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Fragmentos do mito: o nascimento do homem moderno no primeiro capítulo do romance Infanzia di Nivasio Dolcemare, de Alberto Savinio, por André Cupone Gatti
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Alberto Savinio
André Cupone Gatti
Prosa contemporânea
em
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Imagem: pxhere.com |
I.
A primeira metade do século XX, com
a sua fome de progresso, inovação e liberdade, deu a luz não somente às mais
inventivas maneiras de se pensar e representar a realidade, ressignificando,
distorcendo ou aniquilando a tradição, como também deu a luz à relativização da
verdade, a sistematização da barbárie e a fragmentação do humano. Alberto
Savinio (1891 - 1952), escritor, pintor e músico italiano, tendo vivenciado
esse período de perene ebulição, refletiu em sua produção artística as
ambiguidades do seu tempo. Alocado timidamente entre os prosadores italianos do
novecentos, Savinio raramente recebe maior atenção por parte de críticos e
leitores quando o assunto é a literatura italiana moderna, isso não só no
mundo, mas também na Itália. Lembrado mais por sua pintura que por sua prosa de
ficção, porém, esse artista de formação multicultural, imune à rótulos,
construiu uma literatura que não se detém nem na tradição nem na vanguarda, mas
que pendula entre esses dois pólos; uma literatura sempre inquieta, acolhendo a
dúvida dos temas e a flexibilidade das formas, e acumulando sem medo os signos
do passado e do presente. A biografia de Savinio, não menos inquieta que a sua
obra, nos diz de alguém que nascido na Grécia, de pais italianos, absorveria em
Munique a opulenta filosofia de Schopenhauer e de Nietzsche, e em Paris, o que
de mais novo se inventava em arte, ou seja, as grandes vanguardas do começo do
século.
A literatura de Alberto Savinio,
receptiva às mais diversas influências estéticas e filosóficas, tem predileção
pelos temas que dizem respeito às oscilações da memória, à infância enquanto
tempo mítico, e ao constante cotejamento de signos clássicos com o contexto
moderno, aprofundando e ressignificando os paradigmas da tradição ocidental.
Para tanto, o estilo saviniano está sempre munido de uma finíssima ironia que
semeia no texto a ambiguidade. O desconcerto, outra característica central
dessa literatura, alcançado por imagens oníricas, insólitas ou simplesmente
excêntricas, é reforçado por um léxico que, ao resgatar palavras em desuso, e
ao inserir palavras usuais em contextos estranhos à elas, visa tanto a
musicalidade do texto quanto a criação de algo que pareça, ao mesmo tempo,
antigo e inédito. Por fim, todo esse trabalho minucioso de estilo vem engendrado
quase sempre em formas breves, mistas ou experimentais.
Obra angular na produção literária
saviniana, o romance Infanzia di Nivasio
Dolcemare (1941), é uma espécie de súmula dos temas mais caros ao autor,
nele estão a ilha da infância, a recriação da memória (visto que se trata de
uma obra com acentuado teor autobiográfico) e a contaminação da realidade pelo
mito, pelas forças do passado e pelas distorções da ficção. Fragmentário na
forma, exuberante no estilo e opulento nas imagens, Infanzia di Nivasio Dolcemare não é só um romance que conta a
infância do autor-personagem Nivasio (anagrama de Savinio), mas uma reflexão
estético-filosófica sobre o homem do século XX, sobre a perda de sua identidade
e sobre os últimos dias da Europa antes da era dos relativismos inaugurada pela
Grande Guerra de 1914. Esse artigo se propõe a apontar criticamente como essas
reflexões estão todas presentes no primeiro capítulo do romance em questão, bem
como a analisar os processos criativos do autor observados em tal capítulo.
II.
As primeiras linhas do capítulo I de
Infanzia di Nivasio Dolcemare
descrevem o nascimento de Nivasio: o quarto onde isso acontece, algumas das
personagens que participam da ação e a atmosfera do momento. Pontuada por
opulência e soturnidade, essa descrição anuncia o nascimento de alguém por meio
de signos que pouco ou nada têm a ver com uma vida nascente, mas que, ao
contrário, sugerem um copioso declínio, e formam uma espécie de presságio do
fim. Tudo aquilo que cerca o bebê, ou seja, os círios que “piangevano lunghi
lacrimoni” [choravam longas lágrimas], o som de um “fantasma di pioggia”
[fantasma de chuva], o grande “specchio incorniciato di palme dorate” [espelho
emoldurado de palmas douradas], etc., todas essas coisas apontam em direção a
um tempo que se extingue, a um mundo que sai de cena, e esse mundo não seria
outra coisa senão o século XIX? Vejamos como no seguinte trecho o recém-nascido
é contaminado pelas condições do seu nascimento e absorve certa dose de perda
irreparável:
O espelho emoldurado de palmas douradas, que do mármore da lareira elevava a sua luz murcha ao teto cheio de estuques, criava uma ilusória continuação daquele quarto cheio de sombra e de destino, e uma feliz antecipação junto da sorte do nascido, cuja vida, de fato, vai se consumindo dentro do mundo dos espelhos[1]
Nada melhor que um espelho para
emitir de sua antiga lâmina a imagem do presente e a impossibilidade (ou perda)
da imagem futura. É ele que anuncia, em meio ao quarto cheio de sombra e
destino, o problema identitário de Nivasio Dolcemare: alguém imerso nas
reproduções de sua própria imagem, alguém fragmentado em reflexos, um futuro
“homem sem qualidades”, bem ao gosto do século XX.
Não poucos foram os pensadores que
refletiram sobre as descaracterizações sócio-culturais promovidas pelo século XX.
O alemão Walter Benjamin talvez seja o mais lembrado dentre eles ao falar da
destruição da erfahrung (experiência
autêntica), como consequência do ponto máximo da ascensão burguesa, a Primeira
Guerra Mundial, que instaura um mundo dominado pela barbárie e pela erlebnis (experiência inautêntica).
Também o filósofo italiano Giorgio Agamben se debruçou atentamente sobre a
questão da perda da experiência, e para ele não a Grande Guerra, mas
simplesmente a existência em uma grande cidade marca o ápice da destruição da erfahrung. A partir das ideias de
Benjamin ou de Agamben, podemos dizer que Nivasio Dolcemare é um personagem que
vive a sua infância no momento imediatamente anterior à queda definitiva da
experiência, e que essa infância, portanto, está repleta de presságios de um
tempo desfigurado, como já pudemos observar nas primeiras linhas da cena do
nascimento. Rapidamente, porém, vemos esses presságios tomarem forma, pois o
romance de Savinio, fragmentário e dinâmico, intercala na longa cena do
nascimento, digressões sobre um Nivasio adulto e cenas deste no contexto da
guerra de 1914. Então nos deparamos com o “homem-ilha”, um sujeito que encarna
em si o relativismo do novo século.
Caprichos, coquetismos, teimosia,
selvageria contribuem para fazer do homem singular, do homem “superior”, um
personagem bem-sucedido e rentável. A singularidade de Nivasio Dolcemare, por
outro lado, é tão discreta, tão secreta, tão subcutânea, que na superfície nada
irrompe, e se confunde com a mais flagrante normalidade. Mas ela existe, e, mar
invisível, circunda esse homem-ilha de uma zona deserta, de um cinturão de
vácuo[2]
Esse trecho, de uma agudeza
impressionante, não só desvela, poeticamente, a natureza de Nivasio, como
parece também falar da própria prosa saviniana, pois ela, tal como a identidade
da personagem, existe sob a lógica do fragmento, sob o signo da dúvida, e é, em
suma, como um texto-ilha circundado por tantos caminhos possíveis a ponto de
sua singularidade não poder ser abarcada por uma nem duas palavras. A era das
incertezas, deste modo, está assimilada tanto no tema quanto na forma do
romance, e a ironia, incansável mediadora da narração, faz desse texto não
apenas uma coleção de fragmentos sobre a infância de um homem fragmentado, mas
um jogo em busca da “singolarità sottocutanea” [singularidade subcutânea] das
coisas. Algumas pinturas de Savinio retratam muito bem essa convergência de
temas tais como o jogo, a infância, a ilha e o fragmento. Uma das mais
exemplares dentre elas é “L’isola dei giocattoli” [A ilha dos brinquedos], de
1930. À deriva, essa ilha dos brinquedos é representada como um fragmento feito
de fragmentos, é lúdica em suas formas e mítica em seu contexto, já que nela
está implícita a Grécia Antiga que, para Savinio, representa a incorruptível
infância de todo o ocidente. A flexibilidade das aparências, que faz dessa
pintura uma composição suspensa entre o mundo clássico e a modernidade, é uma
constante nas criações savinianas. As divergências entre o mito e a crueza do
real são apagadas ou atenuadas por essa irreverência perante às formas. A
transfiguração, para o autor, é uma das maneiras mais profundas de investigação
da realidade. Suas famosas pinturas de homens com cabeças de bichos
exemplificam bem esse artifício. Sobre elas Savinio disse que consistem na
“procura por um caráter, para além dos eufemismos da natureza, para além das
correções da civilização, para além dos embelezamentos da arte [...]”[3].
Como mais um importante exemplo da
confluência de tempos e símbolos operada pela ironia saviniana, lembremos que o
capítulo I de Infanzia di Nivasio
Dolcemare traz na sua abertura e no seu fecho a imagem mitológica da
coruja. Nascido não só na “città della civetta” [cidade da coruja], como nos
diz as duas primeiras linhas do romance, mas sob o signo uno e triplo evocado pela coruja (a cidade de Atenas, a
deusa Atena, e a própria ave, Athene
noctua), Nivasio recebe os augúrios dos homens (a cidade), do mito (Atena)
e do animal, que religa os homens ao mito (nesse caso, a coruja). Nada mais
saviniano que essa unidade trina do mito-homem-animal, que recusa os limites e
a apatia dos fatos e desce engenhosamente a um significado mais amplo da coisa
descrita/representada, como se nos dissesse: tudo isso é uma coisa só, e é
demasiado humano.
No final do capítulo, depois de
muito esperar pelo grito da coruja, o comendador Visanio cai no sono, e então o
“uccello di Minerva” [pássaro de Minerva] solta o seu grito.
Mas se o comendador
tivesse ouvido aquele grito e quisesse reconhecer nele o grito auspicioso da
deusa, teria pensado, tão longe estava aquele grito de qualquer realidade, que
o pássaro de Minerva é robusto como um boi.[4]
O mito é o mesmo e é outro, a coruja
traz em si a simbologia clássica, mas também a transgressão do símbolo. No
vórtice saviniano muitas vezes não é possível distinguir onde começa o mito e
onde termina a sua iconoclastia. O texto é um móbile de ações e signos,
incrivelmente flexível, e sem um ponto focal estabelecido (essa última
característica, aliás, emprestada da pintura metafísica criada pelo irmão de
Savinio, Giorgio de Chirico, é um dos argumentos possíveis para chamar essa
literatura de “metafísica”).
Nivasio Dolcemare é jogado nesse
turbilhão ao mesmo tempo delirante e metódico, e também é impossível encontrar
a fronteira entre a sua infância e a infância da civilização, a sua
descaracterização futura e o abismo identitário do homem moderno. Não menos insolúvel
é saber o que é ficção e o que é biografia nesse texto. Mas isso não importa,
porque Savinio se utiliza da ficção para reorganizar a sua biografia de acordo
com a sua relevância estética, filosófica e psicológica. É ela, a ficção, o
veredicto final dos significados.
III.
A dimensão mítica da realidade
talvez não possa ser apagada, com a sua perda se perderia também o vislumbre
sensível da civilização. Savinio, parecendo crer em algo assim, mas ao mesmo
tempo cultivando uma inquietude irônica, experimenta os símbolos da tradição em
contextos novos, sem medo de que eles se tornem outra ou outras coisas. O
século XX, a sua multiplicidade atordoante, é a força oposta que, na literatura
saviniana, choca-se e mistura-se com o passado. Em Infanzia di Nivasio Dolcemare podemos observar essa experimentação
rica em significados e perceber como o personagem Nivasio é também criado a
partir da tensão entre herança cultural e fragmentação moderna. No capítulo I
do romance esses temas já estão todos expostos, fazendo com que ele ganhe certa
independência significativa e seja uma introdução a alguns dos temas centrais
do livro.
Nem vanguardista, nem realista, nem
mitógrafo, mas simplesmente um criador irônico em relação ao meio cultural de
onde veio, ao seu tempo e às oscilações da memória, Savinio fez da sua
biografia a fonte primeira de sua literatura (e é possível fazer diferente?),
porém da maneira mais engenhosa, idiossincrática e livre possível, talvez
porque soubesse que, inevitavelmente, “esse paciente labirinto de linhas traça
a imagem de seu rosto”[5],
como um dia escreveu Jorge Luis Borges sobre a própria obra.
[1] SAVINIO,
Alberto. Infanzia di Nivasio Dolcemare, Milano: Adelphi Edizioni, 2011, p. 18.
“Lo specchio incorniciato di palme dorate, che dal marmo del caminetto levava
la sua luce appassita al soffitto carico di stucchi, creava un’illusoria
continuazione di quella camera piena d’ombra e di fato, e una felice
anticipazione assieme della sorte del nascituro, la cui vita, infatti, si va
consumando dentro il mondo degli specchi”.
[2] Idem, p. 19. “Capricci, civetterie, caparbietà, selvaggismo, concorrono
a fare dell’uomo singolare, dell’uomo "superiore", un personaggio a successo
e redditizio. La singolarità di Nivasio Dolcemare invece è così discreta, così
segreta, così sottocutanea, che in superficie nulla trapela, e si confonde con
la più smaccata normalità. Ma essa è, e, mare invisibile, circonda questo
uomo-isola di una desertica zona, di una cintura di vuoto”
[3] SAVINIO, Alberto
apud SANTURBANO, Andrea. O outro século
XX. Embates entre literatura e realismos na Itália. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2018,
p. 19.
[4] SAVINIO, Alberto. Op. cit., p. 27. Ma se il commendatore avesse udito quel
grido, e avesse voluto riconoscere in esso il grido augurale della dea, avrebbe
pensato, tanto lontano era quel grido da qualunque realtà, che l’uccello di
Minerva è grosso come un bue.
[5] BORGES, Jorge Luiz. O fazedor. Trad. Josely Vianna Baptista.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 168.
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