La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Amor, Peste e Contágio em I Promessi Sposi de Alessandro Manzoni, por Izabel Dal Pont

 



Supostamente baseada em um manuscrito perdido dos anos 1600 que o autor simula ter recuperado, a ação da narrativa de I Promessi Sposi (Os noivos) remete ao norte da Itália, especificamente à Milano e à região da Lombardia que, à época, vivia sob a ocupação espanhola. Digressões históricas, a exemplo das que ocorrem nos capítulos que versam sobre a peste (XXVIII, XXXI e XXXII), alternadas com a intriga, ajudam a compor um quadro histórico e social da região, nas primeiras décadas do século XVII.
Três flagelos: a carestia, a guerra que opunha os imperialistas e a Casa de Savóia aos franceses e seus aliados, e a peste, assolam a região e marcam a trama. Pelos menos dois narradores se fazem “ouvir” no romance. Um que relata a aventura dos protagonistas, outro que intervêm continuamente, fazendo digressões para contar a história pregressa de personagens ou para relembrar fatos importantes como o contágio pela peste. Esse segundo narrador chama a atenção para determinados fatos ou detalhes, tece comentários implícitos ou explícitos, ora elogiosos, ora maliciosos e/ou irônicos, sobre personagens e sobre atos ou omissões praticados, principalmente, por autoridades civis e religiosas. Por exemplo, em determinado ponto do capítulo XXXIII, no qual é descrita a relação de Renzo com o primo Bortolo, o narrador se dirige ao leitor com a seguinte observação: “Forse voi vorreste un Bortolo più ideale: non so che dire: fabbricatevelo. Quello era cosi”[1] (p. 598). 

No plano narrativo, como aliás na vida civil, poderosos e humildes ocupam lugares bem distintos. Além dos dois noivos, compõem o elenco de personagens: senhores libertinos, prepotentes e muitas vezes sanguinários, padres corajosos e padres covardes, camponeses, tecelões, empregadas e senhoras fofoqueiras, advogados corruptos, funcionários oportunistas, mercenários de toda espécie, uma Monaca (suor Gertrude) desorientada, autoridades ineficientes, capangas e, até mesmo, um poderoso e cruel senhor dito Innominato, que por fim, por interferência ou influência de Lucia, converte-se ao cristianismo. Em outras palavras, no interior do espaço ficcional de I Promessi Sposi desfila uma verdadeira amostra da humanidade.
Os protagonistas, o ingênuo e impetuoso Renzo e a tímida e devota Lucia, dois jovens apaixonados, gente simples e trabalhadora, têm o casamento cancelado, por determinação de Don Rodrigo, um signorotto que abusa do poder e faz valer suas próprias leis na região. A ação se inicia precisamente em novembro de 1828, quando Don Abbondio, um padre que não era exatamente corajoso, pois “non era nato con un cuor di leone[2] (p.15), recebe, sob ameaça, a ordem para deixar de celebrar o casamento, previsto para o dia seguinte, de Renzo e Lucia. Entre humildes e poderosos Don Abbondio acabava, quase sempre, escolhendo ficar ao lado dos últimos, e, portanto, acata a ordem do poderoso senhor se fingindo de doente. Depois da recusa do sacerdote em realizar as bodas e de uma tentativa de rapto da noiva, a mando do dito Don Rodrigo, os noivos se veem obrigados a fugir e a seguir por caminhos separados. Para reconquistar o direito ao matrimônio passam então a viver uma série de imprevistos e desventuras, incluindo a superação da peste. Somente com a morte do perseguidor da noiva e com o fim da epidemia é que Lucia e Renzo conseguem, finalmente, realizar o sonho do casamento.
O destino dos dois heróis, evidentemente, não pode ser apartado do contexto no qual estão inseridos, uma Lombardia submissa a uma extrema violência, à uma imensa pobreza, à corrupção, ao abuso de poder, as epidemias e as guerras de conquistas. Renzo e Lucia vivem, de fato, um “amor em tempos de peste”.
Trazida, tudo indica, por um batalhão alemão (Lanzichenecchi), que veio lutar em um conflito envolvendo a sucessão de Mantova, a peste começa a mostrar seus primeiros tentáculos em uma pequena cidade da província de Lecco, nas imediações do Lago di Como, e de lá se alastra pelo resto da Lombardia e da Itália: La peste che il tribunale della sanità aveva temuto che potesse entrar con le bande alemanne nel milanese, c'era entrata davvero, come è noto; ed è noto parimente che non si fermò qui, ma invase e spopolò una buona parte d’Italia”[3] (p. 551). O contágio é facilitado pelas péssimas condições sanitárias e pela extrema pobreza que levara muita gente a viver e a perambular pelas ruas, sobretudo nas grandes cidades como Milano.
Conhecimentos médicos limitados, especulações de toda a sorte, em princípio atribuem às mortes ao castigo divino ou à conspiração de inimigos, etc. Preconceito, intolerância e incompetência encontram terreno fértil e ganham corpo dificultando ações de combate. O “Estado” concede livre acesso ao contágio permitindo ou mesmo incentivando festas públicas como por exemplo, as comemorações pelo nascimento do príncipe Carlo, primogênito do Rei, ou seja, herdeiro do reino de Espanha (p. 555), e os festejos de Carnaval. A Igreja, igualmente, contribui com a propagação da doença reunindo uma quantidade enorme de fiéis, justamente para pedir a intervenção divina contra a mesma, em procissões pelas ruas de Milano (p. 572-573).
Conforme anunciado previamente, temos, no cerne da trama, um narrador que se faz presente de forma contundente. Sobre o contágio e a peste, particularmente, interfere sistematicamente, comenta, julga, critica, ironiza comportamentos, é sarcástico, sugere, interpreta, orienta, aconselha, justifica. Em suas descrições utiliza termos e expressões, de forma alguma neutros, tais como: “parece que”, “não acreditais que”, “como poderia ser diferente?”, “tanto é verdade que”, “não sei o que dizer”, etc.
Em determinado ponto da trama, por exemplo, esse narrador observa com certo sarcasmo que o “protofisico” Lodovico Settala (p.553), ao procurar implementar ações visando conter o contágio da peste, foi agredido justamente por aqueles que tentava salvar. Em outro ponto, antes de abrir um parêntesis para uma longa descrição sobre o Lazzeretto di Milano, ele se justifica dizendo que o faz pensando naqueles que não conhecem ou que nunca ouviram falar de tal local: “(se, per caso, questa storia capitasse nelle mani di qualcheduno che non lo conoscesse, né di vista né per descrizione)[4] (p. 510). Da mesma forma, a despeito do comportamento eufórico do povo provocado pela baixa do preço da farinha e pela consequente abundância de pão, o narrador detecta no ar, uma inquietude sutil, porém latente. Diante de tal quadro reage com ironia, através de uma pergunta (e come non ci sarebbe stata?) (p. 498), deixando implícito não acreditar em um estado de bonança duradouro. Em outra passagem (p. 570), ao discorrer sobre o diagnóstico da doença que assola Milano e a região, ele aconselha a quem interessar possa que: “Si potrebbe però, [...] evitare, in gran parte, quel corso così lungo e così storto, prendendo il metodo proposto da tanto tempo, d’observare, ascoltare, paragonare, pensare, prima di parlare”[5].
I Promessi Sposi, é verdade, nunca perdeu sua atualidade, porém suas páginas, pelo menos as que contam sobre a peste, por vezes dão a impressão de terem sido escritas em 2020. Quem tem a oportunidade de ler tais passagens pode facilmente se identificar com os cidadãos que viviam no norte da Itália de quatro séculos atrás. As semelhanças entre as duas épocas são inquietantes. Em comum, uma ameaça impalpável, um inimigo invisível, autoridades omissas que menosprezam a gravidade da doença e em consequência demoram a tomar as necessárias medidas sanitárias. Subavaliações, avaliações equivocadas, irresponsabilidades de muitos cidadãos, deixam o vírus livre para se difundir, contagiar, matar.
Nos dias atuais como naqueles tempos pretéritos, ainda que em contextos diferentes, defrontamo-nos com flagelos similares: a peste agora denominada pandemia, a carestia alimentada pela escassez e pelo oportunismo do lucro, e guerras - à época guerras corpo a corpo e por conquistas de territórios, atualmente guerras nas Mídias (guerras verborrágicas, fake-news, etc.) que espalham “venenos” como preconceitos, discriminações, intolerância; raiva, destinados, na maioria das vezes, a conquistar mentes. O negacionismo e os embates entre autoridades sanitárias que representam, ou pelo menos deveriam representar, a ciência e autoridades políticas se repetem.
A busca por culpados é outro ponto comum entre as duas diferentes épocas. Na Lombardia dos anos 1600, a peste teria sido espalhada pelos franceses por ordem do cardeal Richelieu, em 2020 são os chineses os mais frequentemente acusados de terem disseminado o coronavírus. Contudo, as imagens surreais de centenas de covas coletivas abertas, sobretudo, no norte brasileiro, os desfiles de longos comboios formados por caminhões militares carregados de caixões com vítimas, no norte da Itália, e as mortes por falta de oxigênio Brasil afora, chocam, da mesma forma que, seguramente, as carroças transbordando de cadáveres chocaram os habitantes de Milano (p. 569) e de tantas outras cidades italianas, ao redor dos anos 1630.
 
Referências Bibliográficas
MANZONI, Alessandro. I promessi sposi. Milano: Mondadori, 1985. Disponível em http://www.letteraturaitaliana.net/pdf/Volume_8/t337.pdf
MALKA, Salomon. Relire Les fiancés dAlessandro Manzoni. Le Figaro. Paris, p. 1-6. 04 maio 2020. Disponível em: https://www.lefigaro.fr/vox/culture/relire-les-fiances-d-alessandro-manzoni-20200504. Acesso em: 29 abr. 2021.
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Como citar: DAL PONT, Izabel. "Amor, Peste e Contágio em I Promessi Sposi de Alessandro Manzoni"v. 2, n. 7, jul. 2021.  Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/225524


[1] “Talvez vocês quisessem um  Bortolo mais ideal. Não sei o que dizer: Fabrique-o. Aquele era assim.”
[2] não tinha nascido com um coração de leão”. Todas as traduções são de nossa autoria.
[3] A peste que o tribunal sanitário temera que pudesse entrar, com as tropas alemães no território Milanês, de fato entrara, como se sabe; e também como se sabe, não parou por ali, mas invadiu e despovoou boa parte da Itália.”
[4] “(se, por acaso, essa história caísse nas mãos de alguém que não o conhecesse [o Lazzeretto], nem de vista e nem por descrição.)
[5] “Se poderia assim, […], evitar, em grande parte, um caminho tão longo e tortuoso, seguindo, ao invés disso, o método proposto há tanto tempo, de observar, escutar, comparar, pensar, antes de falar.”