La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Prólogo de L’enigma della bellezza, de Franco Rella

 

Imagem: pxhere.com


Apresentação

Marina Câmara e Daniela Amon

 Franco Rella (Rovereto, 1944), um dos principais filósofos italianos da contemporaneidade, foi professor titular do Istituto Universitario di Architettura di Venezia (IUAV), instituição a qual deixou recentemente por, segundo ele próprio, perceber um recente processo de restrição do espaço crítico no âmbito acadêmico. A atividade de ensino sempre foi vivenciada por Rella como algo imprescindível, sobretudo por considerar o contato com os estudantes um rico intercâmbio intelectual, disparador de novas pesquisas. Além da IUAV, atuou como professor em diversas outras universidades italianas e algumas estrangeiras, além de ter colaborado com inúmeras instituições artísticas. É autor de uma vasta obra, em sua maioria inédita no Brasil, que contempla sobretudo a filosofia e a literatura.
O autor se aventura pela disciplina de Estética de maneira heterodoxa, em uma abordagem interdisciplinar que alia brilhante e habilmente a tradição filosófica e a arte – em especial, mas não exclusivamente, a literatura –, rompendo com as convenções e extrapolando os limites do que seriam considerados conhecimentos e métodos específicos de um domínio ou de outro. Para tanto, o filósofo recorre e dialoga com os mais diversos autores e artistas, tais como o físico inglês Sir Isaac Newton, indo de Heráclito a Rilke, passando por Sófocles, Hölderlin, Nietzsche, Baudelaire e Manet, de Platão a Kafka, Simone Weil, Benjamin e Celan (para citar apenas alguns exemplos de referências marcantes). Franco Rella tece suas ideias, ao passo que lança um olhar crítico e cuidadoso às produções de pensadores e artistas canônicos de toda a história da cultura ocidental, sem jamais cessar, no entanto, de encarar atentamente o presente, posicionando-se acerca de acontecimentos contemporâneos e da realidade social e cultural de nossa era.
Seu livro L’Enigma della Bellezza, cuja tradução do prólogo é aqui entregue ao público de língua portuguesa, foi publicado originalmente em 1991 pela editora Feltrinelli e, em 2006-07, nas Coleções “Campi del Sapere” e “Universale Economica – SAGGI”, respectivamente. Nele, Rella investiga o embate entre o conceito de beleza proposto por duas linhas filosóficas: a linhagem pitagórico-platônica, defensora do belo como harmonia e da existência de um Uno, e a tradição trágica, inaugurada por Heráclito, apoiado, por sua vez, no orfismo, que via no homem um ser de fronteira entre o dia e a noite, entre a luz e as trevas, entre a vida e a morte, e a beleza, a harmonia, seria originada da tensão entre contrários, da fratura. Rella, aqui, toma partido da parte supostamente perdedora nesse embate filosófico histórico, a parte trágica, por essa permitir, no interior de seus jogos ambíguos, a presença do múltiplo, da diferença, em oposição à hegemonia de um Uno que se mostra frequentemente intolerante. A investigação do enigma da beleza, aqui, vai muito além de uma pesquisa de ordem meramente epistemológica, mas retorna às raízes metafísicas da questão, à medida em que Rella vai sabiamente dissecando a relação existente, ao longo da história da cultura ocidental, entre o conceito de beleza e as diferentes concepções de verdade, justiça e, por fim, do próprio mundo, do ser humano e de suas origens. O enigma da beleza, portanto, está longe de ser uma discussão datada, fossilizada na história da filosofia e abandonada após o século XIX, mas é, ao contrário, fluida, dinâmica, mutável e pertinente aos dias contemporâneos. Pensar o enigma da beleza é pensar o mundo, a realidade, é pensar a relação do sujeito com o mundo: questões essas que são felizmente irresolúveis e, portanto, sempre atuais.
Ao colocar-se ao lado de Heráclito e dos Trágicos, explicitando o nascimento do “trágico moderno” inaugurado por Hölderlin no limiar do século XVIII para o XIX e a presença dominante do pensamento trágico na produção artística, não obstante a quase total hegemonia da tradição pitagórico-platônica no domínio da filosofia, Franco Rella demonstra o que seria, arriscamos dizer, uma profunda fé na arte. Não uma fé cega e incondicional, nem tampouco uma crença de que a arte propõe as soluções para problemas de qualquer ordem. Muito pelo contrário: uma fé na arte justamente pelo fato dela não oferecer soluções, mas questionamentos, possibilidades; em suma, por ela permitir, nas palavras de Calvino, citadas pelo autor, o “conhecimento como multiplicidade”. O diálogo fictício criado pelo autor para seu prólogo nos convida a pensar, por fim, a beleza enquanto possibilidade de coexistência das controvérsias.
 
Prólogo de L’enigma della bellezza, de Franco Rella

 Tradução de Marina Câmara

“Parece-me desagradável isso que você diz. Não tem uma alma gentil: aquilo que diz não é senão a verdade e, portanto, é injusto.”
“Mas não há nada para além da verdade. Esta é a finalidade de tudo que buscamos. É a justiça por definição.”
“Finalidade?”
“No sentido mais próprio da palavra. É o telos: o fim e o final, o objetivo e a fronteira.”
“E esta fronteira, do quê nos protege? O quê ela exclui?”
“Em primeiro lugar, da não-verdade. Não há duas vias ou pelo menos uma delas – a que nos leva à aparência do não-verdadeiro – é enganosa e, como tal, gera comportamentos enganosos sobre os quais se funda um ethos, que nos leva à obscuridade. Esta não-luz deve ser combatida e vencida, ou pelo menos devemos iluminar o opaco, com a luz da verdade, contra sua própria não-verdade...”
“Mas se o homem de luz combate e vence o homem da sombra, então ele não é um homem, mas apenas uma parte sua. Porque o homem é aquele que está entre a luz e as trevas, entre a vida e a morte: é algo limítrofe e o seu lugar, o seu ethos, é atopos também em relação à verdade ou ao domínio da luz.”
Atopos: absurdo, portanto, assim como nos ensinou Aristóteles.”
“'Des-situado’ e insituável, melhor dizendo. E o horror não está em ser atopos, sem domicílio, mas sim em estar confinado em um lugar, em um habitat. É uma doença, ou melhor, uma injustiça: é a adikía[1] à qual as coisas são constrangidas e que para existirem precisam tomar o lugar umas das outras: a coisa verdadeira no lugar da coisa não-verdadeira. Devem para tanto combater e vencer, cometendo, assim, injustiça e arcar com as consequências, segundo a ordem do tempo. Assim começa uma história ou a história como uma sequência interminável de vitórias e de derrotas. A razão deve, segundo seu pensamento, recitar este drama infinito: opor-se a si mesma, vencer-se, degradando uma parte de si em virtude da não-razão...”

“São fantasmas isso que você levanta. No fundo, aquela parte obscura, que você quer erguer contra a verdade não conta nada e é, como foi dito, um nada.”[2]
“Mais do que fantasmas (phantasmata), aquilo que levantei são aquelas visões (phsama) que o homem vê na sua luz interior. Além disso, se você considera esta parte do homem “nada”, é obrigado, como havia esplendidamente visto Sófocles, a considerar o homem no seu conjunto, as gerações dos mortais, isa kai to meden: iguais a zero, iguais a nada.”
“Mas como faríamos sem a verdade?”
“Não, nada conseguimos sem a verdade, assim como nada conseguimos sem a não-verdade. Precisamos de ambas e isto é, provavelmente, aquilo que foi chamado de sabedoria.”
“Mas como podem coexistir a verdade e a não-verdade? Toda ordem se torna algo como um amontoado de coisas jogadas ao acaso.”
“Coexistem em uma unidade, que é controversa, e esta é a única justiça imaginável. Aqui, de fato, as coisas emergem na tensão que as faz estarem na própria diferença. Qual poderia ser, caso contrário, o lugar da verdade, senão em uma relação travada com aquilo que se mostra como não-verdade?”
“Não existe conceito para uma tal controvérsia ou, pelo menos, você não o propôs a mim.”
“De fato não tenho um conceito para propor-lhe, mas apenas um nome.”

“Pronuncie-o. Faça com que ele intervenha em nosso discurso: faça-o aparecer, chame-o para dentro do nosso logos.”

Tò kalón, o belo, que segundo Platão, Proclo, Diógenes e Ficino deriva justamente de kalein, chamar...”
“Não brinque com as palavras. O que tem a ver a beleza com tudo isso? Você está procurando a velha via de fuga na estética: um amontoado de imagens jogadas ao acaso, que se erguem contra o raciocínio e procuram vencer a verdade com a suposição, com a sua matizada iridescência. Não é responsável, não é justo isto que está fazendo.”
“Eu lhe disse que tinha um nome e não um conceito. Mas este é o nome que foi dado ao limiar em que coexistem os contraditores, os primeiros dentre todos da verdade e da não-verdade. Permite-me uma citação? Dostoiévski disse que a beleza ‘é uma coisa terrível e pavorosa, porque é indefinível e defini-la não se pode, já que Deus não nos deu senão enigmas. Aqui as duas vias se unem. Aqui todas as contradições coexistem...’. Como podemos pensar que a estética tenha vez em relação a uma beleza que dá medo, que é, provavelmente, o medonho em si?”
“Estamos em uma estética estranha, mas ainda em uma estética. Para além desta, no âmbito da ética ou dos comportamentos, como é possível escolher, agir a partir desta consistência híbrida: como podemos fundar nosso comportamento sobre a beleza, ainda que sobre esta beleza?”
“‘Esta é uma beleza que pode inverter o mundo, que pode salvá-lo’, disse ainda Dostoievski. Mas não foi o único. Hölderlin, que você tanto ama, disse que antes da grande palavra heracliteia, que prega a unidade que contém a diferença, e que é a própria essência da beleza, não existia filosofia alguma.”
“Você faz passar por filosófico um discurso que não se move senão através das suposições da poesia.”
“Mas nós não partimos da filosofia. Não nos comprometemos em condenar ou defender a filosofia. Partimos do problema da verdade e da justiça. A verdade que não é injustiça é o nome daquele limiar do qual emerge e se faz visível aquilo sobre o que nós devemos pensar, e que a filosofia, na sua linguagem, talvez nos impeça de fazê-lo.”
“E este impensável deveria se encontrar e se pacificar na beleza? Permita-me: outra vez ainda, em uma dimensão estética?”
“Esta beleza é escândalo, de modo algum, conveniência. Reduzi-la à dimensão estética – a qual foi definida pelo saber da universidade e da academia a partir do final do século XVIII – é negar uma das maiores experiências metafísicas da história da humanidade. Reduzi-la a um gosto estetizante é sacrilégio, obscenidade...”
“É curioso! Você quer desempoeirar a metafísica num momento em que esta está sendo ultrapassada.”
“Quando eu falo de metafísica, falo exatamente de um excesso, não de uma simples ultrapassagem. Falo de algo que está para além das coisas que são: de um andar em direção àquilo que podem ser. As coisas, a realidade, não se exaurem no presente já que, como disse ainda Dostoiévski, uma enorme parte sua está nele confinada sob a forma de palavra futura, ainda escondida, ainda não dita.”
“Beleza contra razão, portanto, contra o logos que analisa o real, o ordena.”
“Gostaria de responder-lhe com um dito de Simone Weil. Logos e Eros são um. E acrescentaria: são uma forma que mantém em sua ordem, inclusive, a desordem e o caos. É neste contexto que eu gostaria de lhe repropor o tema da justiça. A verdadeira injustiça, a adikía, é a força que obriga o todo a ser somente um: aquela força que é uma espécie de sonho em que os fracos são constrangidos a sonhar com os vencedores.”
“Você almeja um mundo pacificado. Mas polemos, a guerra, é pai de todas as coisas e a tudo governa.”
“Como disse Petrarca, comentando Heráclito, omnia secundum litem fieri. Estou de acordo. As coisas devem se tornar, advir a partir da controvérsia na qual não pode emergir senão suas diferenças. Fieri: devem justamente se tornar, e não serem aniquiladas. Eros é este conflito não-violento. De fato, não é o ódio, como se dizia, mas sim o amor que divide e dá, ao mesmo tempo, forma ao mundo. O amor dilacera a unidade do mundo, torna evidentes as diferenças, possíveis os contraditores e é esta experiência que plasma o mundo em uma unidade conflitante, díspar.”
“Tínhamos partido do tema da justiça...”
“O amor não gera nem se sofre violência: é perfeitamente justo, diz ainda Simone Weil. A referência é a passagem do Simposio em que diz Agatão: ‘O ponto mais importante é que Eros não faz injustiça nem a ela se submete, nem a um deus, nem de um deus, nem a um homem, nem de um homem.’ Mas se o amor não gera nem sofre violência significa que há concordância em ser discordante em virtude do fato de que no amor não há domínio. É, portanto, uma concordia discors em que estão díkaia: as coisas justas.”
“Voltamos, portanto, à filosofia, e com tudo. Voltamos a Platão que, inclusive, superou a diferença na ideia que permanece igual a si mesma. Está aqui na sua obra o ponto de maior tensão contra a tragédia, mas também contra o sofismo.”
“De fato esta proposição é o logos de Agatão, o poeta trágico, que foi repreendido, afrontado, vencido pelo discurso de Sócrates, ou melhor, pelo logos de Diotima transmitido por Sócrates. Lembra-se de Hiperião? A Diotima de Hölderlin repete o discurso de Agatão, dele se apropriando, em uma daquelas inversões que fazem do platonismo o pensamento mais móvel e mutável, assim como o Eros de Agatão, que é fluido e capaz de assumir todas as formas. De fato, Diotima diz a Hiperião que ele, ainda que seguindo um ideal de justiça, conquistará com a força, se colocará contra ele, na injustiça que o atormentará e o exaurirá. Parece-me que este pensamento é decisivo justamente nas contradições extremas da nossa época, em que achar que resolver os conflitos e as diversidades, com violência e com a força, é colocar na ordem do dia o fim da humanidade.”
“Estranho logos o seu. Híbrido, mutável, órfico, eu diria...”
“Mas talvez células órficas sejam absorvidas dentro do cérebro do Ocidente...”
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Como citar: RELLA, Franco. "Prólogo de L’enigma della bellezza". Trad. Marina Câmara. Apresentação Marina Câmara e Daniela Amon. In "Revista de Literatura Italiana", v. 2, n. 5, mai. 2021.  Disponível em:  https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/222997


[1] Nota da tradução: Na mitologia grega, Adikía (em grego: Ἀδικία) é a deusa da injustiça e do erro. Figura horrenda, é representada no ato de seu estrangulamento por Dice (deusa da justiça).
[2] Nota da tradução: No original “ni-ente”, divisão em sílabas da palavra niente, cuja tradução é “nada”, conforme foi dividida a palavra poderia ser compreendida como “não-ente”, “não-entidade” ou “entidade alguma”.