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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Daniela Amon
Franco Rella
Marina Câmara
em
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Imagem: pxhere.com |
Apresentação
Marina
Câmara e Daniela Amon
O
autor se aventura pela disciplina de Estética de maneira heterodoxa, em uma
abordagem interdisciplinar que alia brilhante e habilmente a tradição
filosófica e a arte – em especial, mas não exclusivamente, a literatura –,
rompendo com as convenções e extrapolando os limites do que seriam considerados
conhecimentos e métodos específicos de um domínio ou de outro. Para tanto, o
filósofo recorre e dialoga com os mais diversos autores e artistas, tais como o
físico inglês Sir Isaac Newton, indo de Heráclito a Rilke, passando por
Sófocles, Hölderlin, Nietzsche, Baudelaire e Manet, de Platão a Kafka, Simone Weil,
Benjamin e Celan (para citar apenas alguns exemplos de referências marcantes).
Franco Rella tece suas ideias, ao passo que lança um olhar crítico e cuidadoso
às produções de pensadores e artistas canônicos de toda a história da cultura
ocidental, sem jamais cessar, no entanto, de encarar atentamente o presente,
posicionando-se acerca de acontecimentos contemporâneos e da realidade social e
cultural de nossa era.
Seu
livro L’Enigma della Bellezza,
cuja tradução do prólogo é aqui entregue ao público de língua portuguesa, foi
publicado originalmente em 1991 pela editora Feltrinelli e, em 2006-07, nas Coleções “Campi del Sapere” e
“Universale Economica – SAGGI”, respectivamente. Nele,
Rella investiga o embate entre o conceito de beleza proposto por duas linhas
filosóficas: a linhagem pitagórico-platônica, defensora do belo como harmonia e
da existência de um Uno, e a tradição trágica, inaugurada por Heráclito,
apoiado, por sua vez, no orfismo, que via no homem um ser de fronteira entre o
dia e a noite, entre a luz e as trevas, entre a vida e a morte, e a beleza, a
harmonia, seria originada da tensão entre contrários, da fratura. Rella, aqui,
toma partido da parte supostamente perdedora nesse embate filosófico histórico,
a parte trágica, por essa permitir, no interior de seus jogos ambíguos, a
presença do múltiplo, da diferença, em oposição à hegemonia de um Uno que se
mostra frequentemente intolerante. A investigação do enigma da beleza, aqui,
vai muito além de uma pesquisa de ordem meramente epistemológica, mas retorna
às raízes metafísicas da questão, à medida em que Rella vai sabiamente
dissecando a relação existente, ao longo da história da cultura ocidental,
entre o conceito de beleza e as diferentes concepções de verdade, justiça e,
por fim, do próprio mundo, do ser humano e de suas origens. O enigma da beleza,
portanto, está longe de ser uma discussão datada, fossilizada na história da
filosofia e abandonada após o século XIX, mas é, ao contrário, fluida,
dinâmica, mutável e pertinente aos dias contemporâneos. Pensar o enigma da
beleza é pensar o mundo, a realidade, é pensar a relação do sujeito com o
mundo: questões essas que são felizmente irresolúveis e, portanto, sempre
atuais.
Ao
colocar-se ao lado de Heráclito e dos Trágicos, explicitando o nascimento do
“trágico moderno” inaugurado por Hölderlin no limiar do século XVIII para o XIX
e a presença dominante do pensamento trágico na produção artística, não
obstante a quase total hegemonia da tradição pitagórico-platônica no domínio da
filosofia, Franco Rella demonstra o que seria, arriscamos dizer, uma profunda
fé na arte. Não uma fé cega e incondicional, nem tampouco uma crença de que a
arte propõe as soluções para problemas de qualquer ordem. Muito pelo contrário:
uma fé na arte justamente pelo fato dela não oferecer soluções, mas
questionamentos, possibilidades; em suma, por ela permitir, nas palavras de
Calvino, citadas pelo autor, o “conhecimento como multiplicidade”. O diálogo fictício criado pelo autor para seu prólogo
nos convida a pensar, por fim, a beleza enquanto possibilidade de coexistência
das controvérsias.
Prólogo
de L’enigma della bellezza, de Franco
Rella
“Parece-me desagradável isso que você diz. Não tem uma
alma gentil: aquilo que diz não é senão a verdade e, portanto, é injusto.”
“Mas não há nada para além da verdade. Esta é a
finalidade de tudo que buscamos. É a justiça por definição.”
“Finalidade?”
“No sentido mais próprio da palavra. É o telos: o fim e o final, o objetivo e a
fronteira.”
“E esta fronteira, do quê nos protege? O quê ela exclui?”
“Em primeiro lugar, da não-verdade. Não há duas vias
ou pelo menos uma delas – a que nos leva à aparência do não-verdadeiro – é
enganosa e, como tal, gera comportamentos enganosos sobre os quais se funda um ethos, que nos leva à obscuridade. Esta
não-luz deve ser combatida e vencida, ou pelo menos devemos iluminar o opaco,
com a luz da verdade, contra sua própria não-verdade...”
“Mas se o homem de luz combate e vence o homem da
sombra, então ele não é um homem, mas apenas uma parte sua. Porque o homem é
aquele que está entre a luz e as trevas, entre a vida e a morte: é algo
limítrofe e o seu lugar, o seu ethos,
é atopos também em relação à verdade
ou ao domínio da luz.”
“Atopos:
absurdo, portanto, assim como nos ensinou Aristóteles.”
“'Des-situado’ e insituável, melhor dizendo. E o
horror não está em ser atopos, sem
domicílio, mas sim em estar confinado em um lugar, em um habitat. É uma doença,
ou melhor, uma injustiça: é a adikía[1] à qual as coisas
são constrangidas e que para existirem precisam tomar o lugar umas das outras:
a coisa verdadeira no lugar da coisa não-verdadeira. Devem para tanto combater
e vencer, cometendo, assim, injustiça e arcar com as consequências, segundo a
ordem do tempo. Assim começa uma história ou a história como uma sequência
interminável de vitórias e de derrotas. A razão deve, segundo seu pensamento,
recitar este drama infinito: opor-se a si mesma, vencer-se, degradando uma
parte de si em virtude da não-razão...”
“São fantasmas isso que você levanta. No fundo, aquela
parte obscura, que você quer erguer contra a verdade não conta nada e é, como
foi dito, um nada.”[2]
“Mais do que fantasmas (phantasmata), aquilo que levantei são aquelas visões (phsama) que o homem vê na sua luz
interior. Além disso, se você considera esta parte do homem “nada”, é obrigado,
como havia esplendidamente visto Sófocles, a considerar o homem no seu
conjunto, as gerações dos mortais, isa
kai to meden: iguais a zero, iguais a nada.”
“Mas como faríamos sem a verdade?”
“Não, nada conseguimos sem a verdade, assim como nada
conseguimos sem a não-verdade. Precisamos de ambas e isto é, provavelmente,
aquilo que foi chamado de sabedoria.”
“Mas como podem coexistir a verdade e a não-verdade?
Toda ordem se torna algo como um amontoado de coisas jogadas ao acaso.”
“Coexistem em uma unidade, que é controversa, e esta é
a única justiça imaginável. Aqui, de fato, as coisas emergem na tensão que as
faz estarem na própria diferença. Qual poderia ser, caso contrário, o lugar da
verdade, senão em uma relação travada com aquilo que se mostra como
não-verdade?”
“Não existe conceito para uma tal controvérsia ou,
pelo menos, você não o propôs a mim.”
“De fato não tenho um conceito para propor-lhe, mas
apenas um nome.”
“Pronuncie-o. Faça com que ele intervenha em nosso discurso:
faça-o aparecer, chame-o para dentro do nosso logos.”
“Tò kalón, o
belo, que segundo Platão, Proclo, Diógenes e Ficino deriva justamente de kalein, chamar...”
“Não brinque com as palavras. O que tem a ver a beleza
com tudo isso? Você está procurando a velha via de fuga na estética: um
amontoado de imagens jogadas ao acaso, que se erguem contra o raciocínio e
procuram vencer a verdade com a suposição, com a sua matizada iridescência. Não
é responsável, não é justo isto que está fazendo.”
“Eu lhe disse que tinha um nome e não um conceito. Mas
este é o nome que foi dado ao limiar em que coexistem os contraditores, os
primeiros dentre todos da verdade e da não-verdade. Permite-me uma citação?
Dostoiévski disse que a beleza ‘é uma coisa terrível e pavorosa, porque é
indefinível e defini-la não se pode, já que Deus não nos deu senão enigmas.
Aqui as duas vias se unem. Aqui todas as contradições coexistem...’. Como
podemos pensar que a estética tenha vez em relação a uma beleza que dá medo,
que é, provavelmente, o medonho em si?”
“Estamos em uma estética estranha, mas ainda em uma
estética. Para além desta, no âmbito da ética ou dos comportamentos, como é
possível escolher, agir a partir desta consistência híbrida: como podemos
fundar nosso comportamento sobre a beleza, ainda que sobre esta beleza?”
“‘Esta é uma beleza que pode inverter o mundo, que
pode salvá-lo’, disse ainda Dostoievski. Mas não foi o único. Hölderlin, que
você tanto ama, disse que antes da grande palavra heracliteia, que prega a
unidade que contém a diferença, e que é a própria essência da beleza, não
existia filosofia alguma.”
“Você faz passar por filosófico um discurso que não se
move senão através das suposições da poesia.”
“Mas nós não partimos da filosofia. Não nos
comprometemos em condenar ou defender a filosofia. Partimos do problema da
verdade e da justiça. A verdade que não é injustiça é o nome daquele limiar do
qual emerge e se faz visível aquilo sobre o que nós devemos pensar, e que a
filosofia, na sua linguagem, talvez nos impeça de fazê-lo.”
“E este impensável deveria se encontrar e se pacificar
na beleza? Permita-me: outra vez ainda, em uma dimensão estética?”
“Esta beleza é escândalo, de modo algum, conveniência.
Reduzi-la à dimensão estética – a qual foi definida pelo saber da universidade
e da academia a partir do final do século XVIII – é negar uma das maiores
experiências metafísicas da história da humanidade. Reduzi-la a um gosto
estetizante é sacrilégio, obscenidade...”
“É curioso! Você quer desempoeirar a metafísica num
momento em que esta está sendo ultrapassada.”
“Quando eu falo de metafísica, falo exatamente de um
excesso, não de uma simples ultrapassagem. Falo de algo que está para além das
coisas que são: de um andar em direção àquilo que podem ser. As coisas, a
realidade, não se exaurem no presente já que, como disse ainda Dostoiévski, uma
enorme parte sua está nele confinada sob a forma de palavra futura, ainda
escondida, ainda não dita.”
“Beleza contra razão, portanto, contra o logos que analisa o real, o ordena.”
“Gostaria de responder-lhe com um dito de Simone Weil.
Logos e Eros são um. E acrescentaria: são uma forma que mantém em sua ordem,
inclusive, a desordem e o caos. É neste contexto que eu gostaria de lhe
repropor o tema da justiça. A verdadeira injustiça, a adikía, é a força que obriga o todo a ser somente um: aquela força
que é uma espécie de sonho em que os fracos são constrangidos a sonhar com os
vencedores.”
“Você almeja um mundo pacificado. Mas polemos, a guerra, é pai de todas as
coisas e a tudo governa.”
“Como disse Petrarca, comentando Heráclito, omnia secundum litem fieri. Estou de
acordo. As coisas devem se tornar, advir a partir da controvérsia na qual não
pode emergir senão suas diferenças. Fieri:
devem justamente se tornar, e não serem aniquiladas. Eros é este conflito não-violento.
De fato, não é o ódio, como se dizia, mas sim o amor que divide e dá, ao mesmo
tempo, forma ao mundo. O amor dilacera a unidade do mundo, torna evidentes as
diferenças, possíveis os contraditores e é esta experiência que plasma o mundo
em uma unidade conflitante, díspar.”
“Tínhamos partido do tema da justiça...”
“O amor não gera nem se sofre violência: é
perfeitamente justo, diz ainda Simone Weil. A referência é a passagem do Simposio em que diz Agatão: ‘O ponto
mais importante é que Eros não faz injustiça nem a ela se submete, nem a um
deus, nem de um deus, nem a um homem, nem de um homem.’ Mas se o amor não gera
nem sofre violência significa que há concordância em ser discordante em virtude
do fato de que no amor não há domínio. É, portanto, uma concordia discors em que estão díkaia:
as coisas justas.”
“Voltamos, portanto, à filosofia, e com tudo. Voltamos
a Platão que, inclusive, superou a diferença na ideia que permanece igual a si
mesma. Está aqui na sua obra o ponto de maior tensão contra a tragédia, mas
também contra o sofismo.”
“De fato esta proposição é o logos de Agatão, o poeta trágico, que foi repreendido, afrontado,
vencido pelo discurso de Sócrates, ou melhor, pelo logos de Diotima transmitido por Sócrates. Lembra-se de Hiperião? A
Diotima de Hölderlin repete o discurso de Agatão, dele se apropriando, em uma
daquelas inversões que fazem do platonismo o pensamento mais móvel e mutável,
assim como o Eros de Agatão, que é fluido e capaz de assumir todas as formas. De
fato, Diotima diz a Hiperião que ele, ainda que seguindo um ideal de justiça,
conquistará com a força, se colocará contra ele, na injustiça que o atormentará
e o exaurirá. Parece-me que este pensamento é decisivo justamente nas
contradições extremas da nossa época, em que achar que resolver os conflitos e
as diversidades, com violência e com a força, é colocar na ordem do dia o fim
da humanidade.”
“Estranho logos
o seu. Híbrido, mutável, órfico, eu diria...”
“Mas talvez células órficas sejam absorvidas dentro do
cérebro do Ocidente...”
____________________________
Como citar: RELLA, Franco. "Prólogo de L’enigma della bellezza". Trad. Marina Câmara. Apresentação Marina Câmara e Daniela Amon. In "Revista de Literatura Italiana", v. 2, n. 5, mai. 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/ handle/123456789/222997
[1] Nota da tradução: Na mitologia grega, Adikía (em grego: Ἀδικία) é a deusa da
injustiça e do erro. Figura horrenda, é representada no ato de seu
estrangulamento por Dice (deusa da justiça).
[2] Nota da
tradução: No original “ni-ente”, divisão em sílabas da palavra niente, cuja tradução é “nada”, conforme
foi dividida a palavra poderia ser compreendida como “não-ente”, “não-entidade”
ou “entidade alguma”.
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