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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Alessandro Manzoni
I Promessi Sposi
Izabel Dal Pont
em
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Supostamente baseada em um
manuscrito perdido dos anos 1600 que o autor simula ter recuperado, a ação da narrativa de I
Promessi Sposi (Os noivos) remete ao
norte da Itália, especificamente à Milano e à região da Lombardia que, à época,
vivia sob a ocupação espanhola. Digressões históricas, a exemplo das que
ocorrem nos
capítulos que versam sobre a peste (XXVIII,
XXXI e XXXII), alternadas
com a intriga, ajudam a compor um quadro histórico e social da região, nas
primeiras décadas do século XVII.
Três flagelos: a carestia, a guerra que
opunha os imperialistas e a Casa de Savóia
aos franceses e seus aliados, e a peste, assolam a região e marcam a trama. Pelos menos
dois narradores se fazem “ouvir” no
romance. Um
que relata a aventura dos protagonistas, outro que intervêm continuamente, fazendo
digressões para
contar a história
pregressa de personagens ou para relembrar fatos importantes como o contágio
pela peste. Esse segundo narrador chama a atenção para determinados fatos ou
detalhes, tece comentários implícitos ou explícitos, ora elogiosos, ora
maliciosos e/ou
irônicos, sobre personagens e sobre atos ou omissões praticados,
principalmente, por autoridades civis e religiosas. Por exemplo, em determinado
ponto do capítulo XXXIII, no
qual é descrita a relação de Renzo com o primo Bortolo, o narrador se dirige ao
leitor com a seguinte observação: “Forse voi vorreste un Bortolo più ideale:
non so che dire: fabbricatevelo. Quello era cosi”[1] (p. 598).
No plano narrativo, como aliás na vida civil, poderosos e humildes
ocupam lugares bem distintos. Além dos dois noivos, compõem o elenco de
personagens: senhores libertinos, prepotentes e muitas vezes sanguinários, padres
corajosos e padres covardes, camponeses, tecelões,
empregadas e senhoras fofoqueiras, advogados corruptos, funcionários
oportunistas, mercenários de toda espécie, uma Monaca
(suor Gertrude) desorientada, autoridades ineficientes, capangas e, até mesmo, um
poderoso e cruel senhor dito Innominato, que por fim, por interferência ou influência de
Lucia, converte-se ao cristianismo. Em outras palavras,
no interior do espaço ficcional de I Promessi Sposi desfila uma verdadeira amostra da humanidade.
Os protagonistas, o ingênuo e impetuoso Renzo e a tímida e
devota Lucia, dois jovens apaixonados, gente simples e trabalhadora, têm o
casamento cancelado, por determinação de Don Rodrigo, um signorotto que abusa do poder e faz valer suas próprias
leis na região. A
ação se inicia precisamente em novembro de 1828, quando Don Abbondio, um padre
que não era exatamente corajoso, pois “non era nato con un cuor di leone”[2] (p.15), recebe, sob ameaça, a ordem
para deixar de celebrar o casamento, previsto para o dia seguinte, de Renzo e
Lucia. Entre humildes e poderosos Don Abbondio acabava, quase sempre,
escolhendo ficar ao lado dos últimos,
e, portanto, acata a ordem do poderoso senhor se fingindo
de doente.
Depois da recusa do sacerdote em realizar as bodas e de uma tentativa de rapto
da noiva, a mando do dito Don Rodrigo, os noivos se veem obrigados a fugir e a seguir
por caminhos separados. Para reconquistar o direito ao matrimônio passam então
a viver uma série de imprevistos e desventuras, incluindo a superação da peste.
Somente com a morte do perseguidor da noiva e com o fim da epidemia é que Lucia e Renzo conseguem,
finalmente, realizar o sonho do casamento.
O destino dos dois heróis, evidentemente, não pode ser
apartado do contexto no qual estão inseridos, uma Lombardia submissa a uma
extrema violência, à uma imensa pobreza, à corrupção, ao abuso de poder, as
epidemias e as guerras de conquistas. Renzo e Lucia vivem, de fato, um “amor em
tempos de peste”.
Trazida, tudo indica, por um batalhão alemão (Lanzichenecchi), que veio
lutar em um conflito envolvendo a sucessão de Mantova, a peste começa a mostrar
seus primeiros tentáculos em uma pequena cidade da província de Lecco, nas
imediações do Lago di Como, e de lá se alastra pelo resto da Lombardia e da
Itália: “La peste che il tribunale della sanità
aveva temuto che potesse entrar con le bande alemanne nel milanese, c'era
entrata davvero, come è noto; ed è noto parimente che non si fermò qui, ma
invase e spopolò una buona parte d’Italia”[3] (p. 551). O contágio é facilitado
pelas péssimas condições sanitárias
e pela extrema pobreza que levara muita gente a viver e a perambular pelas
ruas, sobretudo nas grandes cidades como Milano.
Conhecimentos médicos limitados, especulações de toda
a sorte, em princípio atribuem às mortes ao castigo divino ou à conspiração de inimigos, etc.
Preconceito, intolerância e incompetência encontram terreno fértil e ganham
corpo dificultando ações de combate. O “Estado” concede livre acesso ao contágio permitindo ou
mesmo incentivando festas públicas como por exemplo, as comemorações pelo
nascimento do príncipe Carlo, primogênito do Rei, ou seja, herdeiro do reino de
Espanha (p. 555), e os festejos de
Carnaval. A Igreja, igualmente, contribui com a propagação da doença reunindo uma quantidade
enorme de fiéis,
justamente para pedir a intervenção divina
contra a mesma, em procissões pelas ruas de Milano (p. 572-573).
Conforme anunciado previamente,
temos, no cerne da trama, um narrador que se faz presente de forma contundente.
Sobre o contágio
e a peste, particularmente, interfere sistematicamente, comenta, julga, critica,
ironiza comportamentos, é sarcástico, sugere, interpreta, orienta, aconselha,
justifica. Em suas descrições utiliza termos e expressões, de forma alguma
neutros, tais como: “parece que”, “não acreditais que”, “como poderia ser
diferente?”, “tanto é verdade que”, “não sei o que dizer”, etc.
Em determinado ponto da trama, por exemplo,
esse narrador
observa com certo sarcasmo que o “protofisico” Lodovico Settala (p.553), ao
procurar implementar ações visando conter o contágio da peste, foi agredido justamente
por aqueles que tentava salvar. Em outro ponto, antes de abrir um parêntesis
para uma longa descrição sobre o Lazzeretto di
Milano, ele se
justifica dizendo que o faz pensando
naqueles que não conhecem
ou que nunca
ouviram falar de tal local: “(se, per caso, questa storia capitasse nelle mani di
qualcheduno che non lo conoscesse, né di vista né per descrizione)”[4] (p. 510).
Da mesma forma, a despeito do comportamento eufórico do povo provocado pela
baixa do preço da farinha e pela consequente abundância de pão, o narrador detecta
no ar, uma inquietude sutil, porém latente. Diante de tal quadro reage com ironia, através de uma pergunta (e come non ci
sarebbe stata?)
(p. 498), deixando implícito não acreditar em um estado de bonança duradouro.
Em outra passagem (p. 570), ao discorrer sobre o diagnóstico da doença que
assola Milano e a região, ele aconselha a quem interessar possa que: “Si
potrebbe però, [...] evitare, in gran parte, quel corso così lungo e così
storto, prendendo il metodo proposto da tanto tempo, d’observare, ascoltare,
paragonare, pensare, prima di parlare”[5].
I Promessi Sposi, é verdade, nunca perdeu sua
atualidade, porém suas páginas, pelo menos as que contam sobre a peste, por
vezes dão a impressão de terem sido escritas em 2020. Quem tem a oportunidade
de ler tais passagens
pode facilmente se identificar com os cidadãos que viviam no norte da Itália de quatro séculos
atrás. As semelhanças entre as duas épocas são inquietantes. Em comum, uma ameaça impalpável, um inimigo
invisível, autoridades omissas que menosprezam a gravidade da doença e em
consequência demoram a tomar as necessárias medidas sanitárias. Subavaliações,
avaliações equivocadas, irresponsabilidades de muitos cidadãos, deixam o vírus
livre para se difundir, contagiar, matar.
Nos dias atuais como naqueles tempos pretéritos, ainda que em contextos diferentes, defrontamo-nos
com flagelos similares: a peste agora denominada pandemia, a carestia
alimentada pela escassez e pelo oportunismo do lucro, e guerras - à época
guerras corpo a corpo e por conquistas de territórios, atualmente guerras nas Mídias
(guerras verborrágicas, fake-news, etc.) que espalham “venenos” como preconceitos, discriminações, intolerância; raiva, destinados, na maioria das vezes, a
conquistar mentes. O negacionismo e os embates entre autoridades sanitárias
que representam, ou pelo menos deveriam representar, a
ciência e autoridades
políticas se repetem.
A busca por culpados é outro ponto comum entre as duas
diferentes épocas.
Na Lombardia dos anos 1600, a peste teria sido espalhada pelos
franceses por
ordem do cardeal Richelieu,
em 2020 são os chineses os mais frequentemente acusados de terem disseminado o
coronavírus. Contudo, as
imagens surreais de centenas
de covas coletivas abertas, sobretudo, no norte brasileiro, os
desfiles de longos comboios
formados por caminhões militares carregados de
caixões com vítimas, no norte da Itália, e as mortes
por falta de oxigênio Brasil afora, chocam,
da mesma forma que, seguramente, as carroças transbordando de cadáveres
chocaram os habitantes de Milano (p. 569) e de tantas outras cidades italianas,
ao redor dos anos 1630.
Referências
Bibliográficas
MANZONI,
Alessandro. I
promessi sposi. Milano: Mondadori, 1985.
Disponível em http://www.letteraturaitaliana.net/pdf/Volume_8/t337.pdf
MALKA, Salomon.
Relire Les fiancés d’Alessandro
Manzoni. Le Figaro. Paris,
p. 1-6. 04 maio 2020. Disponível em:
https://www.lefigaro.fr/vox/culture/relire-les-fiances-d-alessandro-manzoni-20200504.
Acesso em: 29 abr. 2021.
____________________________
Como citar: DAL PONT, Izabel. "Amor, Peste e Contágio em I Promessi Sposi de Alessandro Manzoni", v. 2, n. 7, jul. 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/225524
[1] “Talvez vocês quisessem um Bortolo
mais ideal. Não sei o que dizer: Fabrique-o. Aquele era assim.”
[3] “A
peste que o tribunal sanitário temera que
pudesse entrar, com as tropas alemães no território Milanês, de fato entrara, como se sabe; e também como se
sabe, não parou por ali, mas invadiu e despovoou boa parte
da Itália.”
[4] “(se, por acaso, essa história caísse nas mãos de alguém que não o conhecesse [o
Lazzeretto], nem de vista e nem por descrição.)
[5] “Se poderia assim, […], evitar, em grande parte, um caminho tão longo e
tortuoso, seguindo, ao invés disso, o método proposto há tanto tempo, de
observar, escutar, comparar, pensar, antes de falar.”
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