- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
![]() |
Imagem: pxhere.com |
Para
iniciar
A amizade é um encontro
transparente entre pessoas, e quando se afasta desse ritmo esperado, o
sentimento fica apenas na memória de quem gostaria de ter maior intimidade numa
tranquila parceria. Nesta análise, trata-se da expressão de marcações afetivas em
cenários literários interligados às circunstâncias parentais e a encontros
casuais entre personagens femininas, em que, em geral, umas são relações duradouras
e outras repentinas. Essa mobilidade é alicerçada por encadeamentos de interpretação
com elucidações poéticas e históricas pensadas sob formulações sugeridas pelo francês
Jacques Rancière (2005). O autor evoca “Uma partilha do sensível”, fórmula que,
no conjunto da literatura, atrai tonalidades psicológicas e filosóficas, as
quais se revelam na maneira “de fazer, ver e julgar” das escritoras no processo
de criação das histórias ficcionais[1].
Jacques Rancière atribui
ao literário uma atuação humana pelo “modo como as formas artísticas refletem
estruturas ou movimentos sociais”. Daí pode-se pensar nas intervenções da
literatura que adota um sentido da “maneira de ser dos indivíduos e das
coletividades”[2].
A arte pertence a um regime específico do sensível, o qual é “estranho a si
mesmo”, cuja ambiguidade produz um saber que se transforma por vezes “em
não-saber”[3]. As ideias colocadas pelo
filósofo se ajustam aos variados aspectos da amizade trabalhados nos romances das
escritoras italianas traduzidas no Brasil: Elena Ferrante (A filha perdida, 2016), e Donatella Di
Pietrantonio (A devolvida, 2019). Elena
Ferrante “é o pseudônimo de uma romancista italiana cuja verdadeira identidade
é desconhecida do público”[4]; Donatella Di Pietrantonio
“nasceu e vive na Itália, na região de Abruzzo”[5]. Uma e outra escritora descrevem
a amizade embaraçada por culpas. Em A
filha perdida, nas figuras de mulheres adultas – Nina e Leda –, e por
afinidades, em A devolvida, na
relação de duas adolescentes: a protagonista e a irmã que se juntam por laços
de apoio.
Tonalidades
da amizade
Na protagonista do
romance de Elena Ferrante, a amizade aparece como um sentimento desordenado, enraizado
em vivências casuais, as quais espelham os conflitos da subjetividade de uma
narradora em busca de um conhecimento maior de si mesma. Leda, em A filha perdida, tenta superar um
passado não resolvido entre ela e a mãe que “perdia a cadência meiga e gritava”,
“intoxicada pela infelicidade”, “não aguento mais vocês”, referindo-se à
protagonista e às suas irmãs[6].
A
filha perdida acerca-se da trajetória de Leda, narradora-protagonista,
de meia idade, que traz ao narrado uma ausência a que submete as filhas, que
abandonou “quando a maior tinha seis anos e a menor, quatro”[7]. Segundo justifica, fez
isso porque “as amava demais e achava que o amor por elas impedia que” se
tornasse ela mesma[8].
Esse foi o modo que encontrou para não se tornar uma mãe rude, ao não conciliar
os cuidados maternos com “o fulgor da vida fora delas”[9]. As inquietações de Leda decorrem
do medo que vivenciara em sua própria infância, resultante das ameaças feitas
pela mãe, das quais fugiria; o temor em perdê-la é um provável motivo para as
dificuldades no trato com as garotas e com as amizades ao longo de sua história.
No início dos relatos,
tem-se uma protagonista que sai sozinha para umas férias de verão, sentindo-se “Pela
primeira vez em quase vinte e cinco anos” sem “aquela ansiedade por ter que
tomar conta” das meninas que, agora, adultas, estão em “Toronto”, onde o pai
trabalha[10].
A narrativa sobrepõe ao presente da escrita lembranças das filhas que se
misturam à admiração por uma jovem veranista, mãe de uma menininha chamada Elena.
Em A filha perdida, a atração pela turista envolve rápidos encontros entre
Leda, professora universitária, e Nina, que se ocupa, sobretudo,
com a criação da filha. Não são as diferenças sociais que impedem a
continuidade de uma amizade sólida, mas um comportamento interrompido por
circunstâncias obscuras, em particular, por parte da narradora. O dispositivo
de tensão é marcado pelo desaparecimento da boneca de Elena, que Leda descobre sob
a areia e guarda no apartamento, sem alguma generosidade que a fizesse entregá-la
para a menina. De posse do brinquedo, a devolução é adiada, talvez para se
aprofundar em um emaranhado de recordações de suas filhas, como o acesso de
fúria que a fez jogar uma boneca pela sacada diante do olhar perplexo de uma
das meninas. Junta-se à culpa pela agressão aplicada às filhas o desamparo imposto
às garotinhas com a ideia de substituir compras domésticas e tarefas de lavar
“roupa suja”, por “um trabalho mais rentável”[11].
Leda, mesmo com suas vivências
maternas complicadas, ignora o sofrimento de Elena,
que fica longe do brinquedo; o que desencadeou o término de uma provável
amizade, antes mesmo que surgisse um encontro mais intenso entre ela e Nina. A instabilidade
de Leda, ao persistir nesse furto, cancela o que daria outros sucessivos e
agradáveis diálogos; essa atitude sombria permite à Nina passar do estado de
sujeição para um momento de altivez adquirido na raiva extrema com que fere a
narradora por meio de um alfinete de chapéu. Sob a reação de violência, Nina
tem a imagem desconstruída pela narrativa que, num primeiro momento, se apresenta
sob o olhar idealizado de Leda. No decorrer da trama, porém, surgem indícios do
desequilíbrio emocional de Nina, que se intensifica quando a
personagem entra no apartamento de Leda para pegar a chave com a finalidade de
ali receber o amante. É nesse espaço e momento que perde o controle, ao se
deparar com a boneca da filhinha, reagindo ao delito com “insultos terríveis” e
ferindo a protagonista “bem embaixo das costelas”[12].
Elena Ferrante, em Frantumaglia: os caminhos de uma escritora, de 2017, retoma as
personagens de Leda e Nina, em A filha
perdida, associando-as a uma amizade em forma de “um caldeirão de
sentimentos bons e ruins em permanente ebulição” num território onde tudo aconteceu
ao contrário e nada era seguro. Trata-se de uma razão para a história das duas
avançar por “uma empreitada árdua”[13], resultado de identidades
que se ocuparam demais com a própria vida, ignorando um projeto coletivo sem as
falhas de carências individuais.
São esses alguns indicadores que retratam o desconforto de Leda nas relações interpessoais, ficando, portanto, longe dos bons hábitos da cordialidade da amizade. Na teoria do sociólogo italiano Francesco Alberoni (1997), o termo é pensado como “um sentimento sereno, transparente, feito de fé” e respeito entre alguém que quer bem o outro e que procura “encontrar-se e estar à vontade” junto à pessoa escolhida. Nas concepções do autor, a amizade é “um componente essencial” na vida das pessoas, contudo, no mundo contemporâneo, “Há pouco espaço para as relações pessoais sinceras”, isso porque muitas seguem critérios individualistas e privilégios”, quando poderiam se envolver de forma solidária com relacionamentos que se desdobrassem em trocas no enfrentamento de inseguranças e abandonos[14]. As designações do autor permitem entender que as personagens de Elena Ferrante não constroem amizades fortes, pois as metas que criam não fogem de narrativas superficiais do próprio eu; e, sem reciprocidade, a tendência foi deixar para trás um sentimento que poderia se abrir para um conhecimento mútuo.
Em outras palavras, as personagens, em A filha perdida, não ultrapassam o juízo crítico da simpatia, o que se justifica não pelas poucas vezes que se encontraram, mas porque não conseguiram, numa situação inicial, expressar com transparência as próprias impressões. Faltou-lhes “sucessivos aprofundamentos” para que a amizade se revelasse por uma linguagem comum, baseada no companheirismo; o que explica a transformação em mágoas [15]. Por conseguinte, as mulheres ficcionais de A filha perdida não fizeram reparações, pelo menos com desculpas, que eliminassem os desentendimentos entre elas. O enredo bloqueia a possibilidade de tais ajustes, seguindo o tom da desconfiança e da agressão, individualizando o encontro feminino pela falta de correspondência afetiva, por isso terminar logo quando as personagens se conhecem.
Diferentemente, em Donatella Di Pietrantonio, no romance A devolvida, a ligação de ternura é traduzida pela fidelidade de laços de parentesco, neste estudo, interpretado, sobretudo, entre irmãs. Nessas relações, a amizade “experimenta forte impulso de simpatia, interesse e afinidade e a experiência se transforma num encontro” de garotas que se reconhecem mutuamente como irmãs e amigas, para usar as formulações de Francesco Alberoni[16]. A devolvida é narrada em primeira pessoa por uma mulher adulta que, à luz da ficção, trata do medo resultante do desamparo familiar por suas duas mães, a adotiva e a biológica, sofrido por ela na adolescência. A personagem sem nome próprio é conhecida pelo adjetivo “devolvida”, construída por memórias do abandono que provocou nela um súbito temor pelo desconhecido no contato com novos familiares, os quais ocupavam a margem contrária de tudo que experimentara. No entremeio do brusco encontro, nasce a amizade com a irmã Adriana, de quem nunca ouvira falar; a emoção que as envolve não responde aos anseios da protagonista, entretanto, a parceria supera a falta de carinho da mãe natural, que se mostra amargurada e sem energia para mudar as condições de miséria em que vive.
Um perfil da protagonista-narradora do livro A devolvida pode ser assim traduzido pela periodista Andrea Pérez, no jornal El Mundo: “Durante 13 años no le dijeron la verdad sobre su nacimiento, así que ella vive en el silencio de los adultos y en esas condiciones es muy difícil reconstruir una identidad”[17]. En su nueva vida, tan solo una de sus hermanas, Adriana, le servirá como apoyo”[18]. Esta, até então desconhecida, torna-se amiga, sendo capaz de ajudar a devolvida a lidar com emoções que apareceram “de un día para otro”, quando perdeu “una casa confortable, a sus mejores amigas, el cariño incondicional de sus padres o de quienes creía que eran sus padres”. É Adriana “la hermana pequeña que le abrirá mucho más que la puerta de su nueva casa”[19], quando largada junto aos parentes ignorados “naquela tarde de agosto de 1975”[20].
Em outros termos, a figura da devolvida é imaginada em consequência de planos desfeitos; porém, a aparência nebulosa da história da protagonista avança através da sustentação positiva de Adriana. Por exemplo, “sentadas numa mesinha como dois velhos jogando cartas”, a devolvida se sujeita à espontaneidade da irmã Adriana de encarar a miséria. A garota abriu para a protagonista outras realidades, como o dia em que correram para a festa do “santo padroeiro”[21]. Juntas foram ao parque de diversões, no qual a devolvida sobe em um “chapéu mexicano” pela primeira vez. Adriana, já experiente, ajuda a garota a subir na cadeirinha, recomendando que ela se “Segure firme nas correntes”, o que lhe dá a impressão de voar protegida do medo pela irmã. Naquele momento, ela alcançou “uma espécie de felicidade”, o que não tinha acontecido nos últimos dias, os quais equivaliam a “uma neblina pesada” sobre ela. No jogo de brincadeiras, a devolvida “passava por cima daqueles sentimentos e podia até esquecê-los, pelo menos por alguns instantes”[22].
É com essa aliança de ternura que as duas chegaram ao final das cenas do enredo “paradas uma diante da outra, tão sozinhas e próximas” – a narradora “mergulhada até o peito e ela, agora, até o pescoço”[23]. O palco desenhado com sensações íntimas da amizade entre as garotas acompanha “um desejo demasiadamente humano de felicidade”, como se aquele mergulho no mar pudesse restituir a liberdade e sonhos capturados por dispositivos de poderes familiares, os quais tentaram “modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões” de suas juvenis existências[24].
A aproximação entre as personagens meninas de Donatella Di Pietrantonio, com seus jeitos simples, supera as tensões que substituíram os gracejos de adolescente por intempéries familiares. Para a devolvida, Adriana era um aquecedor físico e emocional que “Toda noite [oferecia como apoio] um pé para [ela] recostar a bochecha”[25]. Ela e a irmã conseguem, no emaranhado de contratempos familiares, administrar suas vidas, a exemplo das lutas de mulheres que tentam, ao longo da história social, preencher localidades com suas próprias inspirações.
No romance A devolvida, a amizade é uma forma coletiva de contrariar a hierarquia de domínio de mães; Adriana e a protagonista não querem se sujeitar a um destino que não foi escolhido por elas, daí a tentativa de romperem com as amarguras de uma adolescência, em que juntas “Na cumplicidade se salvaram”[26]. As personagens, com atitudes de censura e de independência, desafiam os sentimentos negativos, invertendo-os por situações novas com uma consciência social positiva aliada ao querer bem uma da outra; juntas procuram retomar para si o que lhes foi separado do “limite das águas seguras”[27]. Portanto, Donatella Di Pietrantonio remete a uma tentativa de fuga das adolescentes pela intensidade afetiva com a qual se cercam e, por esse viés de interação, a escritora italiana move a literatura com ações femininas em busca do próprio bem-estar no mundo.
Elena Ferrante e Donatella Di
Pietrantonio pensam nas agonias existenciais de personagens que
buscam identificação entre uma pessoa e outra pela amizade. Interessante dizer
que, nos enredos, o sentimento ganha importância no desdobramento das
diferentes reações das personagens em A
filha perdida e em A devolvida. A
amizade produzida pelas narrativas motiva pensar nos ressentimentos causados por
uma admiração brutalmente interrompida, no caso de Nina e Leda, ou por uma
cumplicidade entre a devolvida e Adriana.
Em resumo, os aspectos de amizade nas
ficções discutidas não se descaracterizam ao longo da narrativa, pois não
anulam os aborrecimentos de Leda e Nina, como não há o desvio da amizade da
retornada e da irmã, em que os laços se estreitam, substituindo as lamentações pela
resistência do afeto. Sob esse prisma, as personagens, adultas e adolescentes, partilham
experiências sensíveis de desigualdades percebidas no contexto familiar e fora
dele, ao contarem algumas das fragilidades que atravessaram suas histórias.
Nas produções indicadas, as
duas escritoras não programam uma amizade pronta para a felicidade;
reservam-lhe um local de incômodo, o que é uma experiência
valiosa, pois abrem probabilidades para mulheres se colocarem no lugar da outra
e descobrirem o que é essencial para todas em circunstâncias narrativas que nem
sempre favoreceram a empatia. As emoções presentes nos dois romances
ampliam a arte pela modulação poética da amizade feminina, a qual deve obter
maior visibilidade em universos de obras e de pesquisas literárias.
____________________
Como citar: BRANDOLT, Marlene Rodrigues. "Modulações da amizade feminina em A filha perdida e A devolvida", v. 2, n. 7, jul. 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/225220
[1] RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política.
Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO Experimental, 2005, p. 31.
[2] RANCIÈRE, Jacques, op. cit., p. 29.
[3]
RANCIÈRE, Jacques, op. cit., p. 32.
[4] FERRANTE, Elena. A filha perdida. Trad. Marcello Lino.
Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016 (orelha).
[5]
PIETRANTONIO, Donatella di. A devolvida.
Trad. Mario
Bresighello. São Paulo: Faro Editorial, 2019 (orelha).
[6] FERRANTE, Elena. A filha perdida. Trad. Marcello Lino.
Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016, pp. 21-22.
[7] FERRANTE, Elena, op. cit., p. 83.
[8] FERRANTE, Elena, op. cit., p. 143.
[9] FERRANTE, Elena, op. cit., p. 143.
[10] FERRANTE, Elena, op. cit., p. 7.
[11] FERRANTE, Elena, op. cit., p. 7.
[12] FERRANTE, Elena, op. cit., p. 173.
[13] FERRANTE, Elena. Fratumaglia: os caminhos de uma escritora.
Trad. Marcello Lino. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017, p. 195.
[14] ALBERONI, Francesco. La amistad.
Aproximación a uno de los más antiguos vínculos humanos. Trad.
Paulo Dullius. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 1.
[15] ALBERONI,
Francesco, op. cit., p. 1.
[16] ALBERONI,
Francesco, op. cit., p. 2.
[17] PÉREZ, Andrea. ‘La retomada’: el nuevo fenómeno literario que llega de
Italia. El Mundo, 19 set. 2018. Disponível em:
<https://www.elmundo.es/cultura/literatura/
2018/09/19/5ba259b246163f70a48b45f6.htm>. Acesso em: 20 mar. 2020.
[18] PÉREZ, Andrea, op. cit.
[19] PÉREZ, Andrea, op. cit.
[20] PIETRANTONIO,
Donatella di. A devolvida. Trad.
Mario Bresighello. São Paulo: Faro Editorial, 2019, p. 13.
[21] PIETRANTONIO,
Donatella di, op. cit., p. 21.
[22] PIETRANTONIO,
Donatella di, op. cit., p. 22.
[23] PIETRANTONIO,
Donatella di, op. cit., p. 158.
[24] AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In O que é contemporâneo? e outros ensaios.
Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, pp. 44-40.
[25] PIETRANTONIO,
Donatella di. A devolvida. Trad. Mario Bresighello. São
Paulo: Faro Editorial, 2019, p. 15.
[26] PIETRANTONIO,
Donatella di, op. cit., p. 158.
[27] PIETRANTONIO,
Donatella di, op. cit., p. 158.
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos