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Musicalmente, Fontamara[1]
remete à sinuosidade sonora de um rio, cuja corrente parece ondular em
variação entre as vogais abertas que oferecem tonicidade, cume líquido, antes
de verterem aos seus pares átonos. Decerto, essa primeira imagem sonora desague
ao encontro dos fatos correntes no romance: o roubo da água vital à vida dos cafoni, o desvio do riacho para as
terras da autoridade maior do município, a paisagem seca e amarga decorrente de
tal orquestração superior. Mas Fontamara não
deixou de ser sempre assim, música esquecida, negligenciada, monótona,
subsumida, eco cingido entre o cerco das montanhas[2].
Proponho aqui quatro rápidos movimentos
que, dentre suas repetições ou retomadas, almejem apreciar os tons, escalas e
ritmos solfejados pelas vozes narrativas corais[3]
em Fontamara, ou seja, os quatro
narradores que emprestam suas vozes à obra. Em consonância com os movimentos
propostos por Candido (1999), esta breve análise de Fontamara pretende adotar, como visão humanizadora da literatura
capaz de confirmar a humanidade do homem, uma conciliação íntegra das noções de
estrutura e de função.
Também é importante destacar que as
vozes narrativas corais de Fontamara, resguardada
a sua coragem, não se resumem a um credo ideológico, a concordar com um
posfácio de Gabriela Betella (Peterle, 2011), para quem a história oral como ponto de partida da trama ainda lança
relevo sobre a particularidade vivida pelos seus habitantes, ao mesmo tempo em
que a universalidade atingida pelo romance faz notar os traços literários
assimilados pela estrutura.
Primeira voz, o autor narrador
Ignazio Silone, cafone até a juventude, é quem assina, data e narra o prefácio.
Vive no exílio na Suíça nesta época. Como um cronista da história[4], aquele que Benjamin (1994)
diferencia do historiador, Ignazio Silone marca, desde o início, o ritmo da
narrativa, suas idiossincrasias, estilo, ressonâncias que irão se desdobrar
sobre as demais vozes corais durante os capítulos seguintes. Já nesta primeira
voz, portanto, é possível notar os acordes de uma melopeia que se recobra sobre
si mesma, em movimentos que às vezes se expandem um pouco mais, mas que
inevitavelmente retornam a um mesmo tom monótono, às repetições, aliterações,
paralelismos, retomadas, enumerações. Ao defender que, a rigor, somente a
Música e a Literatura possuem ritmo, Moisés (1993) acrescenta que ambas
ostentam um dos ingredientes fundamentais do ritmo: a sonoridade. Assim, o
ritmo é a sucessão de massas sonoras. Fontamara
tem sua própria poesia, a sua música, que não pode se dissociar das vozes cafoni, do seu sofrimento gutural, da
sua litania, queixume, oscilação circular, por vezes neurótica, repetida,
desdobrando-se numa cadência semicerrada em espécie de ladainha. É no prefácio
de Silone, o primeiro narrador de Fontamara,
que o tom e o ritmo que trespassarão a narrativa surgem, não raras vezes
mais acentuados na descrição das paisagens que circundam a aldeia e que marcam
o compasso da voz interior dos cafoni:
Un villaggio insomma come tanti
altri; ma per chi vi nasce e cresce, il cosmo. L’intera storia universale vi si
svolge: nascite morti amori odii invidie lotte disperazioni.
Altro su Fontamara non vi sarebbe
da dire, se non fossero accaduti gli strani fatti che sto per raccontare. Ho
visto in quella contrada i primi vent’anni della mia vita e altro non saprei
dirvi.
Per vent’anni il solito cielo,
circonscritto dall’anfiteatro dele montagne che serrano il Feudo come uma
barriera sensa uscita; per vent’anni la solita terra, le solite piogge, il
solito vento, la solita neve, le solite feste, i soliti cibi, le solite
angustie, le solite pene, la solita miseria [...][5] (SILONE, 1999, p. 5).
O trecho acima é bastante
representativo do tipo de linguagem que aparecerá em toda a narrativa. A ideia
de um cosmo, que em Fontamara se
estabelece como microcosmo, extrato real de um universal rural, camponês,
figura aqui como um mundo que se fecha em si, sem saída ou plano de fuga, sempre em
movimento centrípeto, para dentro, ciclo em repetição de sentidos internos. A
inteira história universal que esse microcosmo amplia é a do ciclo das vidas
presas dentro do anfiteatro das montanhas do Abruzzo, sentimentos e sensações que, à falta de vírgulas[6], misturam-se aleatoriamente,
enumeráveis de geração em geração: “nascite
morti amori odii invidie lotte disperazioni”. A assonância que se depreende
das vogais deste e de outros tantos fragmentos do romance oferecem a impressão
de unidades iguais, de mesmo peso, harmônicas, ainda que em seu movimento
ampliado e extenuado na narrativa pareça um artifício de poucas notas, de rara
inovação, pressuposto de cantilena que se reforça no final deste trecho – e em
inúmeros outros também – com uma palavra que aqui desempenha a função de um
pronome capaz de assegurar a repetição e força expressiva, anafórica, daquilo
que não muda, que não pode mudar, que marca um compasso percussivo, uma batida
“solito-solita-solite-solito-solita-solite-soliti-solite-solite-solita”.
Não parece restar como acaso o fato do pronome, preservadas as suas
variações de número e gênero, significar “mesmo”, algo que se repete, ainda que
em português o nome “mesmo” não adquira a mesma sonoridade rítmica, a mesma
batida marcante que a aliteração de “solito”
no italiano.
As frases em Fontamara são em sua maioria curtas, de ordem sintática clara, sem
rebuscamentos, fazendo fluir a narrativa com maior rapidez[7].
No entanto, em períodos descritivos, especialmente naqueles que buscam representar
conjuntos – o conjunto de homens e de sua faina, de elementos da
natureza/paisagem, de procedimentos burocráticos impostos pelo governo – os
narradores, não apenas no prefácio, lançam mão de enumerações que geram um
efeito de frases
alongadas, de fragmentos emendados, atuando sobre o ritmo mais rápido das
curtas orações. No entanto, independente da extensão das frases, o que parece
saltar da narrativa de Fontamara é a
sonoridade marcada pela repetição de palavras ao longo dos parágrafos, por vezes
guardando certa distância, por vezes próximas, quase a se tocarem, mas sempre
repetidas, reforçadas, retomadas anaforicamente. Aliterações e assonâncias que
se acumulam na narrativa, salpicadas nas páginas, tal qual esguichos de mesma
cor respingados numa tela cheia de outras cores básicas.
Silone, no prefácio, confessa que na
sua juventude não ouvia os cafoni cantarem
nenhuma música, apenas blasfemavam ou lançavam imprecações, pragas, palavrões.
A narrativa de Fontamara, seja ela
localizada em qualquer dos quatro narradores, não é rica em sonoridades
distintas, em inovações sonoras, antes parece revolver-se sobre si, repisar o
já pisado.
Segunda voz, Giuvà
Giuvà é o segundo narrador de Fontamara e que intercalará com a esposa, Matalé, a maior parte da narração.
Giuvà é, portanto, o pai da família de cafoni
narradores. Logo no início do primeiro capítulo ele
reivindica o lugar da experiência de velho cafone:
“I giovani non conoscono la storia, ma noi veicchi la conosciamo[8]”
(SILONE, 1999, p. 15). A frase revela o narrador Giuvà como um velho aldeão
de Fontamara, capaz de repassar sua
experiência aos mais jovens por intermédio da narração de histórias de origem
oral, porém não só ele. O pronome “nós” (noi)
faz associá-lo a um coro de vozes, a outros velhos cafoni, unidos em experiência à sua voz.
Da mesma maneira como o primeiro
narrador, Ignazio Silone, Giuvà mantém a sonoridade narrativa, as mesmas retomadas
ou repetições de palavras, o mesmo ritmo, a mesma toada a lembrar uma ladainha,
melopeia que não raras vezes parece ganhar uma filiação litúrgica, monótona e
melodramática pelas vozes cafoni, ainda
que tais repetições desdobrando-se sobre a narrativa evidenciem uma chave
humanizadora, lamento característico de quem sofre a opressão do homem e do
meio ambiente à maneira de carpideiras lamuriosas que nada podem fazer contra o
destino. Giuvà logo esclarece esse ciclo vertiginoso das vidas cafoni de Fontamara: “[...] ripetendo
sempre la stessa cosa, perché son cose che non mutano[9]” (SILONE, 1999,
p. 18). O corte de
energia elétrica em Fontamara, como
algo ao mesmo tempo cíclico e sucessivo, demonstra mais uma vez a voz resignada
de Giuvà somando-se à de Ignazio Silone e ao coro de vozes de todos os cafoni. Homens, mulheres, jovens ou crianças
a entoarem a mesma melopeia:
La luce doveva essere tagliata al
primo[10] gennaio.
Poi al primo marzo. Poi al primo maggio. Poi si disse: “Non sarà più
tolta [...] Vedrete che non sarà
più tolta”. E al primo giugno fu
tagliata [...]
Ma noi che tornavamo dal lavoro – quelli
che erano stati al mulino e tornavano
per la strada rotabile, quelli che
erano stati alla contrada del cimitero e tornavano giù dalla montagna, quelli
che erano stati alla cava di sabbia e tornavano
costeggiando il fosso, quelli che
erano stati a giornata e tornavano un
po’ da tutte le parti – a mano a mano che si faceva scuro e
vedevamo le luci dei paesi vicini accendersi
e Fontamara sbiadirsi, velarsi,
annebbiarsi, confondersi con le rocce,
con le fratte, con i mucchi di letame, capimmo subito di che si
trattava. (Fu e non fu una
sorpresa)[11] (SILONE, 1999, p. 16-17).
Em outras vezes, a repetição rítmica
de uma mesma palavra parece adquirir uma carga semântica polissêmica, como no
caso da mesa (tavolo) onde o
representante miliciano do governo fascista (cav. Pelino), em meio à falta de
luz em Fontamara, quer obrigar os cafoni a assinarem um papel que traz
consigo, estranhamente sem identificação do que seja:
Il secondo foglio era già
ricoperto di nomi e il forestiero aveva acceso già trenta o quaranta
fiammiferi, quando oservò qualcosa sul
tavolo[12]. Qualcosa che era sul tavolo lo impressiono, gli fece schifo. Sul tavolo non c’era nulla. Egli accese um fiammifero e tornò a
guardare sul tavolo, fissamente. Si chinò sul tavolo fino a toccarlo col naso. Poi, indicando col dito un
punto del tavolo, si mise a gridare
con la sua voce di capretto:
“Che è questo? A chi appartiene
questa porcheria? Chi l’ha messo sul
tavolo?[13]” (SILONE, 1999, p. 23).
Nesse excerto, portanto, observa-se
que a palavra tavolo, ou mesa, pode
representar o lugar de uma reunião, de uma solenidade como a assinatura de um
documento, mas também o da intromissão do piolho que enoja o representante do
governo tamborilando (ta-ta-ta-ta-tavolo)
com suas patinhas sobre a mesa, símbolo da redução dos cafoni diante da autoridade, insetos maculando a falsa seriedade
dos papéis sobre a mesa e ao redor dela.
Terceira voz, Matalé
Matalé dá continuidade à mesma
cantilena iniciada por Ignazio Silone e Giuvà. Diante da melopeia de retomadas
de expressões e palavras, aliterações e assonâncias, uma espécie de refrão
aparece primeiramente na narrativa pela voz de Matalé: “Quando le stranezze cominciano, chi le ferma più?[14]” (SILONE, 1999, p.
41). A pergunta-refrão, com algumas variações, mas sempre chamando atenção para
a repetição das estranhezas (stranezze),
sintoma nítido dos fatos que passaram a ocorrem em Fontamara após a implantação do regime fascista na Itália, dará
lugar somente a outro refrão no capítulo final, novo leitmotiv pronunciado pelos narradores: Che fare[15]?
Entretanto, antes de passar a um novo e último refrão, a uma abertura para a
não-resposta, à dúvida permanente, esse mesmo tom sempre partilhado pelos
narradores pode apresentar outros exemplos, como essa descrição relatada por
Matalé ao examinar o aspecto dos homens armados, de vestes negras, que
inesperadamente chegam a Fontamara para
revistar as casas dos cafoni, encontrando
apenas mulheres, velhos e crianças na aldeia: “Gente[16]
fiacca e, di giorno, vile. Gente
servizievole verso i proprietari, ma a patto di avere l’immunità nelle
cativerie contro i poveri. Gente senza scrupoli [...] Gente senza famiglia, senza onore, senza fede, gente
infida, poveri ma nemici dei poveri[17]” (SILONE, 1999, p. 118).
Matalé, apesar de narrar menos que o
marido Giuvà e de manter a mesma sonoridade, as mesmas repetições e retomadas,
a mesma melopeia, surge na narrativa como a voz feminina capaz de expor o ponto
de vista das mulheres sobre as estranhezas e descalabros ocorridos em Fontamara em seu tempo, embora do ponto
de vista da forma e no que se restringe à linguagem empregada, ela repita sem
grandes variações os recursos e a cantilena iniciada pelos narradores
anteriores, unindo-se ao uníssono coro cafone.
Quarta voz, o filho de Giuvà e Matalé
O antepenúltimo e o penúltimo
capítulo são narrados pelo filho cafone de
Giuvà e Matalé. Ele relata a viagem com o cafone
Berardo Viola para Roma à procura de trabalho, a impossibilidade de um cafone conseguir trabalho em meio à
burocracia do sistema, a penúria longe de casa, as ciladas, a fome, a prisão.
Também esse quarto narrador manterá a escrita sonora e sintática dos
anteriores, com a diferença de fazer falar, por intermédio de sua voz, Berardo
Viola. Quando Berardo Viola se entrega à polícia disfarçando ser um procurado e
subversivo agitador, o narrador acentua o tom da melopeia já vastamente
escutada:
Lo Sconosciuto, il Solito
Sconosciuto, era stato dunque catturato.
Vari giornalisti e alti funzionari dello stato accorsero nella sede della
pollizia dove noi eravamo prigioneri, alla prima voce che lo Sconosciuto, il Solito Sconosciuto fosse stato catturato.
Ed esso era un cafone.
La polizia aveva cercato lo Sconosciuto in città, ma vi è un solo cittadino sconosciuto? Ogni cittadino è tesserato, catalogato,
timbrato, conosciuto. Ma il cafone? Chi conosce il cafone? C’è mai stato un Governo che
abbia conosciuto il cafone? E chi potrà mai tesserare,
catalogare, timbrare, sorvegliare, conoscere tutti i cafoni?
Nulla di strano insomma che lo Sconosciuto, il Solito Sconosciuto, fosse un cafone[18] (SILONE, 1999, p.
193).
A confluência repetida de sibilações
capazes de dar acento sonoro à solito e
sconosciuto, ou, por outro lado, famílias de semelhanças sonoras como conosciuto, cittadino, cafone e catturato, oferecem
um ritmo central à construção textual acima. O destaque ou acento sonoro
verificado sobre tais formas ou palavras, exerce uma força expressiva ambígua
que opera entre o desconhecido (sconosciuto)
e o conhecido (conosciuto), entre
o cafone e o citadino (cittadino), aproximações sonoras que
contém distâncias ou oposições semânticas, mas que estabelecem relações de
sentidos improváveis a executar um efeito sonoro de ritmo intencionalmente
marcado, o mesmo que se arrasta ao longo de todo o romance como uma já batizada
melopeia, cantilena por vezes
monótona e que se dobra, como um sino, sobre suas próprias notas. Não
desprovidas de intenção, nesse caso, parecem ser as diversas referências
textuais a liturgias, a uma linguagem musical de tom sacro ou religioso, como
no uso deliberado da expressão “Signor
sí” (Senhor sim), em forma de estribilho operando no trecho abaixo narrado
pelo filho de Giuvà e Matalé - o
interrogatório junto ao chefe de polícia ainda na prisão, ao saber da morte
obscura de Berardo Viola dentro da cela:
“Era lei l’amico del defunto
Berardo Viola?” mi chiese.
“Signor sí.”
“Conferma che il defunto aveva
sempre manifestato tendenze al suicidio?
“Signor sí.”
“Conferma che il defunto aveva
ultimamente gravi dispiaceri amorosi?”
“Signor sí.”
“Conferma che il defunto era
rinchiuso nella medesima cella di lei ed ha approfittato del fatto che lei
dormiva per appendersi ad una inferriata?”
“Signor sí.”
“Bravo” mi disse all’uscita il
commissario che aveva assistito all’interrogatorio, e mi offrì una sigaretta.
Poi fui condotto nel palazzo di
giustizia, nell’ufficio di un giudice. E fu la stessa cantilena[19].
“Era lei l’amico del defunto
Berardo Viola?” mi chiese il giudice.
“Signor sí, signor sí, signor
sí.”
Anche lui mi fece firmare la
carta e mi licenziò[20].
(SILONE, 1999, p. 198-199).
O último capítulo, anunciado pelo
filho ao final dessa passagem e onde reverberará em dúvida aberta o refrão Che fare?, é narrado em alternância por
Matalé e Giuvà.
Como citar: MOURA, Rafael Reginato. "Uma leitura coral das vozes narrativas em Fontamara, de Ignazio Silone", v. 2, n. 9, set. 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/227821
REFERÊNCIAS:
BENJAMIN, Walter. O
narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: “Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura”. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.
________. Sobre o conceito
da História. In: “Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura”. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1994, p. 222-232.
CANDIDO, Antonio. “A
literatura e a formação do homem”. Remate
de Males : Revista do Departamento de Teoria Literária, São Paulo, n. esp.,
p. 81-89, 1999.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo
Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CEIA, Carlos. E-Dicionário de Termos Literários. s.v. “Narrador”. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/narrador/.
Aceso em 16/07/2021.
MOISÉS, Massaud. A criação literária: poesia. São Paulo:
Cultrix, 1993.
PETERLE,
Patricia. Ignazio Silone e a dignidade da
inteligência – Posfácio de Gabriela Betella. In: “Ignazio Silone:
encruzilhadas entre literatura, história e política”. Niterói, RJ: Comunità,
2011.
SILONE, Ignazio. Fontamara.
16 ed. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 1999.
Outras fontes bibliográficas:
Breve
dicionário dos termos musicais.
Disponível em: https://pt.slideshare.net/giniasilva/dicionario-de-termos-musicais.
Acesso em 16/07/2021.
[1] Optou-se
nas citações do romance original em italiano ao longo deste artigo por uma
tradução de rodapé do próprio autor, devido à percepção pessoal de que a única
tradução à disposição do autor, realizada por Aristides da Silveira Lobo,
parece guardar ora a exclusão de trechos do original italiano, ora a predileção
por uma mensagem ideológica que destoa em sua modulação do texto original. Tal
problematização não caberia aqui de maneira minuciosa, podendo ser tema de
futuros artigos acadêmicos, restando apenas ratificar a escolha do autor por
uma tradução própria desses trechos.
[2] "[...] não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado
antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que
emudeceram?" (BENJAMIN, 1994, p. 223).
[3] Um primeiro problema
dentro de uma análise estrutural se faz presente no que diz respeito à
narrativa coral em Fontamara. Carlos
Ceia, em seu E-dicionário de Termos
Literários, faz referência aos tipos de narrador apontados por Gérard
Genette, em Discurso da Narrativa. No
caso das quatro vozes narrativas que se intercalam em Fontamara torna-se difícil, de maneira peremptória, defini-las
entre narradores autodiegéticos - aqueles que narram as suas próprias experiências como personagem central
dessa história – e narradores homodiegéticos - aqueles que não sendo
personagens principais da história, narram os acontecimentos a ela inerentes. A
dificuldade, nesse caso, reside em julgar o foco narrativo de cada narrador a
partir de sua importância ou função dentro da narrativa, de seu protagonismo ou
não. Em se tratando de um romance que não parece fazer destacar uma voz acima
das outras, como se uma coletividade de vozes e ações emparelhadas ganhassem
similar peso, numa mesma hierarquia polifônica, resta pensar nesses narradores
como testemunhos orais, ou corais. Outro ponto a se destacar é que esses
narradores ora narram em primeira pessoa do singular (eu), ora narram em
primeira pessoa do plural (nós).
[5] “Uma aldeia, em suma,
como tantas outras; mas para quem nasce e cresce lá, o cosmos. Toda a história
universal se passa lá: nascimentos mortes amores ódios invejas lutas
desesperos. Não haveria mais nada a dizer sobre Fontamara, se os estranhos acontecimentos que vou contar não
tivessem acontecido. Eu vivi naqueles arredores os primeiros vinte anos da
minha vida e nada mais haveria a dizer. Por vinte anos o céu de sempre,
circunscrito ao anfiteatro das montanhas que encerram o Feudo como uma barreira
sem saída; por vinte anos a mesma terra, a mesma chuva, o mesmo vento, a mesma
neve, as mesmas festas, a mesma comida, as mesmas angústias, as mesmas dores, a
mesma miséria [...]”.
[6] É importante já demarcar
aqui que, apesar do uso em larga escala do recurso de enumerações dentro da
narrativa de Fontamara, os elementos
ou palavras enumeradas somente não contarão com vírgulas que os separe em
algumas poucas ocasiões de seu prefácio.
[7] “[...] o
segredo está na economia da narrativa em que os acontecimentos, independentemente
de sua duração, se tornam punctiformes, interligados por segmentos retilíneos,
num desenho em ziguezagues que corresponde a um movimento ininterrupto”
(CALVINO, 1990, p. 48).
[9] “[...] repetindo sempre a
mesma coisa, porque são coisas que não mudam. Registra-se aqui que, apesar de
na tradução subentender-se “son” por
“sono”, construção verbal que consta
na norma culta italiana, a possibilidade do uso de “son” no original pode decorrer de algum uso dialetal, assinalando
uma discreta interposição do dialeto fontamaresi
dentro da opção por narrar em língua italiana. Entretanto, caso se comprove
a hipótese, tal descoberta é rara e ínfima dentro do texto de Fontamara”.
[11] “A luz devia ser cortada
em primeiro de janeiro. Depois em primeiro de março. Depois se disse: “Não será
mais tirada de nós [...] Vai ver que não será mais tirada”. E em primeiro de
junho a luz foi cortada [...] Mas nós que voltávamos do trabalho – aqueles que
tinham estado no moinho e voltavam pela estrada circular, aqueles que tinham
estado na região do cemitério e voltavam da parte baixa da montanha, aqueles
que tinham estado na escavação de areia e voltavam costeando a vala, aqueles
que tinham estado o dia fora e voltavam de todas as partes – à medida que
escurecia e víamos as luzes das aldeias vizinhas acenderem e Fontamara
desvanecer-se, velar-se, enevoar-se, confundir-se com as rochas, com os pedaços
da montanha, com os montes de estrume, soubemos imediatamente do que se
tratava. (Foi e não foi uma surpresa)”.
[13] “A segunda folha já
estava coberta de nomes e o forasteiro já havia acendido trinta ou quarenta
fósforos, quando observou algo sobre a mesa. Algo que estava sobre a mesa o impressionou
e causou nojo. Sobre a mesa não havia nada. Ele acendeu mais um fósforo e
voltou a olhar sobre a mesa, fixamente. Inclinou-se sobre a mesa até tocá-la
com o nariz. Então, apontando com o dedo para um ponto da mesa, começou a
gritar com a sua voz de cabrito:
O que é isto? De quem é esta porcaria? Quem
colocou isto sobre a mesa?”
[17] “Gente fraca e, durante
o dia, covarde. Gente útil para os proprietários, mas com a condição de ter
imunidade na maldade contra os pobres. Gente sem escrúpulo [...] Gente sem
família, sem honra, sem fé, gente traiçoeira, pobres mas inimigos dos pobres”.
[18] “O Desconhecido, o Usual
Desconhecido, tinha sido capturado. Vários jornalistas e altos funcionários do
governo concordaram em unanimidade na sede da polícia onde estávamos presos que
o Desconhecido, o Usual Desconhecido, tinha sido capturado. E que ele era um cafone. A polícia tinha procurado o
Desconhecido na cidade, mas lá tem um único cidadão desconhecido? Cada cidadão
da cidade é identificado, catalogado, carimbado, conhecido. Mas e o cafone? Quem conhece o cafone? Nunca existiu um governo que
tenha conhecido o cafone? E quem será
capaz de identificar, catalogar, carimbar, supervisionar, conhecer todos os cafoni? Portanto, não há nada de
estranho que o Desconhecido, o Usual Desconhecido, seja um cafone”.
“Senhor sim.”
“Confirma que o defunto sempre manifestou
tendências suicidas?”
“Senhor sim.”
“Confirma que o defunto tem tido ultimamente
graves tristezas amorosas?”
“Senhor sim.”
“Confirma que o defunto estava detido na mesma
cela que você e aproveitou do fato de que você dormia para se enforcar numa das
grades?”
“Senhor sim.”
“Muito bem”, me disse à saída o comissário que
tinha assistido ao interrogatório, e me ofereceu um cigarro.
Depois eu fui conduzido ao palácio de justiça,
no escritório de um juiz. E seguiu-se a mesma cantilena.
“Você era amigo do defunto Berardo Viola?” me
perguntou o juiz.
“Senhor sim, senhor sim, senhor sim.”
Ele também me fez assinar o papel e me liberou.
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