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Traduzindo Cesare Pavese: "Verrà la morte e avrà i tuoi occhi" em versões, por Cláudia Alves e Elena Santi
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A
produção poética de Cesare Pavese (Santo Stefano Belbo, 9 de setembro de 1908 –
Turim, 27 de agosto de 1950) está em grande parte reunida em duas coletâneas
aparentemente diversas, mas que revelam, na contraluz da experiência poética,
marcas de continuidade. A primeira delas, Lavorare
stanca[1] [Trabalhar
cansa], foi editada pela primeira vez em 1936, enquanto o poeta se encontrava
em exílio em Brancaleone, na Calábria, e chegou a receber uma nova edição,
revista pelo próprio autor, em 1943. A segunda, Verrà la morte e avrà i tuoi occhi [Virá a morte e terá os teus
olhos], foi organizada postumamente por Massimo Mila e Italo Calvino e veio a
público em 1951.
Esta
segunda coletânea se encontra dividida, por sua vez, em duas seções: “La terra
e la morte” [“A terra e a morte”], que reúne uma série de poemas escritos em
1945 e publicados na “Rivista d’Umanità Lettere ed Arti”, em 1947, e um segundo
bloco, homônimo ao título dado ao livro, em que figuram poemas até então
inéditos. Em nota à edição de Le Poesie[2] [As
poesias], organizada por Tiziano Scarpa e publicada pela Einaudi, conta-se que
esse segundo bloco é composto por poemas escritos durante a primavera de 1950,
em Turim, e que foram encontrados por amigos após a morte de Pavese (ocorrida
no verão daquele mesmo ano) em uma gaveta de seu escritório na editora Einaudi,
na qual trabalhou por vários anos. É interessante notar como, entre esses dois
blocos, cuja composição é marcada por uma distância temporal de cinco anos,
estabelece-se uma relação de continuidade e diálogo.
O
título, Verrà la morte e avrà i tuoi
occhi, dado pelos organizadores seja à coletânea, seja ao segundo bloco de
textos inéditos, coincide com o primeiro verso do poema em que Pavese encara a
inevitabilidade da morte, associando-a aos olhos de sua amada, a atriz
norte-americana Constance Dowling, cuja figura se liga, nos poemas amorosos a
ela dedicados, às reflexões sobre arte, poesia, mito e destino, que Pavese
vinha desenvolvendo. De alguma maneira, é possível sintetizar o tom dessa
coletânea nesse verso, que funciona como uma espécie de lugar suspenso em que
se flutua entre a melancolia da morte, que é certeira e nos espreita enquanto
vivemos em distração, e o sentimento de acolhimento que surge quando a chegada
da morte é associada ao corpo, aqui trazido, metonimicamente, sobretudo pelos
olhos de quem se ama.
A
expressão “virá a morte” e a ideia de que estamos sendo acompanhados
constantemente por essa morte personificada, que nos segue em nossos
cotidianos, já havia aparecido entre os escritos de Pavese, especificamente na anotação
de 30 de novembro de 1937 presente em seu diário, publicado postumamente como Il mestiere di vivere[3]
[O ofício de viver]:
Eppure
non riesco a pensare una volta alla morte senza tremare a quest’idea: verrà la
morte necessariamente, per cause ordinarie, preparata da tutta una vita,
infallibile tant’è vero che sarà avvenuta. Sarà un fatto naturale come il
cadere di una pioggia. E a questo non mi rassegno: perché non si cerca la morte
volontaria, che sia affermazione di libera scelta, che esprima qualcosa? Invece
di lasciarsi morire? Perché?
Per
questo. Si rimanda sempre la decisione sapendo – sperando – che un altro
giorno, un’altra ora di vita potrebbero essere affermazione, espressione di un
ulteriore volontà che, scegliendo la morte, escluderemmo. Perché insomma –
parlo di me – si pensa che ci sarà sempre tempo. E verrà il giorno della morte
naturale. E avremo perso la grande occasione di fare per una ragione l’atto più
importante di tutta la vita.
Contudo,
não consigo pensar sequer uma vez na morte sem tremer por esta ideia: virá a
morte necessariamente, por causas ordinárias, preparada por toda uma vida,
infalível, tanto que ela terá acontecido. Será um fato natural como o cair de
uma chuva. E não me conformo com isso: por que não se busca a morte voluntária,
que seja afirmação de livre escolha, que expresse alguma coisa? Em lugar de se
deixar morrer? Por quê?
Por
isso. Adia-se sempre a decisão sabendo – esperando – que um outro dia, uma
outra hora de vida poderiam ser afirmação, expressão de uma vontade ulterior
que, escolhendo a morte, excluiríamos. Porque, enfim, – falo por mim – se pensa
que haverá sempre tempo. E virá o dia da morte natural. E teremos perdido a
grande oportunidade de realizar, com um porquê, o ato mais importante da vida
toda.[4]
Nessas
poucas palavras de Pavese já resulta evidente o sentimento de inelutabilidade
da morte, mas também a ambiguidade que ela leva consigo: não apenas um destino
comum, mas uma presença perturbadora e desejável, a afirmação da própria
vontade e liberdade ou um deixar-se morrer natural, sem sobressaltos.
Nos
versos do poema Verrà la morte e avrà i
tuoi occhi, novamente, encontramos esses elementos e essas tensões,
reelaborados a partir da forma lírica, que se torna instrumento estético de
reflexão.
Verrà la morte e avrà i tuoi
occhi (Cesare Pavese)
Verrà la morte e avrà i tuoi occhi –
questa morte che ci accompagna
dal mattino alla sera, insonne,
sorda, come un vecchio rimorso
o un vizio assurdo. I tuoi occhi
saranno una vana parola,
un grido taciuto, un silenzio.
Cosí li vedi ogni mattina
nello specchio. O cara speranza,
quel giorno sapremo anche noi
che sei la vita e sei il nulla.
Per tutti la morte ha uno sguardo.
Verrà la morte e avrà i tuoi occhi.
Sarà come smettere un vizio,
come vedere nello specchio
riemergere un viso morto,
come ascoltare un labbro chiuso.
Scenderemo nel gorgo muti.
22 marzo 1950.
No
poema, as figuras femininas da morte e da mulher amada se confundem, a partir
das imagens dos olhos e do olhar. E é justamente na ambiguidade desse olhar que
é criada a tensão entre desejo e dor, entre a inelutabilidade do fim, e a
espera da figura amada.
Diferentemente
da coletânea Trabalhar cansa,
publicada no Brasil em tradução de Maurício Santana Dias[5], Virá a morte e terá os teus olhos é, ainda, inédita no país –
motivo pelo qual temos nos dedicado à sua tradução, com publicação prevista
ainda para o ano de 2021. O poema homônimo conta, contudo, com algumas
traduções importantes, entre elas a de Maria Betânia Amoroso e a de Maurício
Santana Dias. Essas leituras, com tudo o que acarretam, foram fundamentais no
nosso percurso de tradutoras de Cesare Pavese, estabelecendo um diálogo
constante e inacabado, uma conversa sem fim e que ressoa nas nossas leituras e
nas nossas escolhas. A seguir, reproduzimos as duas traduções já publicadas e
acrescentamos a nossa, ainda inédita, como um convite à degustação da poesia de
Pavese.
Virá
a morte e terá os teus olhos (Maria Betânia Amoroso)[6]
Virá a morte e terá
os teus olhos –
esta morte que nos
acompanha
desde a manhã até a
noite, insone,
surda, como um velho
remorso
ou um vício absurdo.
Os teus olhos
serão uma palavra vã,
um grito calado, um
silêncio.
Assim são vistos todo
amanhecer
quando a sós sobre ti
mesma te inclines
ao espelho. Oh cara
esperança,
naquele dia também
nós saberemos
que és a vida e o
nada.
Para todos a morte
tem um olhar.
Virá a morte e terá
os teus olhos.
Será como abandonar
um vício,
como ver do espelho
aflorar uma face
morta,
como ouvir lábios
cerrados.
Desceremos pelo
vórtice mudos.
*
Virá
a Morte e Terá Teus Olhos (Maurício Santana Dias)[7]
Virá a morte e terá
teus olhos -
esta morte que nos
escolta
de manhã e de noite,
insone,
surda, como um velho
remorso
ou um vício absurdo.
Teus olhos
serão uma inútil
palavra,
um grito calado, um
silêncio.
Assim te surgem nas
manhãs
quando em ti te
dobras, sozinha,
no espelho. Ó, cara
esperança,
nesse dia então
saberemos
que és a vida e és o
nada.
A todos a morte
contempla.
Virá a morte e terá
teus olhos.
Será como o corte de
um vício,
como ver ressurgir
aos poucos
no espelho um
semblante morto,
como ouvir um lábio
cerrado.
Desceremos mudos no
abismo.
*
Virá
a morte e terá os teus olhos (Cláudia Alves e Elena Santi)[8]
Virá a morte e terá
os teus olhos –
morte esta que nos
acompanha
de manhã até a noite,
insone,
surda, como um velho
remorso
ou um vício absurdo.
Os teus olhos
serão uma palavra
vazia,
um grito calado, um
silêncio.
Assim os vês toda
manhã
quando sozinha te debruças
no espelho. Ó cara
esperança,
nesse dia até nós
saberemos
que és a vida e és o
nada.
A morte olha por
todos nós.
Virá a morte e terá
os teus olhos.
Será como largar um
vício,
ou como avistar neste
espelho
o reemergir de um
rosto morto,
como ouvir um lábio
cerrado.
Desceremos no abismo
mudos.
22 de março de 1950.
[1] Sobre esta
coletânea, indicamos os seguintes artigos publicados aqui na Revista de
Literatura Italiana Traduzida: “Os poemas-narrativos de Cesare Pavese”, de
Fabiana Assini, disponível em:
<https://literatura-italiana.blogspot.com/2018/06/os-poemas-narrativos-de-cesare-pavese.html>,
e “Trabalhar cansa: a poesia de Cesare Pavese entre mitologia e narração”, de
Elena Santi, disponível em:
<https://literatura-italiana.blogspot.com/2020/05/trabalhar-cansa-poesia-de-cesare-pavese.html>.
[3] PAVESE, Cesare. Il mestiere di
vivere: diario (1935-1950) con il taccuino segreto. Livro
digital. Milão: Rizzoli, 2021.
[4] Tradução nossa.
No Brasil, até o momento da publicação deste texto, o diário de Cesare Pavese
se encontra disponível na tradução de Homero Freitas de Andrade, publicado em
1988 com o título O ofício de viver,
pela editora Bertrand Brasil.
[5] PAVESE, Cesare. Trabalhar cansa. Tradução de Maurício
Santana Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
[6] Tradução
publicada no suplemento “Folhetim”, da “Folha de São Paulo”, em abril de 1983.
[7] Tradução
publicada no caderno “Mais!”, da “Folha de São Paulo”, em 27 de agosto de 2000,
disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2708200019.htm>.
[8] PAVESE, Cesare. Virá a morte e terá os teus olhos. Trad.
Cláudia Alves e Elena Santi. São Paulo: Edições Jabuticaba, 2021 (no prelo).
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