La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Pier Paolo Pasolini: primeiros tempos, por Mariarosaria Fabris

 


 

Para João Silvério Trevisan

 

Pier Paolo e Guido, seu irmão caçula

 

Em 21 de dezembro de 1921, em Casarsa della Delizia (na época, na microrregião de Údine, Friul), a professora primária Susanna, membro da família Colussi – uma das que haviam participado da fundação da cidadezinha, seis séculos antes, segundo reza a lenda –, casava-se com Carlo Alberto, um oficial que servia no Exército naquela localidade, descendente de um ramo secundário da nobre estirpe dos Pasolini dall’Onda, uma das mais ilustres de Ravena (Emília-Romanha), cuja fortuna havia dissipado em jogos de azar.1

No dia 5 de março do ano seguinte, veio ao mundo o primogênito do casal, Pier Paolo, em Bolonha (capital da região paterna). Numa longa entrevista concedida a Jean Duflot em 1969, Pasolini assim descreveu suas origens e sua infância:

 

Nasci numa família tipicamente representativa da sociedade italiana: um verdadeiro produto do cruzamento... um produto da Unificação da Itália.

Meu pai descendia de uma antiga família da nobreza da Romanha: minha mãe, ao contrário, provém de uma família de camponeses friulanos que, com o tempo, foram ascendendo, aos poucos, à condição pequeno-burguesa. [...] A mãe de minha mãe era piemontesa, o que não lhe impediu de modo algum de ter igualmente ligações com a Sicília e a região de Roma. [...] desde a mais terna idade, fizeram de mim um nômade. Passava de um acampamento a outro, não tinha um lar estável. O tempo de nascer em Bolonha... e eis que meu pai nos transfere para Parma. Depois fomos para Conegliano, Belluno, Sacile, Idria, Cremona e outras cidades do Norte da Itália. Minha infância foi uma longa série de transferências...2

 

De fato, entre 1923 e 1936, a vida de Pier Paolo foi pontuada pelo deslocamento de uma cidade para outra, o que acarretou contínuos ajustes, nem sempre fáceis, a novas realidades, como ele mesmo assinalou: “por natureza, eu era inadaptável: e adaptar-me dava sempre muito trabalho, embora eu gostasse, gostasse desesperadamente”.3 Na opinião de Mathias Balbi: “O incômodo da adaptação a cada nova transferência, sem dúvida, é uma peça importante na formação íntima e poética do Pasolini adolescente, junto também com os dissídios que quebravam a unidade afetiva dos pais”.4 A desarmonia conjugal ficou oculta sob o manto das convenções sociais, mas marcará o pequeno Pier Paolo.5 Ademais, o constante convívio com estranhos o levou a alimentar o sentimento de ser diferente dos outros:     

 

Os pequenos vendedores de edelvais de Belluno, os impúberes eslavos de Idria, os filhinhos dos operários de Sacile e dos camponeses de Casarsa haviam sido, durante a longuíssima década de minha infância, os companheiros de geração: um preparado cujo reagente de minha diversidade interior, e social, de minha delicadeza e de minha dureza permanecia insolúvel.6

 

Em Casarsa, entre junho de 1946 e dezembro de 1947, Pier Paolo manteve um diário, anotando nos Quaderni rossi – seis cadernos de capa vermelha, confiados ao primo Nico Naldini quando se mudou para Roma –, as lembranças dos primeiros tempos de sua vida até os vinte e cinco anos (no sexto caderno) e o relato das primeiras experiências homossexuais.7 O relato está na base de dois romances breves, Atti impuri e Amado mio, redigidos entre 1947 e 1950, mas publicados póstumos em 1982, num volume único: Amado mio preceduto da Atti impuri (Amado meu precedido de Atos impuros). No mesmo período, elaborou um conjunto de poesias, Via degli amori (1946), em que repercorria as etapas do nomadismo familiar.  É a partir de algumas dessas líricas (em língua original e traduzidas), com o eventual acréscimo de outros fragmentos, que este texto ensaia seguir os passos da infância e da adolescência de Pasolini e sua evocação poética.

Em 1923, Pier Paolo está em Parma e será esta cidade da Emília-Romanha a abrir seu poema “L’Italia. Capitolo II” (1949), publicado na coletânea L’usignolo della Chiesa cattolica (1958):

 

Parma, un viale e il riso di mia madre.

Su questa breve apparizione

il crepuscolo di un’epoca felice

che rode e stinge l’oro dell’Appennino.

E tu, Italia, fai di Parma un capolavoro

di memorie bianche nelle piazze ducali,

di foglie che nei viali padani

hanno un respiro di autunni vellutati.

 

Parma, uma aleia, o riso de minha mãe.

Sobre esta breve aparição

o crepúsculo de uma época feliz

que corrói e desbota o ouro do Apenino.

E você, Itália, faz de Parma um primor

de memórias brancas nas praças ducais,

de folhas que nas aleias padâneas

têm um respiro de outonos aveludados.8

 

 


Placa afixada numa rua de Parma, com os

versos iniciais de “L’Italia. Capitolo II”9

 

Guido (Guidalberto), filho caçula do casal Pasolini nasce em Belluno (Vêneto), no dia 4 de outubro de 1925. Pier Paolo assim lembrou o evento: “Na manhã em que Guido nasceu, fui o primeiro a levantar, corri para a cozinha e o vi num berço. Chispei para o quarto de minha mãe, para lhe dar a notícia. Por muito tempo, me vangloriei de ter sido o primeiro a vê-lo”.10

Em 1927, a família está de volta a Conegliano (na microrregião de Treviso), onde já havia morado em 1924. É nesta cidadezinha vêneta que, em outubro, Pier Paolo começa a frequentar o primário; o segundo ano será cursado em Casarsa, em 1928-1929. Enquanto Carlo Alberto cumpria pena no quartel por dívidas de jogo, os garotos e Susanna se mudaram para lá, onde ela voltou a exercer o magistério para driblar as dificuldades financeiras.11 A cidade materna era a meta das férias familiares e, segundo Pasolini, desde a mais terna infância, como anotou num texto de 1957: “Lembro de meu primeiro trem: estou num compartimento de madeira com minha mãe; meu irmão, não, não estava lá. Eu tinha, portanto, menos de três anos. Mas devia ser a segunda vez que íamos a Casarsa, porque eu já tinha lembranças”.12

Aos sete anos, Pier Paolo escreve seus primeiros versos, ilustrando-os também. A paixão pela poesia vem se juntar à propensão para o desenho, que se manifestou quando ele tinha entre quatro e cinco anos. A família está em Sacile, às margens do rio Livenza, onde permanecerá até 1932, exceto por um breve intervalo em Idria (em 1930).13 No período em que vive nessas duas cidades do Friul, Pasolini completa o primário e começa a frequentar a primeira série ginasial. Como em Sacile não havia ginásio, todo dia, bem cedo, o jovem seguia de trem até Conegliano:

 

Havia dias em que, no vagão grande e escuro, que corria sacudindo-se, eu estava sozinho: num canto, perto da janela impregnada de fumaça, mal fechada; e olhava nascer o sol. É verdade, eu tinha começado a escrever poesias alguns anos antes, quando ainda cursava o terceiro ano do primário: mas lá, naquelas horas, sozinho no vagão, olhando o sol nascer, tive todo o tempo e a chance de ter a confirmação dessa minha ingênua vocação, que eu considerava quase um dever.14

 

No meio do ano letivo 1932-1933, o pai é transferido para Cremona, opulenta localidade da Lombardia, em cuja paisagem se destacavam o Teatro Amilcare Ponchielli e o prédio vermelho da Sociedade de Regatas Baldesio, às margens do rio Pó. Cremona é a primeira grande cidade em que Pier Paolo vive e dela guardará uma lembrança vívida, como escreveu duas décadas depois:

 

os telhados, logo os que, durante três anos (dos dez aos treze), vi do terraço da casa de rua XX Settembre [...] ... Alameda Ciampi, os jardins públicos, a “Baldesio”, o “Ponchielli”, adentrar a rua 11 Febbraio, em cuja esquina ficava a minha casa, dura e lúcida como se fosse de metal.15

 

Em fins de 1935, a família Pasolini está em Scandiano (Emília-Romanha), mas o ginásio ficava em Régio da Emília, e o trem que levava Pier Paolo para a escola foi palco de novos laços sociais e da manifestação do desejo.  A pulsão sexual o afasta da religião: “Senti a violência das primeiras libidos, pratiquei os primeiros atos impuros (eu era um estudantezinho de catorze anos); obedecia às minhas tendências sem julgá-las...16

A leitura de Tre contributi alla teoria sessuale, de Sigmund Freud,17 o ajudará a encontrar respostas às suas inquietações, às dramáticas perguntas que a reprimida orientação sexual lhe impunha. Pasolini, entrementes, havia voltado a sua cidade natal: “Linda e doce Bolonha! / Nela passei sete anos, talvez os mais bonitos...18 Alessandro Barbato descreve como foi esse reencontro:

 

A capital emiliana é desde sempre uma cidade cultural animada e assim Pasolini tem a chance de voltar a suas primeiras paixões: em primeiro lugar, a leitura e os livros – que estoca toda vez que vai ao Pórtico da Morte, lugar onde estão reunidas as bancas de livros usados –, mas também o futebol, que o ajuda a socializar com os garotos do lugar e a criar um discreto círculo de amigos regulares, que representará seu primeiro grupo de confidentes e colaboradores.19

 

De fato, foram anos muito felizes, de paz familiar e de novas descobertas, nas palavras do próprio Pasolini, num fragmento de seus cadernos em que fala do Pórtico da Morte e da Livraria Nanni nele sediada:

 

É a recordação mais bonita de Bolonha. Ela me lembra O idiota, de Dostoiévski, me lembra o Macbeth, de Shakespeare. Aos quinze anos, comecei a comprar meus primeiros livros e foi bonito demais, porque, nunca mais na vida, se volta a ler com a mesma alegria com a qual eu lia então.20

 

Ademais, no prestigioso “Liceu Ginásio Luigi Galvani”, a primeira escola laica que Pier Paolo frequenta, depois de ter estudado sempre em colégios de padres, se consolidam e nascem novos vínculos afetivos: Luciano Serra (que ele havia conhecido no ginásio de Régio da Emília), Ermes Parini, Franco Farolfi, Elio Melli. Outros amigos desse período serão Roberto Roversi e Francesco Leonetti, que conhece na universidade e com os quais, em 1955, fundará a revista Officina.

 



 

Pórticos de Bolonha: o da Livraria Nanni e o do Liceu Galvani

 

No segundo ano do colegial, Pasolini tem uma “fulguração” que lhe abre as portas da lírica moderna. Numa aula de História da Arte, o professor substituto, Antonio Rinaldi, já na época adepto da interdisciplinaridade, lê o poema “Le bateau ivre” (“O barco ébrio”, 1871), que Arthur Rimbaud havia escrito aos 17 anos de idade: “Não vivi aquela experiência enquanto aprendiz, mas como iniciado”.21 E assim, as poesias de Giuseppe Ungaretti, Eugenio Montale e as traduções de líricos gregos de Salvatore Quasimodo começam a substituir os versos de Giovanni Pascoli, Gabriele D’Annunzio e do amado Giosuè Carducci, até então “um de seus constantes pontos de referência e de inspiração.22

As excelentes notas obtidas no segundo ano, levam o aplicado estudante a antecipar o esame di maturità (exame de conclusão do ensino médio) e, assim, aos dezessete anos, ele se matricula na Faculdade de Letras, onde o mestre Roberto Longhi o introduz à estética das artes visuais, outra paixão que o acompanhará pelo resto da vida.

Aqui termina o breve relato da infância e da adolescência de Pier Paolo. A palavra passa agora para Pasolini, um Pasolini mais maduro, que, ao evocar as perambulações daqueles anos, ainda olha com afeto para as cenas de sua vida pregressa, tentando capturar em seus versos lembranças que flutuam ao sabor da memória.

 

Via degli amori, (excertos)23

 

Introduzione

... el vuelo! el vuelo! el vuelo!

A.    Machado

A Casarsa nasceva, un giorno, il sole:

e io dov’ero? Nella schiuma lieve

iridata del sonno, con il cuore

dentro un soave bozzolo di luce,

volavo. Estasiato, senza ali,

volavo a mezza strada tra la terra

e il cielo, volavo nella luce

delle campagne illuminate in sogno.

 

Introdução

... el vuelo! el vuelo! el vuelo!

A. Machado

Em Casarsa nascia, um dia, o sol:

e eu onde estava? Na espuma leve

iriada do sono, com o coração

dentro um suave casulo de luz,

voava. Extasiado, sem asas,

voava, a meio caminho entre a terra

e o céu, voava na luz

das campinas iluminadas em sonho.

 

 

L’istante

(A Casarsa nel ’29)

... ... ... ... La ruta, il rosmarino,

gl’iridiscenti spettri delle rose,

incarnano nell’aria una fragranza

angelica. Nell’orto io e il compagno

ci torturiamo a cogliere l’istante,

il magico confine in cui il giorno

si fa sera.

 

O instante

(Em Casarsa, em 1929)

... ... ... ... A arruda, o rosmarinho,

os iridescentes espectros das rosas

encarnam no ar uma fragrância

angélica. Na horta, eu e o companheiro

nos torturamos para colher o instante,

o mágico limiar do dia que

noite vira.

 

 

I due figli

(A Sacile nel ’29)

Guido e io sediamo al tavolino

di ferro verde, instabile. (Mio padre

e mia madre da un colpevole rancore

nella sera festiva non disarmano.)

Noi due li guardiamo, disperati.

 

Ma nel cuore c’è e posto per la gioia

ancora! È il gelato nella coppa

bruna che si fonde con le note

notturne della banda... Ed ecco il cielo

di cupa seta solca un verde bolide.

 

Os dois filhos

(Em Sacile, em 1929)

Guido e eu sentados à mesinha

de ferro verde, instável (Meu pai

e minha mãe de um culpado rancor

na noite festiva não se desarmam.)

Nos dois olhamos, desesperados.

 

Mas no coração ainda a alegria

mora! E o sorvete na taça

escura se funde com as notas

noturnas da banda... E eis que o céu

de negro cetim sulca um verde bólide.

 

 

La primula

(A Sacile nel ’29)

Mia madre quasi giovanetta, china

sopra il Livenza, raccoglie la primula

eretta, estranea... I Mori della torre

rintoccano nell’aria pura

l’ora meridiana... E il fresco peso

della mia camiciola di fanciullo,

la nube indefinita nell’azzurro,

l’odore, come un urlo silenzioso,

dei campi impubi...

 

A prímula

(Em Sacile, em 1929)

Minha mãe quase mocinha, debruçada

no Livenza, a colher a prímula

ereta, estranha... Os Mouros da torre

a replicar no ar puro

a hora meridiana... E o fresco peso

de minha vestimenta de criança,

a nuvem indefinida no azul,

o cheiro, um grito silencioso,

dos campos impúberes...

 

 

Ricordi di collegio di mia madre

(A Idria nel’30)

Il Natisone, la dolce istitutrice...

Tra i fiordalisi le farfalle lilla,

e tra i cardi, accarezano l’estate.

 

Lembranças do colégio de minha mãe

(Em Idria, em 1930)

O Natisone, a doce preceptora...

Entre as flores-de-lis, as borboletas lilases,

e entre os cardos, acariciam o verão.

 

 

Via degli amori

(A Idria nel ’30)

Sulla mia gota di fanciullo pesa

agghiacciata e tiepida la foglia

dei profumi autunnali.

 

Via dos amores

(Em Idria, em 1930)

Em minha face de menino pesa

enregelada e tépida a folha

de perfumes outonais.

 

 

Fatati

(A Sacile nel ’31)

...................... Parlano di fatti

a me ignoti: un’amica, un borsellino...

Ecco, so che ha un fratello, me li immagino

sui loro letti... Sto ad udire torbido

quel colloquio e dolente mi si imprime

nella mente. Fatati, il cognome

del ragazzo.

 

Fatati

(Em Sacile, em 1931)

...................... Falam de coisas

que desconheço: uma amiga, uma carteira...

Pronto, sei que tem um irmão, os imagino

em suas camas... Fico ouvindo, turvo

aquele colóquio e dolente em minha mente

se imprime. Fatati, o sobrenome

do rapaz.

 

 

Tra gli steli d’erba rosa

(A Sacile nel ’32)

Ecco il ponte e più indietro il terrapieno

donde gli urti dei convogli e i fischi

arpeggiavano tiepidi sul prato.

Lì, lontani dagli occhi di mia madre,

e immersi tra gli steli d’erba rosa

io e Beppino abbracciati...

 

Em meio a hastes de rósea grama

(Em Sacile, em 1932)

Eis a ponte e mais atrás o terrapleno

onde os choques dos comboios e os apitos

harpeavam tépidos sobre o prado.

Lá, longe dos olhos de minha mãe,

e em meio a hastes de rósea grama

eu e Beppino abraçados...

 

 

Fino all’ora di cena

(A Sacile nel ’32)

Da pochi giorni vivo nella casa

di Sacile presso la Chiesa. Scendo

annoiato ed ecco... una bambina,

con un tisico sguardo, sul selciato

ormai quasi notturno. Si avvicina.

(Sento ancora il tonfo della palla

nel nostro gioco spinto fino all’ora

di cena... e le rare parole... e il vile

suo rispetto pel fanciullo agiato...)

 

Até a hora do jantar

(Em Sacile, em 1932)

Há poucos dias vivo na casa

de Sacile, perto da Igreja. Desço

entediado, e  eis... uma menina

de olhar tísico, no empedrado

já quase noturno. Se aproxima.

(Ouço ainda o baque da bola

no jogo prolongado até a hora

do jantar... e as raras palavras... e o vil

respeito dela pelo menino abastado...)

 

 

Un’avventura

(A Sacile nel ’32)

Fu in fondo alla scarpata presso il fresco

tenebroso, verdissimo Livenza.

In una grotta tra immondizie e marcia

verdura (udivo il pallido frastuono

del Mercato) io ero prigioniero

e un ambiguo sgomento mi agghiacciava:

la fierezza e una languida vergogna

di fronte a quei fanciulli prepotenti

(vento salato d’un felice mare...).

Ma essi, i laceri, i volgari, un riso

amico mi volgevano, onorando

le mie vesti decenti, il mio coraggio.

 

Uma aventura

(Em Sacile, em 1932)

Foi no fundo da escarpa perto do fresco

tenebroso, verdíssimo Livenza.

Numa gruta, entre imundícias e podre

verdura (ouvia o pálido alarido

do Mercado) eu era prisioneiro

e um ambíguo assombro me gelava:

a altivez e uma lânguida vergonha

diante de uns garotos prepotentes

(vento salgado de venturoso mar...).

Mas eles, os rotos, os vulgares, um riso

amigo me devolviam, honrando

minhas vestes decentes, minha coragem.

 

 

Quattro cinque fanciulli

(A Sacile nel ’32)

... Le catene della nera giostra

pendono contro il cielo profumato.

Lo spiazzo dietro l’abside (che chiude

un recinto sospeso sul dirupo

in fondo a cui un orrido Livenza

verdeggia) è vuoto. No... nell’ozio estivo

quattro cinque fanciulli radunati 

sulla bruna erba ascoltano una voce.

“Nella città di Algeri... la bionda

fanciulla... il Tentatore”, mentre leggo

ci spiamo i corpi supini all’ombra

dell’umida parete.

 

Quatro, cinco garotos

(Em Sacile, em 1932)

... As correntes do negro carrossel

pendem contra o céu perfumado.

O largo atrás da abside (que fecha

um recinto suspenso no abismo,

em seu fundo um hórrido Livenza

verdejante) está vazio. Não... no ócio estival

quatro, cinco garotos reunidos

na escura relva escutam uma voz.

“Na cidade de Argel... a loira

mocinha... o Tentador”, enquanto leio

espiamos nossos corpos supinos à sombra

da úmida parede.24

 

 

Rapporti poetici coi coetanei

(A Sacile nel ’32)

Nella bianca ombra

del serbatoio ci torturiamo

con reciproci, vili sottintesi.

Sì, il gioco era espresso, tutto gioia,

ma bastava una pausa perché il loro

volto celasse adulte distrazioni.

E io (lo so ora!) ero tra essi

il più velato di dolenti ombre.

 

Relações poéticas com os coetâneos

(Em Sacile, em 1932)

Na branca sombra

da caixa-d’água nos torturamos

com recíprocos, vis subentendidos.

Sim, o jogo era expresso, só alegria,

mas bastava uma pausa para que o rosto

deles ocultasse adultas distrações.

E eu (sei disso agora!) era entre eles

o mais velado por dolentes sombras.

 



Sacile: a praça da Torre dos Mouros e o rio Livenza

 

Partenza da Sacile

(A Sacile nel ’32)

Il ragazzo piangente vuole imprimersi

nel cuore ciò che fugge indifferente

dietro a quella carrozza che già quasi

lo consola. E intanto egli intravede,

l’ultima volta!, il vetro verdecupo

del Livenza incresparsi sotto il ponte

in una pace odiosa.

 

Partida de Sacile

(Em Sacile, em 1932)

O garoto chorando quer imprimir

no coração o que foge indiferente

atrás daquele vagão que já quase

o consola. Enquanto isso entrevê

pela última vez!, o vidro verde-escuro

do Livenza se encrespar sob a ponte

numa paz odiosa.

 

 

La neve profumata

(A Cremona nel’34)

Qui ha termine il viale, là rosseggia

la Baldesio, e, dietro, il grande Po

trascina nei suoi specchi il biondo cielo.

 

... Noi scendiamo

sulla stupenda neve, e il nostro passo

c’inebria; o vive Antartidi, o violato

suolo dell’Asia! (È con me un amico

che durante il cammino ho umiliato

umiliando suo padre). Ma ora affondo

il piede nella neve profumata.

 

A neve perfumada

(Em Cremona, em 1934)

Aqui finda a alameda, lá vermelha

a Baldesio, e, atrás, o grande Pó

arrasta em seus espelhos o áureo céu.

 

... Nós descemos

sobre a estupenda neve, e nosso passo

nos inebria; oh vivas Antártidas, oh violado

solo da Ásia! (Junto de mim um amigo

que ao longo do caminho humilhei

humilhando seu pai). Mas agora afundo

o pé na neve perfumada.

 

 

Caduta e redenzione

(A Scandiano nel ’35)

Covo non so se voglie inappagate

sfibranti, o ingenui versi. I campi volano

dietro il finestrino donde un terreo

sole investe gli studenti che cantano.

Solo coi pugni chiusi sopra al grembo,

Tonio non guarda nulla col suo bruno

occhio e a quel gesto negligente

io mi torturo, e invidio la sua grazia

distratta... Ma certo torneremo

da Reggio verso sera, e i nostri giochi

echeggeranno umidi sul prato

del castello.

 

Queda e redenção

(Em Scandiano, em 1935)

Cultivo não sei se desejos insatisfeitos,

extenuantes ou ingênuos versos. Os campos voam

atrás da janela onde um térreo

sol investe os estudantes que cantam.

Só, de punhos cerrados sobre o ventre,

Tonio não olha nada com seu olhar

sombrio, e diante do gesto negligente

eu me torturo,  e invejo sua graça

distraída... Mas, decerto, voltaremos

de Régio ao anoitecer, e ecoarão nossas

brincadeiras, úmidas na relva

do castelo.

 

 

Un sogno profetico

(A Bologna nel ’36)

Il giovinetto si difende

con le giovani armi del suo riso. Io

spargo intorno profumo dal suo petto.

 

Um sonho profético

(Em Bolonha, em 1936)

O jovenzinho se defende

com as jovens armas de seu riso. Eu

espalho ao redor perfume de seu peito.

 

 

Giovinetto

(A Bologna nel ’36)

Autunno o primavera? Siede solo

il ragazzo sopra il sofà consunto

del suo studio. La fredda, solatia

fanciullezza è una nuvola sospesa

su altre terre. Nel grigiore amico

legge assorto il ragazzo del Visconte

di Bragelonne... oh cielo, ha la sua età...

è un giovinetto anch’egli... gli si ombra

il seducente labbro!

 

Rapazinho

(Em Bolonha, em 1936)

Outono ou primavera? Sozinho,

o rapaz sentado no sofá gasto

do escritório. A fria, soalheira

juventude é uma nuvem suspensa

sobre outras terras. Na penumbra amiga

lê absorto o rapaz sobre o Visconde

de Bragelonne... oh céus, tem sua idade...

um rapazinho como ele... cobre uma sombra

seu lábio sedutor!25

 

 

Em fins de 1942, a família Pasolini decide voltar para Casarsa, por causa da guerra. De lá, em janeiro de 1950, Pier Paolo e Susanna seguirão para Roma, deixando para trás os restos mortais de Guido, ceifado na luta partisan, e Carlo Alberto, que os alcançará mais tarde. E aí começa uma história bem mais conhecida.

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Como citar: FABRIS, Mariarosaria. "Pier Paolo Pasolini: primeiros tempos". In "Revista de Literatura Italiana", v. 2, n. 6, jun. 2021.  Disponível em: ttps://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/224178

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[1] Cf. SITI, Walter. “Pasolini, Pier Paolo”. In: Dizionario biografico degli italiani – v. 81, 2014. Disponível em <treccani.it/enciclopedia/pier-paolo-pasolini_%28Dizionario-Biografico%29/>. Acesso: 31 maio 2020. O ramo Colussi do lado materno de Pasolini teria se originado da união entre a polonesa Susanna e o friulano Visèns Colùs (Vincenzo Colussi), um soldado do exército napoleônico que participou da Campanha da Rússia (1812). A história é contada no poema “Il soldât de Napoleon”, parte do ciclo “I Colussi”, que integra a seção “Romancero” de La meglio gioventù (1954), coletânea de poesias em friulano escrita entre 1941 e 1953. Em sua versão italiana, “Il soldato di Napoleone” foi musicada por Sergio Endrigo e inserida em Endrigo (1962), seu primeiro long-play. Segundo o site <www.musicameccanica.it/antologia_soldato_napoleone.htm>, acessado em 5 jun. 2020, a antepassada polonesa seria de religião hebraica.
[2] PASOLINI, Pier Paolo. Il sogno del centauro. Roma: Editori Riuniti, 1983, p. 19. As traduções do italiano são da autora do texto.
[3] PASOLINI, Pier Paolo. “Il treno di Casarsa”. In: Album Pasolini. Milão: Mondadori, 2005, p. 40, 42.
[4] BALBI, Mathias. Pasolini, Sade e la pittura. Alessandria: Edizioni Falsopiano, 2012, p. 50 [recurso eletrônico].
[5] Cf. NALDINI, Nico. “Cronologia”. In: PASOLINI, Pier Paolo. Per il cinema. 2 v. Milão: Mondadori, 2001, v. I, p. L.
[6] apud: NALDINI, Nico. “Cronologia”, cit., p. LIII.
[7] Cf. ZANZOTTO, Andrea; NALDINI, Nico (org.). Pasolini poesie e pagine ritrovate. Roma: Lato Side Editori, 1980, p. 10, 13. Fragmentos do diário foram publicados no volume citado anteriormente, em Pasolini, una vita (1989), de Nico Naldini, e na “Cronologia” presente nas edições da Mondadori, como assinalado na nota 5.
[8] PASOLINI, Pier Paolo. “L’Italia. Capitolo II”. In: L’usignolo della Chiesa cattolica. Turim: Einaudi, 1976, p. 91.
[9] Esses versos integram o projeto Nouvelle Flâneries, de Ettore Favini, o qual, em 29 de setembro de 2019, instalou oito placas em prédios históricos de Parma, com textos de autores que escreveram sobre a cidade.  Cf. RONCHI, Giulia. “Parma raccontata dai grandi della letteratura. Nouvelle Flâneries, il progetto di Ettore Favini” (15 out. 2019). Disponível em <https://www.artribune.com/arti-visive/arte-contemporanea/2019/10/ parma-grandi-letteratura-nouvelle-flaneries-progetto-ettore-favini/>. Acesso: 31 maio 2020.
[10] apud: NALDINI, Nico. “Cronologia”, cit., p. L.
[11] Como muitas crianças italianas e filho de um militar nacionalista, Pier Paolo também foi balilla, isto é, engrossou as fileiras da Opera Nazionale Balilla, organização fascista para garotos entre os oito e os catorze anos.  Isso, no entanto, não teve maiores implicações ideológicas: “Nasci em 1922. Logo não conheci o Fascismo do mesmo modo que a geração anterior. Aceitava ingenuamente a sociedade fascista em que vivia, imaginando apenas que pudesse existir outra. [...] Minha reação ao Fascismo se manifestou [...] por meio de uma paixão por toda a cultura a respeito da qual ele silenciava. [...] Assim, mais do que o Fascismo violento, o dos cassetetes e dos assassinatos políticos, foi antes o Fascismo estúpido e inculto o que descobri primeiro. Mais cultural do que político era, portanto, meu antifascismo de adolescente”. PASOLINI, Pier Paolo. Il sogno del centauro, cit., p. 26.
[12] PASOLINI, Pier Paolo. “Il treno di Casarsa”, cit., p. 35.
[13] Banhada pelo rio Natisone, Idria, desde 1947, faz parte da Eslovênia e denomina-se Idrija.
[14] Pasolini, Pier Paolo. “Il treno di Casarsa”, cit., p. 37.
[15] apud: NALDINI, Nico. “Cronologia”, cit., p. LIII.
[16] apud: NALDINI, Nico. “Cronologia”, cit., p. LIV.
[17] Cf. Drei Abhandlugen zur Sexualtheorie (Três ensaios sobre a teoria da sexualidade), foi escrito entre 1905 (primeira versão) e 1925 (sexta edição). Traduzido pela primeira vez em italiano em 1921 (provavelmente a partir da quarta versão de 1920), circulava numa edição universitária semiclandestina, porque Freud era um dos autores proibidos pelo regime fascista. [18] Cf. BARBATO, Alessandro. L’alternativa fantasma. Pasolini e Leiris: percorsi antropologici. Padova: libreriauniversitaria.it, 2010, p. 80 [recurso eletrônico].
[18] apud: NALDINI, Nico. “Cronologia”, cit., p. LIV.
[19] BARBATO, Alessandro, cit., p. 78.
[20] apud: “Portico della Morte – Libreria Nanni”. Disponível em <www.bibliotecasalaborsa.it/content/mappascrittori/luoghi/portico_della_morte> Acesso: 6 jun. 2020. Onde, desde 1881, é a sede do Museu Cívico Arqueológico, antes havia o Hospital de Santa Maria da Morte, fundado no século XV. Em 1825, no chamado Pórtico da Morte, foi aberta uma livraria, adquirida por Arnaldo Nanni, em 1928. Este resolveu dotá-la de pequenas bancas como as dos bouquinistes de Paris. Nelas, além das obras de Fiódor Dostoiévki e William Shakespeare, Pasolini adquire também edições econômicas de Liev Tolstói, S. T. Coleridge e Novalis. Cf. NALDINI, Nico. “Cronologia”, cit., p. LIV.
[21] apud: NALDINI, Nico. “Cronologia”, cit., p. LIV. O poeta e jornalista Antonio Rinaldi, na época publicou o livro de poesias La valletta (1938). Amigo do escritor Giorgio Bassani, na Faculdade de Letras de Bolonha havia sido aluno de Roberto Longhi e Giorgio Morandi. O poema de Rimbaud e sua versão em português podem ser lidos em “O barco ébrio / Le bateau ivre”. Outra travessia. Florianópolis, n. 15, 2015, p. 57-59 [recurso eletrônico].
[22] BARBATO, Alessandro, cit., p. 79. Cf. NALDINI, Nico. “Cronologia”, cit., p. LIV, LVII.
[23] PASOLINI, Pier Paolo. “Via degli amori”. In: Album Pasolini, cit., p. 5, 6, 9, 10, 12, 13, 15, 18, 21, 24, 25, 28. A coletânea de versos Via degli amori (1946), inédita na época, passou a integrar o volume que reúne a lírica pasoliniana: Bestemmia. Tutte le poesie (Milão: Garzanti, 1993).
[24] Trata-se provavelmente da leitura de Le pantere di Algeri (As panteras da Argélia, 1903), de Emilio Salgari, cujos romances de aventura encantavam o jovem Pier Paolo.
[25] O livro citado é Il visconte di Bragelonne, versão italiana de Le vicomte de Bragelonne (O visconde de Bragelonne, 1847), terceiro e último romance da saga de d’Artagnan e dos três mosqueteiros de Alexandre Dumas, pai.