La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Uma leitura coral das vozes narrativas em Fontamara, de Ignazio Silone, por Rafael Reginato Moura

 



Musicalmente, Fontamara[1] remete à sinuosidade sonora de um rio, cuja corrente parece ondular em variação entre as vogais abertas que oferecem tonicidade, cume líquido, antes de verterem aos seus pares átonos. Decerto, essa primeira imagem sonora desague ao encontro dos fatos correntes no romance: o roubo da água vital à vida dos cafoni, o desvio do riacho para as terras da autoridade maior do município, a paisagem seca e amarga decorrente de tal orquestração superior. Mas Fontamara não deixou de ser sempre assim, música esquecida, negligenciada, monótona, subsumida, eco cingido entre o cerco das montanhas[2].
Proponho aqui quatro rápidos movimentos que, dentre suas repetições ou retomadas, almejem apreciar os tons, escalas e ritmos solfejados pelas vozes narrativas corais[3] em Fontamara, ou seja, os quatro narradores que emprestam suas vozes à obra. Em consonância com os movimentos propostos por Candido (1999), esta breve análise de Fontamara pretende adotar, como visão humanizadora da literatura capaz de confirmar a humanidade do homem, uma conciliação íntegra das noções de estrutura e de função.
Também é importante destacar que as vozes narrativas corais de Fontamara, resguardada a sua coragem, não se resumem a um credo ideológico, a concordar com um posfácio de Gabriela Betella (Peterle, 2011), para quem a história oral como ponto de partida da trama ainda lança relevo sobre a particularidade vivida pelos seus habitantes, ao mesmo tempo em que a universalidade atingida pelo romance faz notar os traços literários assimilados pela estrutura.

Primeira voz, o autor narrador

Ignazio Silone, cafone até a juventude, é quem assina, data e narra o prefácio. Vive no exílio na Suíça nesta época. Como um cronista da história[4], aquele que Benjamin (1994) diferencia do historiador, Ignazio Silone marca, desde o início, o ritmo da narrativa, suas idiossincrasias, estilo, ressonâncias que irão se desdobrar sobre as demais vozes corais durante os capítulos seguintes. Já nesta primeira voz, portanto, é possível notar os acordes de uma melopeia que se recobra sobre si mesma, em movimentos que às vezes se expandem um pouco mais, mas que inevitavelmente retornam a um mesmo tom monótono, às repetições, aliterações, paralelismos, retomadas, enumerações. Ao defender que, a rigor, somente a Música e a Literatura possuem ritmo, Moisés (1993) acrescenta que ambas ostentam um dos ingredientes fundamentais do ritmo: a sonoridade. Assim, o ritmo é a sucessão de massas sonoras. Fontamara tem sua própria poesia, a sua música, que não pode se dissociar das vozes cafoni, do seu sofrimento gutural, da sua litania, queixume, oscilação circular, por vezes neurótica, repetida, desdobrando-se numa cadência semicerrada em espécie de ladainha. É no prefácio de Silone, o primeiro narrador de Fontamara, que o tom e o ritmo que trespassarão a narrativa surgem, não raras vezes mais acentuados na descrição das paisagens que circundam a aldeia e que marcam o compasso da voz interior dos cafoni:
 
Un villaggio insomma come tanti altri; ma per chi vi nasce e cresce, il cosmo. L’intera storia universale vi si svolge: nascite morti amori odii invidie lotte disperazioni.
Altro su Fontamara non vi sarebbe da dire, se non fossero accaduti gli strani fatti che sto per raccontare. Ho visto in quella contrada i primi vent’anni della mia vita e altro non saprei dirvi.
Per vent’anni il solito cielo, circonscritto dall’anfiteatro dele montagne che serrano il Feudo come uma barriera sensa uscita; per vent’anni la solita terra, le solite piogge, il solito vento, la solita neve, le solite feste, i soliti cibi, le solite angustie, le solite pene, la solita miseria [...][5] (SILONE, 1999, p. 5).
 
O trecho acima é bastante representativo do tipo de linguagem que aparecerá em toda a narrativa. A ideia de um cosmo, que em Fontamara se estabelece como microcosmo, extrato real de um universal rural, camponês, figura aqui como um mundo que se fecha em si, sem saída ou plano de fuga, sempre em movimento centrípeto, para dentro, ciclo em repetição de sentidos internos. A inteira história universal que esse microcosmo amplia é a do ciclo das vidas presas dentro do anfiteatro das montanhas do Abruzzo, sentimentos e sensações que, à falta de vírgulas[6], misturam-se aleatoriamente, enumeráveis de geração em geração: “nascite morti amori odii invidie lotte disperazioni”. A assonância que se depreende das vogais deste e de outros tantos fragmentos do romance oferecem a impressão de unidades iguais, de mesmo peso, harmônicas, ainda que em seu movimento ampliado e extenuado na narrativa pareça um artifício de poucas notas, de rara inovação, pressuposto de cantilena que se reforça no final deste trecho – e em inúmeros outros também – com uma palavra que aqui desempenha a função de um pronome capaz de assegurar a repetição e força expressiva, anafórica, daquilo que não muda, que não pode mudar, que marca um compasso percussivo, uma batida “solito-solita-solite-solito-solita-solite-soliti-solite-solite-solita”. Não parece restar como acaso o fato do pronome, preservadas as suas variações de número e gênero, significar “mesmo”, algo que se repete, ainda que em português o nome “mesmo” não adquira a mesma sonoridade rítmica, a mesma batida marcante que a aliteração de “solito” no italiano.
As frases em Fontamara são em sua maioria curtas, de ordem sintática clara, sem rebuscamentos, fazendo fluir a narrativa com maior rapidez[7]. No entanto, em períodos descritivos, especialmente naqueles que buscam representar conjuntos – o conjunto de homens e de sua faina, de elementos da natureza/paisagem, de procedimentos burocráticos impostos pelo governo – os narradores, não apenas no prefácio, lançam mão de enumerações que geram um efeito de frases alongadas, de fragmentos emendados, atuando sobre o ritmo mais rápido das curtas orações. No entanto, independente da extensão das frases, o que parece saltar da narrativa de Fontamara é a sonoridade marcada pela repetição de palavras ao longo dos parágrafos, por vezes guardando certa distância, por vezes próximas, quase a se tocarem, mas sempre repetidas, reforçadas, retomadas anaforicamente. Aliterações e assonâncias que se acumulam na narrativa, salpicadas nas páginas, tal qual esguichos de mesma cor respingados numa tela cheia de outras cores básicas.
Silone, no prefácio, confessa que na sua juventude não ouvia os cafoni cantarem nenhuma música, apenas blasfemavam ou lançavam imprecações, pragas, palavrões. A narrativa de Fontamara, seja ela localizada em qualquer dos quatro narradores, não é rica em sonoridades distintas, em inovações sonoras, antes parece revolver-se sobre si, repisar o já pisado.
 
Segunda voz, Giuvà
 
Giuvà é o segundo narrador de Fontamara e que intercalará com a esposa, Matalé, a maior parte da narração. Giuvà é, portanto, o pai da família de cafoni narradores. Logo no início do primeiro capítulo ele reivindica o lugar da experiência de velho cafone: “I giovani non conoscono la storia, ma noi veicchi la conosciamo[8](SILONE, 1999, p. 15). A frase revela o narrador Giuvà como um velho aldeão de Fontamara, capaz de repassar sua experiência aos mais jovens por intermédio da narração de histórias de origem oral, porém não só ele. O pronome “nós” (noi) faz associá-lo a um coro de vozes, a outros velhos cafoni, unidos em experiência à sua voz.
Da mesma maneira como o primeiro narrador, Ignazio Silone, Giuvà mantém a sonoridade narrativa, as mesmas retomadas ou repetições de palavras, o mesmo ritmo, a mesma toada a lembrar uma ladainha, melopeia que não raras vezes parece ganhar uma filiação litúrgica, monótona e melodramática pelas vozes cafoni, ainda que tais repetições desdobrando-se sobre a narrativa evidenciem uma chave humanizadora, lamento característico de quem sofre a opressão do homem e do meio ambiente à maneira de carpideiras lamuriosas que nada podem fazer contra o destino. Giuvà logo esclarece esse ciclo vertiginoso das vidas cafoni de Fontamara: “[...] ripetendo sempre la stessa cosa, perché son cose che non mutano[9](SILONE, 1999, p. 18). O corte de energia elétrica em Fontamara, como algo ao mesmo tempo cíclico e sucessivo, demonstra mais uma vez a voz resignada de Giuvà somando-se à de Ignazio Silone e ao coro de vozes de todos os cafoni. Homens, mulheres, jovens ou crianças a entoarem a mesma melopeia:
 
La luce doveva essere tagliata al primo[10] gennaio. Poi al primo marzo. Poi al primo maggio. Poi si disse: “Non sarà più tolta [...] Vedrete che non sarà più tolta. E al primo giugno fu tagliata [...]
Ma noi che tornavamo dal lavoro – quelli che erano stati al mulino e tornavano per la strada rotabile, quelli che erano stati alla contrada del cimitero e tornavano giù dalla montagna, quelli che erano stati alla cava di sabbia e tornavano costeggiando il fosso, quelli che erano stati a giornata e tornavano un po’ da tutte le parti – a mano a mano che si faceva scuro e vedevamo le luci dei paesi vicini accendersi e Fontamara sbiadirsi, velarsi, annebbiarsi, confondersi con le rocce, con le fratte, con i mucchi di letame, capimmo subito di che si trattava. (Fu e non fu una sorpresa)[11] (SILONE, 1999, p. 16-17).
 
Em outras vezes, a repetição rítmica de uma mesma palavra parece adquirir uma carga semântica polissêmica, como no caso da mesa (tavolo) onde o representante miliciano do governo fascista (cav. Pelino), em meio à falta de luz em Fontamara, quer obrigar os cafoni a assinarem um papel que traz consigo, estranhamente sem identificação do que seja:
 
Il secondo foglio era già ricoperto di nomi e il forestiero aveva acceso già trenta o quaranta fiammiferi, quando oservò qualcosa sul tavolo[12]. Qualcosa che era sul tavolo lo impressiono, gli fece schifo. Sul tavolo non c’era nulla. Egli accese um fiammifero e tornò a guardare sul tavolo, fissamente. Si chinò sul tavolo fino a toccarlo col naso. Poi, indicando col dito un punto del tavolo, si mise a gridare con  la sua voce di capretto:
“Che è questo? A chi appartiene questa porcheria? Chi l’ha messo sul tavolo?[13](SILONE, 1999, p. 23).
 
Nesse excerto, portanto, observa-se que a palavra tavolo, ou mesa, pode representar o lugar de uma reunião, de uma solenidade como a assinatura de um documento, mas também o da intromissão do piolho que enoja o representante do governo tamborilando (ta-ta-ta-ta-tavolo) com suas patinhas sobre a mesa, símbolo da redução dos cafoni diante da autoridade, insetos maculando a falsa seriedade dos papéis sobre a mesa e ao redor dela.
 
Terceira voz, Matalé
 
Matalé dá continuidade à mesma cantilena iniciada por Ignazio Silone e Giuvà. Diante da melopeia de retomadas de expressões e palavras, aliterações e assonâncias, uma espécie de refrão aparece primeiramente na narrativa pela voz de Matalé: Quando le stranezze cominciano, chi le ferma più?[14] (SILONE, 1999, p. 41). A pergunta-refrão, com algumas variações, mas sempre chamando atenção para a repetição das estranhezas (stranezze), sintoma nítido dos fatos que passaram a ocorrem em Fontamara após a implantação do regime fascista na Itália, dará lugar somente a outro refrão no capítulo final, novo leitmotiv pronunciado pelos narradores: Che fare[15]? Entretanto, antes de passar a um novo e último refrão, a uma abertura para a não-resposta, à dúvida permanente, esse mesmo tom sempre partilhado pelos narradores pode apresentar outros exemplos, como essa descrição relatada por Matalé ao examinar o aspecto dos homens armados, de vestes negras, que inesperadamente chegam a Fontamara para revistar as casas dos cafoni, encontrando apenas mulheres, velhos e crianças na aldeia: “Gente[16] fiacca e, di giorno, vile. Gente servizievole verso i proprietari, ma a patto di avere l’immunità nelle cativerie contro i poveri. Gente senza scrupoli [...] Gente senza famiglia, senza onore, senza fede, gente infida, poveri ma nemici dei poveri[17] (SILONE, 1999, p. 118).
Matalé, apesar de narrar menos que o marido Giuvà e de manter a mesma sonoridade, as mesmas repetições e retomadas, a mesma melopeia, surge na narrativa como a voz feminina capaz de expor o ponto de vista das mulheres sobre as estranhezas e descalabros ocorridos em Fontamara em seu tempo, embora do ponto de vista da forma e no que se restringe à linguagem empregada, ela repita sem grandes variações os recursos e a cantilena iniciada pelos narradores anteriores, unindo-se ao uníssono coro cafone.
 
Quarta voz, o filho de Giuvà e Matalé
 
O antepenúltimo e o penúltimo capítulo são narrados pelo filho cafone de Giuvà e Matalé. Ele relata a viagem com o cafone Berardo Viola para Roma à procura de trabalho, a impossibilidade de um cafone conseguir trabalho em meio à burocracia do sistema, a penúria longe de casa, as ciladas, a fome, a prisão. Também esse quarto narrador manterá a escrita sonora e sintática dos anteriores, com a diferença de fazer falar, por intermédio de sua voz, Berardo Viola. Quando Berardo Viola se entrega à polícia disfarçando ser um procurado e subversivo agitador, o narrador acentua o tom da melopeia já vastamente escutada:
 
Lo Sconosciuto, il Solito Sconosciuto, era stato dunque catturato. Vari giornalisti e alti funzionari dello stato accorsero nella sede della pollizia dove noi eravamo prigioneri, alla prima voce che lo Sconosciuto, il Solito Sconosciuto fosse stato catturato. Ed esso era un cafone.
La polizia aveva cercato lo Sconosciuto in città, ma vi è un solo cittadino sconosciuto? Ogni cittadino è tesserato, catalogato, timbrato, conosciuto. Ma il cafone? Chi conosce il cafone? C’è mai stato un Governo che abbia conosciuto il cafone? E chi potrà mai tesserare, catalogare, timbrare, sorvegliare, conoscere tutti i cafoni?
Nulla di strano insomma che lo Sconosciuto, il Solito Sconosciuto, fosse un cafone[18] (SILONE, 1999, p. 193).
 
A confluência repetida de sibilações capazes de dar acento sonoro à solito e sconosciuto, ou, por outro lado, famílias de semelhanças sonoras como conosciuto, cittadino, cafone e catturato, oferecem um ritmo central à construção textual acima. O destaque ou acento sonoro verificado sobre tais formas ou palavras, exerce uma força expressiva ambígua que opera entre o desconhecido (sconosciuto) e o conhecido (conosciuto), entre o cafone e o citadino (cittadino), aproximações sonoras que contém distâncias ou oposições semânticas, mas que estabelecem relações de sentidos improváveis a executar um efeito sonoro de ritmo intencionalmente marcado, o mesmo que se arrasta ao longo de todo o romance como uma já batizada melopeia, cantilena por vezes monótona e que se dobra, como um sino, sobre suas próprias notas. Não desprovidas de intenção, nesse caso, parecem ser as diversas referências textuais a liturgias, a uma linguagem musical de tom sacro ou religioso, como no uso deliberado da expressão “Signor sí” (Senhor sim), em forma de estribilho operando no trecho abaixo narrado pelo filho de Giuvà e Matalé - o interrogatório junto ao chefe de polícia ainda na prisão, ao saber da morte obscura de Berardo Viola dentro da cela:
 
“Era lei l’amico del defunto Berardo Viola?” mi chiese.
“Signor sí.”
“Conferma che il defunto aveva sempre manifestato tendenze al suicidio?
“Signor sí.”
“Conferma che il defunto aveva ultimamente gravi dispiaceri amorosi?”
“Signor sí.”
“Conferma che il defunto era rinchiuso nella medesima cella di lei ed ha approfittato del fatto che lei dormiva per appendersi ad una inferriata?”
“Signor sí.”
“Bravo” mi disse all’uscita il commissario che aveva assistito all’interrogatorio, e mi offrì una sigaretta.
Poi fui condotto nel palazzo di giustizia, nell’ufficio di un giudice. E fu la stessa cantilena[19].
“Era lei l’amico del defunto Berardo Viola?” mi chiese il giudice.
“Signor sí, signor sí, signor sí.”
Anche lui mi fece firmare la carta e mi licenziò[20].
(SILONE, 1999, p. 198-199).
 
O último capítulo, anunciado pelo filho ao final dessa passagem e onde reverberará em dúvida aberta o refrão Che fare?, é narrado em alternância por Matalé e Giuvà.


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Como citar: MOURA, Rafael Reginato. "Uma leitura coral das vozes narrativas em Fontamara, de Ignazio Silone"v. 2, n. 9, set. 2021.  Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/227821

 
REFERÊNCIAS:
 
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: “Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura”. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.
________. Sobre o conceito da História. In: “Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura”. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 222-232.
CANDIDO, Antonio. “A literatura e a formação do homem”. Remate de Males : Revista do Departamento de Teoria Literária, São Paulo, n. esp., p. 81-89, 1999.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CEIA, Carlos. E-Dicionário de Termos Literários. s.v. “Narrador”. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/narrador/. Aceso em 16/07/2021.
MOISÉS, Massaud. A criação literária: poesia. São Paulo: Cultrix, 1993.
PETERLE, Patricia. Ignazio Silone e a dignidade da inteligência – Posfácio de Gabriela Betella. In: “Ignazio Silone: encruzilhadas entre literatura, história e política”. Niterói, RJ: Comunità, 2011.
SILONE, Ignazio. Fontamara. 16 ed. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 1999.
 
Outras fontes bibliográficas:
 
Breve dicionário dos termos musicais. Disponível em: https://pt.slideshare.net/giniasilva/dicionario-de-termos-musicais. Acesso em 16/07/2021.
 


[1] Optou-se nas citações do romance original em italiano ao longo deste artigo por uma tradução de rodapé do próprio autor, devido à percepção pessoal de que a única tradução à disposição do autor, realizada por Aristides da Silveira Lobo, parece guardar ora a exclusão de trechos do original italiano, ora a predileção por uma mensagem ideológica que destoa em sua modulação do texto original. Tal problematização não caberia aqui de maneira minuciosa, podendo ser tema de futuros artigos acadêmicos, restando apenas ratificar a escolha do autor por uma tradução própria desses trechos.
[2] "[...] não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?" (BENJAMIN, 1994, p. 223).
[3] Um primeiro problema dentro de uma análise estrutural se faz presente no que diz respeito à narrativa coral em Fontamara. Carlos Ceia, em seu E-dicionário de Termos Literários, faz referência aos tipos de narrador apontados por Gérard Genette, em Discurso da Narrativa. No caso das quatro vozes narrativas que se intercalam em Fontamara torna-se difícil, de maneira peremptória, defini-las entre narradores autodiegéticos - aqueles que narram as suas próprias experiências como personagem central dessa história – e narradores homodiegéticos - aqueles que não sendo personagens principais da história, narram os acontecimentos a ela inerentes. A dificuldade, nesse caso, reside em julgar o foco narrativo de cada narrador a partir de sua importância ou função dentro da narrativa, de seu protagonismo ou não. Em se tratando de um romance que não parece fazer destacar uma voz acima das outras, como se uma coletividade de vozes e ações emparelhadas ganhassem similar peso, numa mesma hierarquia polifônica, resta pensar nesses narradores como testemunhos orais, ou corais. Outro ponto a se destacar é que esses narradores ora narram em primeira pessoa do singular (eu), ora narram em primeira pessoa do plural (nós).
[4] O mesmo que preserva suas raízes no povo, nas suas camadas artesanais, segundo Benjamin (1994).
[5] “Uma aldeia, em suma, como tantas outras; mas para quem nasce e cresce lá, o cosmos. Toda a história universal se passa lá: nascimentos mortes amores ódios invejas lutas desesperos. Não haveria mais nada a dizer sobre Fontamara, se os estranhos acontecimentos que vou contar não tivessem acontecido. Eu vivi naqueles arredores os primeiros vinte anos da minha vida e nada mais haveria a dizer. Por vinte anos o céu de sempre, circunscrito ao anfiteatro das montanhas que encerram o Feudo como uma barreira sem saída; por vinte anos a mesma terra, a mesma chuva, o mesmo vento, a mesma neve, as mesmas festas, a mesma comida, as mesmas angústias, as mesmas dores, a mesma miséria [...]”.
[6] É importante já demarcar aqui que, apesar do uso em larga escala do recurso de enumerações dentro da narrativa de Fontamara, os elementos ou palavras enumeradas somente não contarão com vírgulas que os separe em algumas poucas ocasiões de seu prefácio.
[7] “[...] o segredo está na economia da narrativa em que os acontecimentos, independentemente de sua duração, se tornam punctiformes, interligados por segmentos retilíneos, num desenho em ziguezagues que corresponde a um movimento ininterrupto” (CALVINO, 1990, p. 48).
[8] “Os jovens não conhecem a história, mas nós velhos a conhecemos”.
[9][...] repetindo sempre a mesma coisa, porque são coisas que não mudam. Registra-se aqui que, apesar de na tradução subentender-se “son” por “sono”, construção verbal que consta na norma culta italiana, a possibilidade do uso de “son” no original pode decorrer de algum uso dialetal, assinalando uma discreta interposição do dialeto fontamaresi dentro da opção por narrar em língua italiana. Entretanto, caso se comprove a hipótese, tal descoberta é rara e ínfima dentro do texto de Fontamara”.
[10] Grifos meus.
[11]A luz devia ser cortada em primeiro de janeiro. Depois em primeiro de março. Depois se disse: “Não será mais tirada de nós [...] Vai ver que não será mais tirada”. E em primeiro de junho a luz foi cortada [...] Mas nós que voltávamos do trabalho – aqueles que tinham estado no moinho e voltavam pela estrada circular, aqueles que tinham estado na região do cemitério e voltavam da parte baixa da montanha, aqueles que tinham estado na escavação de areia e voltavam costeando a vala, aqueles que tinham estado o dia fora e voltavam de todas as partes – à medida que escurecia e víamos as luzes das aldeias vizinhas acenderem e Fontamara desvanecer-se, velar-se, enevoar-se, confundir-se com as rochas, com os pedaços da montanha, com os montes de estrume, soubemos imediatamente do que se tratava. (Foi e não foi uma surpresa)”.    
[12] Grifos meus.
[13] “A segunda folha já estava coberta de nomes e o forasteiro já havia acendido trinta ou quarenta fósforos, quando observou algo sobre a mesa. Algo que estava sobre a mesa o impressionou e causou nojo. Sobre a mesa não havia nada. Ele acendeu mais um fósforo e voltou a olhar sobre a mesa, fixamente. Inclinou-se sobre a mesa até tocá-la com o nariz. Então, apontando com o dedo para um ponto da mesa, começou a gritar com a sua voz de cabrito:
O que é isto? De quem é esta porcaria? Quem colocou isto sobre a mesa?”
[14] “Quando as estranhezas começam, quem as pode parar?”
[15] “O que fazer?”
[16] Grifos meus.
[17] “Gente fraca e, durante o dia, covarde. Gente útil para os proprietários, mas com a condição de ter imunidade na maldade contra os pobres. Gente sem escrúpulo [...] Gente sem família, sem honra, sem fé, gente traiçoeira, pobres mas inimigos dos pobres”. 
[18] “O Desconhecido, o Usual Desconhecido, tinha sido capturado. Vários jornalistas e altos funcionários do governo concordaram em unanimidade na sede da polícia onde estávamos presos que o Desconhecido, o Usual Desconhecido, tinha sido capturado. E que ele era um cafone. A polícia tinha procurado o Desconhecido na cidade, mas lá tem um único cidadão desconhecido? Cada cidadão da cidade é identificado, catalogado, carimbado, conhecido. Mas e o cafone? Quem conhece o cafone? Nunca existiu um governo que tenha conhecido o cafone? E quem será capaz de identificar, catalogar, carimbar, supervisionar, conhecer todos os cafoni? Portanto, não há nada de estranho que o Desconhecido, o Usual Desconhecido, seja um cafone”.         
[19] Grifo meu.
[20] “Você era amigo do defunto Berardo Viola?” me perguntou.
“Senhor sim.”
“Confirma que o defunto sempre manifestou tendências suicidas?”
“Senhor sim.”
“Confirma que o defunto tem tido ultimamente graves tristezas amorosas?”
“Senhor sim.”
“Confirma que o defunto estava detido na mesma cela que você e aproveitou do fato de que você dormia para se enforcar numa das grades?”
“Senhor sim.”
“Muito bem”, me disse à saída o comissário que tinha assistido ao interrogatório, e me ofereceu um cigarro.
Depois eu fui conduzido ao palácio de justiça, no escritório de um juiz. E seguiu-se a mesma cantilena.
“Você era amigo do defunto Berardo Viola?” me perguntou o juiz.
“Senhor sim, senhor sim, senhor sim.”
Ele também me fez assinar o papel e me liberou.