La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Literatura e documento a partir de Maurizio Ferraris, por Kelvin Falcão Klein

 

Foto: pxhere.com


Em 2009, o filósofo italiano Maurizio Ferraris publica seu livro Documentalità: perché è necessario lasciar tracce, um denso e amplo trabalho fundado no diálogo entre discursos e disciplinas: a teoria política em contato com a semiótica e a fenomenologia; a ontologia em contato com a pragmática, a arquivologia e as artes visuais, oscilando entre o registro físico e o metafísico.
Ao fim do livro, na forma de um epílogo, Ferraris apresenta as onze teses fundamentais que organizaram sua pesquisa:

 
1- A ontologia cataloga o mundo da vida;

2- Existem três tipos de objetos: naturais, ideais e sociais;

3- A ontologia é distinta da epistemologia;

4- Os objetos sociais dependem dos sujeitos, mas não são subjetivos;

5- A regra constitutiva dos objetos sociais é Objeto = Ato Inscrito;

6- Nada de social existe fora do texto;

7- A sociedade se baseia não na comunicação, mas no registro;

8- A mente é uma tábua que recolhe inscrições;

9- Os documentos são, acima de tudo, inscrições de atos;

10- A letra é o fundamento do espírito;

11- A individualidade se manifesta na assinatura.[1]
 

Gostaria de comentar as duas últimas teses de Ferraris, embutindo o comentário em uma reflexão mais ampla sobre a literatura e seu uso do arquivo e do documento. Muitas vezes a ficção faz uso do arquivo de forma temática: um personagem visita um arquivo (ou qualquer instalação que funcione como repositório organizado de materiais) e ali descobre elementos que dão sustentação à continuidade da narrativa (um bom exemplo é o romance Todos os nomes, de José Saramago). Outras vezes, a ficção faz uso do arquivo de forma enviesada, tomando-o a partir de sua peculiar dinâmica de visibilidade, inscrição e manutenção de enunciados diversos (podemos pensar em figuras como o Bartleby de Herman Melville, ou Bouvard e Pécuchet, de Gustave Flaubert, envolvidos pela pulsão arquivística do conhecimento e da burocracia).

Ferraris afirma que a letra é o fundamento do espírito e que, em decorrência disso, sua ontologia dos objetos sociais se caracteriza como uma fenomenologia da letra (lembrando que, para Ferraris, os objetos sociais resultam de atos sociais, caracterizados pelo fato de serem inscritos, seja materialmente, seja “espiritualmente”). Essa fenomenologia da letra de Ferraris se dissemina em ao menos três direções: trata da documentalidade aplicada ao espírito subjetivo (a alma/mente como tábua, como plataforma de inscrição, seguindo a tese oito), ao espírito objetivo (o mundo das instituições, da lei, da burocracia e do contrato social) e ao espírito absoluto (arte, religião, filosofia). Ferraris resume a questão da seguinte forma: “nenhuma produção do espírito poderia subsistir sem a letra, o registro e o documento; e, mais radicalmente, o espírito encontra sua condição de possibilidade na letra, nas inscrições que nos constituem como seres sociais”.[2]
No mesmo ano de lançamento do livro de Ferraris, 2009, a escritora Fleur Jaeggy publica pela Adelphi um pequeno volume intitulado Vite congetturali. O projeto de Jaeggy é bastante adequado para uma tentativa de visualização das teses de Ferraris, uma vez que também se pauta pelo diálogo entre disciplinas e discursos, tomando a documentalidade e o uso do arquivo como elementos centrais para a ficção (uma “ficção” que toma uma postura absorvente com relação aos gêneros que toca – do biográfico ao ensaístico).
Jaeggy transforma o registro histórico de três vidas (de três escritores muito conhecidos: Thomas De Quincey, Marcel Schwob e John Keats) em três pequenos “romances”. É importante ressaltar que o livro de 2009 só se transforma em “documento” (tanto da poética de Jaeggy quanto da fortuna crítica dos autores citados e trabalhados) na medida em que reconfigura, manipula e reúne textos esparsos da autora: os capítulos sobre De Quincey e Schwob foram publicados originalmente como peças de acompanhamento de edições prévias desses autores, sempre pela Adelphi (De Quincey: Gli ultimi giorni di Immanuel Kant, 1983; Schwob: Vite immaginarie, 1972). A trajetória editorial dos textos de Jaeggy já mostra a dinâmica da documentalidade e da inscrição, indicando como tal dinâmica é parte central da estratégia de reconfiguração histórica dos textos.
A “conjectura” que Jaeggy coloca já no título diz respeito à instabilidade dos arquivos e dos documentos, mostrando que as “vidas” dos sujeitos não se esgotam em suas dimensões biológicas, legais ou históricas (nesse sentido, as “vidas” participam de forma tensa daquelas três esferas do espírito apontadas por Ferraris: subjetivo, objetivo e absoluto). Quando escreve sobre Schwob – especialmente sobre o efeito do suicídio do amigo Georges Guieysse sobre ele –, Jaeggy seleciona um momento representativo desse atravessamento de dimensões: “A partir de então, Marcel teve como morada a austera e muitas vezes vazia sala da Bibliotèque Mazarine e dos Arquivos, onde desenterrou documentos sobre Villon e o bando dos Coquillards. Ele se tornou um escritor”[3]
É a partir da inscrição psíquica da morte do amigo que Marcel decide “morar” na Biblioteca; é a partir das inscrições históricas sobre Villon encontradas nos arquivos que Marcel decide o próprio destino e o próprio ofício; é a partir dessa tensa convivência entre o espírito subjetivo (a angústia pelo amigo morto), o espírito objetivo (a instituição representada pela Biblioteca) e o espírito absoluto (a arte literária que Schwob absorve e reproduz) que Schwob transforma a própria vida em inscrição e documento, performance que é atualizada por Jaeggy em sua narrativa.
A última tese de Ferraris trata da assinatura, entendida como um modo de representar publicamente a própria presença e identidade: a assinatura consiste em uma escrita do próprio nome que, ao mesmo tempo, afirma e questiona a validade das “normas caligráficas”. “O sentimento de unicidade que caracteriza todo sujeito depende de seus peculiares desvios da norma”, escreve Ferraris, e continua: “Este princípio de individuação vale para as obras de arte (caracterizadas pelo estilo) e para os signos de reconhecimento que se encontram nos documentos”[4]
Mais uma vez se trata da múltipla dimensionalidade da inscrição, mas agora com um complicador: a identidade, a presença e a irrepetibilidade do corpo humano singular (e como essa unicidade se transforma em linguagem, em grafia, escrita e, finalmente, assinatura). Um dos exemplos de Ferraris é o quadro “O casal Arnolfini”, dentro do qual o pintor assina: Johannes de Eyck fuit hic 1434. Segundo Ferraris, o quadro condensa todas as dimensões do objeto social: “tanto a obra, o ato inscrito que temos diante dos olhos, quanto a representação do matrimônio, ou seja, o documento de outro ato inscrito, com todos os seus ingredientes – os noivos, as testemunhas e a assinatura”[5]
Por outro viés, em seu livro de 2008 (Signatura Rerum), Giorgio Agamben também teorizou a assinatura, ou ainda, “a estrutura singular das assinaturas humanas”, fazendo referência a “um quadro na sala de um museu” no qual se vê “a escrita Titianus fecit” (p. 54). Ainda que não afete diretamente a materialidade do quadro, a assinatura transforma radicalmente a experiência de contemplação e circulação cultural do objeto: “quando se trata de uma obra que entra nos termos cronológicos dos direitos autorais”, comenta Agamben, “a assinatura implica a produção das consequências jurídicas que dependem desses termos”[6]
Para encerrar, gostaria de resgatar um segundo comentário de Agamben, agora de um livro mais recente, Autoritratto nello studio, de 2017. Assim como o livro de Jaeggy, o “autorretrato” de Agamben é um projeto híbrido e heterogêneo, atravessado pela presença de diferentes discursos e disciplinas. A inscrição da subjetividade se dá a partir da reivindicação de inscrições alheias, deslocadas no tempo e no espaço, formando uma sorte de desenho narrativo compósito (feito daquelas três esferas do espírito – subjetivo, objetivo e absoluto –, se seguirmos a nomenclatura de Ferraris).
Relembrando o seminário de Martin Heidegger que acompanhou no ano de 1968, Agamben evoca os encontros, as discussões e os participantes, reproduzindo no livro uma fotografia do grupo tirada na cidadezinha de Thouzon. Agamben escreve ainda que nesse período enviou um cartão-postal para Giovanni Urbani, historiador da arte e restaurador com quem o filósofo dividia o apreço pela obra de Heidegger. “Sabendo que seria uma agradável surpresa”, escreve Agamben, “pedi a Heidegger sua assinatura”[7]. Na página seguinte, Agamben reproduz o cartão-postal, frente e verso: conseguimos ver com certa dificuldade a assinatura de Heidegger, a terceira de cima para baixo (o primeiro a assinar é Agamben, somente “Giorgio”; o segundo é Dominique Fourcade, somente “Dominique”).
A inscrição de Heidegger no cartão-postal não indica apenas a presença de um corpo irrepetível em um determinado espaço e tempo: indica também a inscrição da obra de Agamben no interior do ensinamento de Heidegger e no desdobramento de sua amizade com Giovanni Urbani (o único que não assina, mas cuja existência é indispensável para o evento do endereçamento ao qual Agamben faz referência). Ao solicitar a assinatura de Heidegger, Agamben não apenas confirma a presença do filósofo diante de si (como uma sorte de presente para Urbani, ausente), mas inscreve e documenta o vínculo entre eles em um “objeto social”, como defende Ferraris: um objeto social – o cartão-postal – ligado ao espírito subjetivo (a mente do filósofo em formação é uma tábua que recolhe inscrições), ao espírito objetivo (a instituição do ensino, da passagem e da herança) e o espírito absoluto (a filosofia como discurso e disciplina).

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Como citar: KLEIN, Kelvin Falcão. "Literatura e documento a partir de Maurizio Ferraris,". In "Revista de Literatura Italiana", v. 2, n. 4, abr. 2021.  Disponível em:  https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/222645



[1] FERRARIS, Maurizio. Documentalità: perché è necessario lasciar tracce. Roma-Bari: Laterza, 2009, p. 358-362.
[2] FERRARIS, Maurizio, op. cit., p. 361-362.
[3] JAEGGY, Fleur. Vite congetturali. Milano: Adelphi, 2009, p. 47.
[4] FERRARIS, Maurizio, op. cit., p. 362.
[5] FERRARIS, Maurizio, op. cit., p. 335.
[6] AGAMBEN, Giorgio. Signatura rerum: sobre o método. Trad. Andrea Santurbano e Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 55.
[7] AGAMBEN, Giorgio. Autoritratto nello studio. Milano: Nottetempo, 2017, p. 22.