La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Fragmentos do mito: o nascimento do homem moderno no primeiro capítulo do romance Infanzia di Nivasio Dolcemare, de Alberto Savinio, por André Cupone Gatti

 

Imagem: pxhere.com


I.
A primeira metade do século XX, com a sua fome de progresso, inovação e liberdade, deu a luz não somente às mais inventivas maneiras de se pensar e representar a realidade, ressignificando, distorcendo ou aniquilando a tradição, como também deu a luz à relativização da verdade, a sistematização da barbárie e a fragmentação do humano. Alberto Savinio (1891 - 1952), escritor, pintor e músico italiano, tendo vivenciado esse período de perene ebulição, refletiu em sua produção artística as ambiguidades do seu tempo. Alocado timidamente entre os prosadores italianos do novecentos, Savinio raramente recebe maior atenção por parte de críticos e leitores quando o assunto é a literatura italiana moderna, isso não só no mundo, mas também na Itália. Lembrado mais por sua pintura que por sua prosa de ficção, porém, esse artista de formação multicultural, imune à rótulos, construiu uma literatura que não se detém nem na tradição nem na vanguarda, mas que pendula entre esses dois pólos; uma literatura sempre inquieta, acolhendo a dúvida dos temas e a flexibilidade das formas, e acumulando sem medo os signos do passado e do presente. A biografia de Savinio, não menos inquieta que a sua obra, nos diz de alguém que nascido na Grécia, de pais italianos, absorveria em Munique a opulenta filosofia de Schopenhauer e de Nietzsche, e em Paris, o que de mais novo se inventava em arte, ou seja, as grandes vanguardas do começo do século.
A literatura de Alberto Savinio, receptiva às mais diversas influências estéticas e filosóficas, tem predileção pelos temas que dizem respeito às oscilações da memória, à infância enquanto tempo mítico, e ao constante cotejamento de signos clássicos com o contexto moderno, aprofundando e ressignificando os paradigmas da tradição ocidental. Para tanto, o estilo saviniano está sempre munido de uma finíssima ironia que semeia no texto a ambiguidade. O desconcerto, outra característica central dessa literatura, alcançado por imagens oníricas, insólitas ou simplesmente excêntricas, é reforçado por um léxico que, ao resgatar palavras em desuso, e ao inserir palavras usuais em contextos estranhos à elas, visa tanto a musicalidade do texto quanto a criação de algo que pareça, ao mesmo tempo, antigo e inédito. Por fim, todo esse trabalho minucioso de estilo vem engendrado quase sempre em formas breves, mistas ou experimentais.
Obra angular na produção literária saviniana, o romance Infanzia di Nivasio Dolcemare (1941), é uma espécie de súmula dos temas mais caros ao autor, nele estão a ilha da infância, a recriação da memória (visto que se trata de uma obra com acentuado teor autobiográfico) e a contaminação da realidade pelo mito, pelas forças do passado e pelas distorções da ficção. Fragmentário na forma, exuberante no estilo e opulento nas imagens, Infanzia di Nivasio Dolcemare não é só um romance que conta a infância do autor-personagem Nivasio (anagrama de Savinio), mas uma reflexão estético-filosófica sobre o homem do século XX, sobre a perda de sua identidade e sobre os últimos dias da Europa antes da era dos relativismos inaugurada pela Grande Guerra de 1914. Esse artigo se propõe a apontar criticamente como essas reflexões estão todas presentes no primeiro capítulo do romance em questão, bem como a analisar os processos criativos do autor observados em tal capítulo.

 
II.
As primeiras linhas do capítulo I de Infanzia di Nivasio Dolcemare descrevem o nascimento de Nivasio: o quarto onde isso acontece, algumas das personagens que participam da ação e a atmosfera do momento. Pontuada por opulência e soturnidade, essa descrição anuncia o nascimento de alguém por meio de signos que pouco ou nada têm a ver com uma vida nascente, mas que, ao contrário, sugerem um copioso declínio, e formam uma espécie de presságio do fim. Tudo aquilo que cerca o bebê, ou seja, os círios que “piangevano lunghi lacrimoni” [choravam longas lágrimas], o som de um “fantasma di pioggia” [fantasma de chuva], o grande “specchio incorniciato di palme dorate” [espelho emoldurado de palmas douradas], etc., todas essas coisas apontam em direção a um tempo que se extingue, a um mundo que sai de cena, e esse mundo não seria outra coisa senão o século XIX? Vejamos como no seguinte trecho o recém-nascido é contaminado pelas condições do seu nascimento e absorve certa dose de perda irreparável:
 

O espelho emoldurado de palmas douradas, que do mármore da lareira elevava a sua luz murcha ao teto cheio de estuques, criava uma ilusória continuação daquele quarto cheio de sombra e de destino, e uma feliz antecipação junto da sorte do nascido, cuja vida, de fato, vai se consumindo dentro do mundo dos espelhos[1]

 
Nada melhor que um espelho para emitir de sua antiga lâmina a imagem do presente e a impossibilidade (ou perda) da imagem futura. É ele que anuncia, em meio ao quarto cheio de sombra e destino, o problema identitário de Nivasio Dolcemare: alguém imerso nas reproduções de sua própria imagem, alguém fragmentado em reflexos, um futuro “homem sem qualidades”, bem ao gosto do século XX.
Não poucos foram os pensadores que refletiram sobre as descaracterizações sócio-culturais promovidas pelo século XX. O alemão Walter Benjamin talvez seja o mais lembrado dentre eles ao falar da destruição da erfahrung (experiência autêntica), como consequência do ponto máximo da ascensão burguesa, a Primeira Guerra Mundial, que instaura um mundo dominado pela barbárie e pela erlebnis (experiência inautêntica). Também o filósofo italiano Giorgio Agamben se debruçou atentamente sobre a questão da perda da experiência, e para ele não a Grande Guerra, mas simplesmente a existência em uma grande cidade marca o ápice da destruição da erfahrung. A partir das ideias de Benjamin ou de Agamben, podemos dizer que Nivasio Dolcemare é um personagem que vive a sua infância no momento imediatamente anterior à queda definitiva da experiência, e que essa infância, portanto, está repleta de presságios de um tempo desfigurado, como já pudemos observar nas primeiras linhas da cena do nascimento. Rapidamente, porém, vemos esses presságios tomarem forma, pois o romance de Savinio, fragmentário e dinâmico, intercala na longa cena do nascimento, digressões sobre um Nivasio adulto e cenas deste no contexto da guerra de 1914. Então nos deparamos com o “homem-ilha”, um sujeito que encarna em si o relativismo do novo século.
 
Caprichos, coquetismos, teimosia, selvageria contribuem para fazer do homem singular, do homem “superior”, um personagem bem-sucedido e rentável. A singularidade de Nivasio Dolcemare, por outro lado, é tão discreta, tão secreta, tão subcutânea, que na superfície nada irrompe, e se confunde com a mais flagrante normalidade. Mas ela existe, e, mar invisível, circunda esse homem-ilha de uma zona deserta, de um cinturão de vácuo[2]
 
Esse trecho, de uma agudeza impressionante, não só desvela, poeticamente, a natureza de Nivasio, como parece também falar da própria prosa saviniana, pois ela, tal como a identidade da personagem, existe sob a lógica do fragmento, sob o signo da dúvida, e é, em suma, como um texto-ilha circundado por tantos caminhos possíveis a ponto de sua singularidade não poder ser abarcada por uma nem duas palavras. A era das incertezas, deste modo, está assimilada tanto no tema quanto na forma do romance, e a ironia, incansável mediadora da narração, faz desse texto não apenas uma coleção de fragmentos sobre a infância de um homem fragmentado, mas um jogo em busca da “singolarità sottocutanea” [singularidade subcutânea] das coisas. Algumas pinturas de Savinio retratam muito bem essa convergência de temas tais como o jogo, a infância, a ilha e o fragmento. Uma das mais exemplares dentre elas é “L’isola dei giocattoli” [A ilha dos brinquedos], de 1930. À deriva, essa ilha dos brinquedos é representada como um fragmento feito de fragmentos, é lúdica em suas formas e mítica em seu contexto, já que nela está implícita a Grécia Antiga que, para Savinio, representa a incorruptível infância de todo o ocidente. A flexibilidade das aparências, que faz dessa pintura uma composição suspensa entre o mundo clássico e a modernidade, é uma constante nas criações savinianas. As divergências entre o mito e a crueza do real são apagadas ou atenuadas por essa irreverência perante às formas. A transfiguração, para o autor, é uma das maneiras mais profundas de investigação da realidade. Suas famosas pinturas de homens com cabeças de bichos exemplificam bem esse artifício. Sobre elas Savinio disse que consistem na “procura por um caráter, para além dos eufemismos da natureza, para além das correções da civilização, para além dos embelezamentos da arte [...]”[3].
Como mais um importante exemplo da confluência de tempos e símbolos operada pela ironia saviniana, lembremos que o capítulo I de Infanzia di Nivasio Dolcemare traz na sua abertura e no seu fecho a imagem mitológica da coruja. Nascido não só na “città della civetta” [cidade da coruja], como nos diz as duas primeiras linhas do romance, mas sob o signo uno e triplo evocado pela coruja (a cidade de Atenas, a deusa Atena, e a própria ave, Athene noctua), Nivasio recebe os augúrios dos homens (a cidade), do mito (Atena) e do animal, que religa os homens ao mito (nesse caso, a coruja). Nada mais saviniano que essa unidade trina do mito-homem-animal, que recusa os limites e a apatia dos fatos e desce engenhosamente a um significado mais amplo da coisa descrita/representada, como se nos dissesse: tudo isso é uma coisa só, e é demasiado humano.
No final do capítulo, depois de muito esperar pelo grito da coruja, o comendador Visanio cai no sono, e então o “uccello di Minerva” [pássaro de Minerva] solta o seu grito.
 
Mas se o comendador tivesse ouvido aquele grito e quisesse reconhecer nele o grito auspicioso da deusa, teria pensado, tão longe estava aquele grito de qualquer realidade, que o pássaro de Minerva é robusto como um boi.[4]
 
O mito é o mesmo e é outro, a coruja traz em si a simbologia clássica, mas também a transgressão do símbolo. No vórtice saviniano muitas vezes não é possível distinguir onde começa o mito e onde termina a sua iconoclastia. O texto é um móbile de ações e signos, incrivelmente flexível, e sem um ponto focal estabelecido (essa última característica, aliás, emprestada da pintura metafísica criada pelo irmão de Savinio, Giorgio de Chirico, é um dos argumentos possíveis para chamar essa literatura de “metafísica”).
Nivasio Dolcemare é jogado nesse turbilhão ao mesmo tempo delirante e metódico, e também é impossível encontrar a fronteira entre a sua infância e a infância da civilização, a sua descaracterização futura e o abismo identitário do homem moderno. Não menos insolúvel é saber o que é ficção e o que é biografia nesse texto. Mas isso não importa, porque Savinio se utiliza da ficção para reorganizar a sua biografia de acordo com a sua relevância estética, filosófica e psicológica. É ela, a ficção, o veredicto final dos significados.
 
III.
A dimensão mítica da realidade talvez não possa ser apagada, com a sua perda se perderia também o vislumbre sensível da civilização. Savinio, parecendo crer em algo assim, mas ao mesmo tempo cultivando uma inquietude irônica, experimenta os símbolos da tradição em contextos novos, sem medo de que eles se tornem outra ou outras coisas. O século XX, a sua multiplicidade atordoante, é a força oposta que, na literatura saviniana, choca-se e mistura-se com o passado. Em Infanzia di Nivasio Dolcemare podemos observar essa experimentação rica em significados e perceber como o personagem Nivasio é também criado a partir da tensão entre herança cultural e fragmentação moderna. No capítulo I do romance esses temas já estão todos expostos, fazendo com que ele ganhe certa independência significativa e seja uma introdução a alguns dos temas centrais do livro.
Nem vanguardista, nem realista, nem mitógrafo, mas simplesmente um criador irônico em relação ao meio cultural de onde veio, ao seu tempo e às oscilações da memória, Savinio fez da sua biografia a fonte primeira de sua literatura (e é possível fazer diferente?), porém da maneira mais engenhosa, idiossincrática e livre possível, talvez porque soubesse que, inevitavelmente, “esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto”[5], como um dia escreveu Jorge Luis Borges sobre a própria obra.

 Como citar: GATTI, André Cupone. "Fragmentos do mito: o nascimento do homem moderno no primeiro capítulo do romance Infanzia di Nivasio Dolcemare, de Alberto Savinio". In "Revista de Literatura Italiana", v. 2, n. 6, jun. 2021.  Disponível em:  https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/224247




[1] SAVINIO, Alberto. Infanzia di Nivasio Dolcemare, Milano: Adelphi Edizioni, 2011, p. 18. “Lo specchio incorniciato di palme dorate, che dal marmo del caminetto levava la sua luce appassita al soffitto carico di stucchi, creava un’illusoria continuazione di quella camera piena d’ombra e di fato, e una felice anticipazione assieme della sorte del nascituro, la cui vita, infatti, si va consumando dentro il mondo degli specchi”.
[2] Idem, p. 19. “Capricci, civetterie, caparbietà, selvaggismo, concorrono a fare dell’uomo singolare, dell’uomo "superiore", un personaggio a successo e redditizio. La singolarità di Nivasio Dolcemare invece è così discreta, così segreta, così sottocutanea, che in superficie nulla trapela, e si confonde con la più smaccata normalità. Ma essa è, e, mare invisibile, circonda questo uomo-isola di una desertica zona, di una cintura di vuoto”
[3] SAVINIO, Alberto apud SANTURBANO, Andrea. O outro século XX. Embates entre literatura e realismos na Itália. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2018, p. 19.
[4] SAVINIO, Alberto. Op. cit., p. 27. Ma se il commendatore avesse udito quel grido, e avesse voluto riconoscere in esso il grido augurale della dea, avrebbe pensato, tanto lontano era quel grido da qualunque realtà, che l’uccello di Minerva è grosso come un bue.
[5] BORGES, Jorge Luiz. O fazedor. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 168.