essas máscaras que Giovanna vai
depondo, uma a uma, e que a fazem se aproximar do aparente universo hostil da
tia Vittoria, que em princípio lhe parece mais autêntico. Aos poucos a tia se
mostra uma mulher de uma beleza sensual, decomposta, embora a feiura reapareça
sempre, associada à espontaneidade de seu caráter, à sua franqueza grosseira
diante de uma sobrinha acostumada a se conter.
É nesse espelho que Giovanna vai se mirando e que
aos poucos vai revelando uma jovem sensual, que se apropria de sua origem tanto
quanto a rechaça. A identidade se constrói pela negação: negação da semelhança
com os pais, negação da semelhança com a tia, e por fim, reivindicação de uma
identidade autônoma: Giovanna se desconstrói em um eu diferente de si, para se
reconstruir apropriando-se de uma nova identidade, que passa justamente pelo
conhecimento da alteridade, da familiaridade com a tia, com as origens pobres e
“sujas” negadas pelo pai.
No que se refere aos intertextos presentes no romance, para além da
alusão inicial a Flaubert, do resgate da forma realista-tradicional da
narrativa que remete à obra de Morante e da temática pirandelliana, sabe-se que
a literatura da contemporaneidade é um mosaico de citações, uma rede contínua
de intertextos, colagem, reescrita, fccionalização de si, da literatura, da
história, sendo Elena Ferrante, ela mesma, uma ficção, colagem e citação, desde
a escolha do próprio nome: Elena Ferrante ressoa Elsa Morante, tanto quanto
pela escolha da forma narrativa que ressoa aquela usada pela Morante.
A aparente forma tradicional da narrativa de Ferrante que
conquista leitores em todo o mundo, justamente porque parece não ter nada de “contemporâneo”,
sobretudo no que se refere à autoficção, à presença constante do discurso
metaliterário, que confere à narrativa seu caráter híbrido, sua densidade
reflexiva, em que o eu-subjetivo escreve, mas não consegue mais narrar
histórias, não só como Benjamim assinalou, há quase um século, mas como também assinala
Tommaso Pincio, em uma interessante e recente discussão com Nicola Lagioia e
Claudia Durastanti, postada perfil Facebook de Pincio, sobre a escrita (e a
reescrita) na contemporaneidade: o romance contemporâneo, além de ser uma
narrativa híbrida, parece ser hoje em dia uma espécie de “finti diari” ou
“diari pubblici” em que o autor
“smette i panni del mero narratore e disquisisce,
a volte parlando di sé e delle proprie esperienze, a volte parlando di fatti
d’altri, di persone e vicende più o meno note al lettore. Non meno frequente,
se non predominante, è poi il caso dello scrittore che mescola più piani, il pubblico
e il privato, i fatti d’altri e quelli propri, magari con qualche invenzione. A
ben guardare, malgrado venga rappresentato come uno scrivere nuovo, più consono
ai tempi e più meritevole di considerazione, questa letteratura raminga e
trasversale, solo apparentemente antinarrativa, non è affatto una novità”[3].
De fato, se tantos são os leitores saudosos de uma narrativa
tradicionalmente romanesca, tantos são os críticos que não veem nada de novo na
ficção de Elena Ferrante. Em um curso sobre a pós-modernidade e a modernidade
líquida na narrativa italiana, ministrado na Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP, em 2010, Remo Ceserani fazia notar algumas técnicas e procedimentos
pós-modernos muito utilizados por escritores contemporâneos, inclusive pelo
próprio Pincio citado acima: a reescrita, a citação e a colagem narrativa, a constante
alusão a outros textos, a ficcionalização da história ou da própria literatura,
os ecos intertextuais que constituem o próprio tecido narrativo da literatura
dos anos 1990-2000, mas já presente na literatura italiana dos anos de 1980, procedimentos
presentes, sobretudo, na obra de Eco, Calvino e Tabucchi, representantes do
“pós-modernismo” italiano[4]. Procedimentos
que impossibilitariam a literatura contemporânea de se afirmar como escritura
autônoma, afirmando-se mais como “reescrita” e “intertexto”, já que contém em
si todas as inúmeras vozes de sua tradição, de seus antecessores, que ecoam em
cada uma de suas palavras e frases. Daí a constante sensação do leitor
contemporâneo de que não lê nada de novo, pois nada de novo se escreve.
Assim, Elena Ferrante, não muito diferente do que faz grande parte
de seus contemporâneos (que se valem da autoficção, do discurso metaliterário,
da ficcionalização de sujeitos históricos e/ou literários, etc) se
autoficcionaliza: a ficção narrativa de Ferrante começa antes mesmo da sua
escrita, quando ela inventa para si não um pseudônimo, ou um heterônimo
sofisticado como os de Pessoa, mas uma espécie de perfil literário “falso”,
como um usuário do Facebook que quer participar da rede, mas não se dar a
conhecer por seu público.
Protegida sua identidade, Ferrante pode “reescrever” a sua versão
feminina da Ilha de Arturo,
misturando-a a sua versão adolescente de Um,
nenhum, cem mil. O resultado disso é A Vida Mentirosa dos Adultos,
que com seus defeitos e qualidades, retoma a tradição literária italiana. Da
forma à temática, a história de Giovanna, com sua vivência contemporânea, traz em
si muito do velho realismo literário italiano, dos sempiternos questionamentos
da ficção moderna, numa “banalização” ou “descomplicação”(?), se pensarmos no leitor
comum, da forma literária, escrevendo nos moldes tradicionais da literatura romanesca:
um narrador distanciado no tempo que conta um episódio de sua vida, refletindo
sobre ela. Nas palavras do escritor brasileiro Cristovão Tezza:
“É uma prosa limpa, enraizada na tradição convencional mas muito
forte do realismo social italiano e, no caso dela, temperado pelo arcaísmo
napolitano. E tem uma tonalidade contemporânea, que é o olhar narrativo de hoje
sobre a questão da mulher na formação das gerações anteriores. E as figuras são
densas, e não caricaturas”[5].
Por fim, a história de Giovanna é uma típica história adolescente
que narra as transformações, as dificuldades do processo de crescimento, o
desencanto com universo dos adultos, nada muito distante da vida comum de
muitos adolescentes, mas o que adquire certa relevância na narrativa é esta
percepção “pirandelliana” da necessidade de uso das máscaras sociais como
exigência para ingresso na idade adulta, o que ao final é aceito pela jovem,
não sem sofrimento, revolta ou rebeldia. Construção bem engendrada de uma
autora culta que não se vale de expedientes literários sofisticados ou
metaliterários para refletir sobre a trajetória narrativa de sua personagem, mas
apenas da memória, que por vezes é tateante, falseia, deixa algum “buraco” na
narrativa. Novas vestes para o já envelhecido realismo italiano.
________________________
Como citar: SALATINI, Erica. "A reescrita da tradição em Elena Ferrante ou novas vestimentas para o velho realismo italiano". In "Revista de Literatura Italiana", v. 2, n. 4, abr. 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/ handle/123456789/222221
[1] Cf. Guilherme Sobota
,“Quais são as influências de Elena Ferrante?”,
em O Estado de S. Paulo, 29 de
agosto de 2020.
[2] Em
termos de tradução, não existe uma perda dessa percepção porque a escritora
italiana não usa expressamente o dialeto, mas indicações como “ela falou em
dialeto”, o que não gera um problema de correspondência tradutória. O tradutor
se limita muitas vezes a substituir expressões com potencial dialetal por
gírias e expressões coloquiais.
[3] Cf. perfil
Tommaso Pincio, postagem do dia 2 de janeiro de 2021. Tradução minha: “tira a roupa do mero narrador e disserta,
às vezes falando de si e das próprias experiências, às vezes falando da vida
dos outros, de pessoas e acontecimentos mais ou menos conhecidas pelo leitor.
Não menos frequente, se não predominante, é o caso do escritor que mistura
vários planos, o público e o privado, a vida dos outros e a sua própria, talvez
com alguma invenção. Olhando bem, embora seja representado como um modo novo de
escrever, mais apropriado aos tempos e mais merecedor de consideração, esta
literatura andarilha e transversal, apenas aparentemente antinarrativa, não é
de modo algum nova”.
[4] O uso do termo o pós-modernismo
italiano se referindo à literatura italiana é bastante controverso, como notava
o professor Ceserani em Raccontare il
postmoderno. (Torino: Bolati Boringhieri, 1997), mas também Monica
Jansen em Il dibattito sul
postmoderno in Italia. In bilico tra dialettica e ambiguità Strumenti di
letteratura italiana. (Firenze:Franco
Cesatti Ed, 2002).
[5] Tezza citado por Ana Sacoman em “O
fenômeno Elena Ferrante”.O Estado de S. Paulo, 28 de agosto de 2020.
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