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Em 10 de outubro, Andrea Zanzotto, um dos maiores poetas da segunda metade do século XX, completaria 100 anos. É justamente neste momento que chega a primeira tradução de sua poesia no Brasil, num volume intitulado Primeiras paisagens, organizado e traduzido por Patricia Peterle, que reúne os três primeiros livros do autor, e publicado pela 7Letras/Rafael Copetti Editor, com o apoio do Istituto Italiano di Cultura de São Paulo (IICSP) [https://7letras.com.br/livro/primeiras-paisagens/]. O lançamento do livro, promovido pelo IICSP, será no dia 4 de novembro e poderá ser seguido pelo canal do YouTube do Istituto [https://neclit.ufsc.br/?lang=it]. Além disso, como parte das comemorações, será realizado, nos dias 16 e 17 de novembro, o evento internacional, Mani, lingua e respiro: 100 anos de Zanzotto, organizado pela UFSC, USP e IIC-SP.
Segue abaixo uma parte do prefácio do livro, assinado por Andrea Cortellessa.
Um amor nunca aplacado
Do meu
corpo o manto de neve
removes,
pai, e o sol
és que
brusco me anima:
e em meus
dedos
compões
frutos e flores intensos
num
inverno macio que dói contudo
dói em
toda parte na colina?
Do teu fervido
pincel,
mas às
vezes mais álgido que espelhos
que céus
perdidos nos céus,
trabalham
de luzes
e musgos
os paraísos e os presépios
que a teu
redor já tens, que na
branca parede
a mim seduzes,
tu
modesto senhor
de Lorna
que criaste e que te cria,
tu artífice,
de mim,
de um nunca aplacado amor.
“As primeiras paisagens” é o título –
além desse livro – do poema trazido acima, pertencente a Vocativo.
A terceira coletânea poética, publicada por Andrea Zanzotto em 1957, conclui
aquela que, ao lado de Por trás da paisagem (1951) e Elegia e outros versos (1954),
podemos chamar de sua pré-trilogia;
pensando nos três formidáveis livros escritos no final dos anos 70 e publicados
entre 1978 e 1986, Il Galateo in Bosco [O Galateo no Bosque], Fosfeni [Fosfenos] e Idioma, definidos pelo próprio autor como
uma “pseudo-trilogia” (e quem sabe também pensando na conclusiva pós-trilogia formada por Meteo, 1996, Sovrimpressioni [Sobreimpressões],
2001, e Conglomerati [Conglomerados],
2009) [...].
Desde Por trás da paisagem, de fato, a língua poética de Zanzotto
é sutilmente maneirista, composta e preciosa; “alusiva”, enfim, no sentido que
dava a esse termo o grande filólogo Giorgio Pasquali para definir a densidade linguística
dos clássicos da poesia latina (como o Virgílio que foi tão importante para
Zanzotto, que o celebrará, em 1962, com suas IX Ecloghe [IX Éclogas]), cuja “palavra é como
água de rio que reúne em si os sabores da rocha da qual jorra e dos terrenos
pelos quais passou”. A “verdadeira e contemporânea poesia”, como a chamava
Leopardi numa célebre página do seu Zibaldone, é a que conserva em si,
mais ou menos exibida, a memória do mundo: coagulada, deveras como rocha,
na história linguística e na tradição literária. Conhecer, enfim, para a poesia
é sempre re-conhecer. E, assim, fazer-se reconhecer. Na tapeçaria preciosa e até́
preciosista do livro inicial, na sua compósita composição de matérias e substâncias,
brilham – indicadas pela crítica que desde muito cedo reconheceu, nessas “presenças”,
uma componente-chave dessa mesma poesia – uma infinidade de “pepitas” auríferas,
pirilampos que piscam irresistíveis no meio da selva.
Mas é preciso não cometer o erro de considerar o maneirismo de Zanzotto
um privilégio adquirido uma vez por todas, uma prerrogativa prestigiosa da qual
se gabar, enfim, uma renda de posição. A natureza variegada da sua linguagem é
vice-versa sempre “em movimento”, a fórmula do seu coquetel está sempre
sujeita a alterações: uma vez que sempre em Vocativo o célebre final (da primeira parte
do poema “Caso vocativo”) soa
“Eu falo nessa / língua que passará”. Desde muito cedo, com efeito, Zanzotto
é consciente da natureza relativa,
ou seja, historicamente perecível e peritura, da linguagem em geral e, em
particular, daquela poética. É justamente isso que o vacina a tempo contra a
postura retórica do Vate, do guardião sacral e absoluto da Chama da Poesia, que com
demasiada frequência antes e (também, incrivelmente) depois dele assumiram – e
continuam a assumir, de fato – retores mais ou menos conscientemente
mistificadores. Mais adiante (como no “Ipersonetto”
de Il Galateo in Bosco), para sublinhar a consciência da relatividade dessa linguagem, se insere um código
que na altura de Vocativo ainda
não havia entrado em seu armamentário: o da ironia. Na grande “fuga em dois
tempos” que coroa o livro de 1957, Fuisse, lê-se o seguinte inciso: “E
ah, ah somente, nos modos / obsoletos de humildes / virgílios, de pastores
castamente / murchados nos livros, na ciente / terrena poeira, / ah repito eu
derramado em 2000”. A poesia do infinitivo passado (corresponde exatamente ao
infinitivo passado do verbo “ser”, em latim, título do poema), como se vê̂,
prefigura o “2000” de um futuro mais que pretérito; no qual o poeta do presente
se antevê̂ morto e enterrado, “obsoleto” como os “pastores castamente /
murchados nos livros” do cânone clássico, aquele dos “humildes / virgílios”
que na coletânea seguinte, IX Egloghe, ele vai, de fato, como foi dito,
homenagear.
Mas desde cedo, como se dizia, a paisagem de Zanzotto se apresenta em
movimento. Uma paisagem, antes de tudo, verbal, ou seja, histórica e literária.
Giuseppe Ungaretti percebeu isso muito bem (no generoso escrito que acompanhou
o jovem poeta, em 1954, no fundamental congresso de San Pellegrino, em que
venerados mestres eram avalistas de novos principiantes). Ungaretti escreveu
nessa ocasião:
O que nos apresenta, em Por trás da paisagem, Andrea Zanzotto? O
segredo de um panorama, e ele o descobre todas as manhãs, e na hora meridiana,
e à tarde e de noite, o descobre a cada momento, o descobre a cada bater de
asas da estação, sempre espantoso como se tivesse a cada vez para nós um novo
rosto estrangeiro; e sempre igual, familiar, e dessa forma estava ali antes de
nosso nascimento, e dessa forma estará́ ali depois de nós, sempre o mesmo.
A inovação na invariância, o movimento na imobilidade, a transformação
incessante no coração do eterno: é essa, com efeito, a mais típica ambivalência
do maneirista. Nesse seu texto, Ungaretti citava uma longa e memorável carta
que lhe fora enviada pelo próprio Zanzotto:
Nasci em Pieve di Soligo, entre o rio Piave e Vittorio Veneto, tenho
trinta e dois anos e ensino italiano e latim no liceu clássico dessa cidade.
Acredito ter começado a rascunhar o que para mim pareciam versos desde os sete
ou oito anos. Antes dos quinze já havia “devorado” Pascoli e D’Annunzio,
depois, até os vinte, só́ tive olhos para os franceses, Campana, Ungaretti e
Montale. Me formei em Pádua, onde fui aluno de Valeri que me encorajou e me
ajudou. Depois veio a guerra e a resistência. Sofri o destino que foi de todos,
mas não pude entender nenhuma outra razão fora do “exíguo mito” (para usar uma expressão
de Sereni) circunscrito numa minha Arcádia (na ingens silva do Montello, nas margens do rio de
Gasparina e da Nassilide, antes do Piave e do Montello da Grande Guerra), o
mito de algumas luzidias evidências de aldeias e de sentimentos muito antigos e
obsessivos, de algumas entidades mentais e sensíveis em um tempo, para além das
quais eu não conseguirei nunca ver realmente nada.
Para além do precioso catálogo das “presenças” de Por trás da paisagem (ao qual devem
ser acrescentados pelos menos poetas surrealistas e pseudotais, como Éluard e
García Lorca, e clássicos alemães como Rilke e, sobretudo, Hölderlin), essas são
realmente palavras heráldicas, que, como se vê̂, associam indissoluvelmente a
mais preciosa tradição literária (e, aliás, a pluralidade de tradições
virtuosisticamente colecionadas pelo jovem poeta) ao mais traumático episódio histórico
(“o destino que foi de todos”: ou seja, a participação problemática, como “partigiano
não violento”, na atroz guerra civil que contrapôs a Resistência aos ocupantes fascistas e nazistas
que, depois do armistício com os Aliados, em 8 de setembro de 1943,
selvagemente martirizam o norte da Itália).
Zanzotto sempre foi ambas as coisas: o mais letrado dos poetas, mas também
aquele que traz, em seu corpo psíquico, os rastros mais indeléveis de uma história
nunca cicatrizada. A esse respeito, é ele mesmo quem irá ironizar, no non
plus ultra maneirista que
é o hipersoneto cravado no centro de sua coletânea mais turva e sanguinosa, Il
Galateo in Bosco, definindo justamente a forma-soneto, eixo “primeiro” da tradição
literária italiana, como “de massacres e belas maneiras”. As belas maneiras são tais “num segundo nível”,
reevocando nessa coletânea o Monsenhor Della Casa, refinado poeta do século
XVI, que naquela terra vêneta compôs Il Galateo – desde sempre e por antonomásia, na Itália e na Europa,
tratado de “bom comportamento” –; mas, na realidade, até “num terceiro nível”,
se é verdade que, enquanto poeta, Della Casa é um típico representante do
“petrarquismo”, que naquela época fetichizara, justamente, maneiristicamente,
as formas métricas e estróficas e o léxico codificados dois séculos antes por
Petrarca em seu Cancioneiro.
Mas, escreveu Valerio Magrelli – um poeta, entre os maiores hoje na Itália,
que sempre mais nos últimos anos olhou para a lição de Zanzotto –, é “come se il fregio sempre /
nascondesse lo sfregio”[1]
[como se o friso sempre / escondesse a cicatriz] (Nature e venature [Naturezas e nervuras]). O ornamento
mais aparentemente gratuito e exterior, a bela maneira e o friso,
corresponde na realidade a uma sutura; a mais elegante e florescente marca à
cicatriz mais brutal e lancinante, ao ultraje corporal da realidade que o friso antecede e motiva: ao massacre,
em suma. A obscuridade de Zanzotto – que a crítica tanto admirou num primeiro
momento e depois reprovou – não responde a uma vontade “exotérica” de subtração,
de aristocrática seleção (como nas poéticas “herméticas”, nas quais, contudo,
em seu início, ele não deixou de se inspirar), mas, ao contrário, a um
interdito de uma natureza traumática. Na mais vulnerante de suas coletâneas, La
Beltà, de 1968, iluminada atrozmente pelos fogos químicos de napalm no
horizonte do Vietnam, isso é dito por meio de um poema da série Profecias
ou memórias ou jornais ou murais que
começa com “A cancela étima, cancelar bloquear” (aludindo à natureza censória,
exorcista de uma linguagem que segundo Jacques Lacan, incapaz de expressá-la, cancela a imagem traumática até́
materialmente bloquear certas
palavras que a ela se referem: como o próprio Zanzotto tardio vai se induzir a
fazer, em certas ocasiões) e termina com as palavras dirigidas a Jesus pelo
endemoniado do Evangelho de Marco: “(O meu nome é lesão) / lesão”.
À lesão de uma história traumática – por Zanzotto colocada a nu somente
em 1964, na grande prosa autobiográfica Premesse all’abitazione [Premissas do habitar] que conta a incursão
nazifascista de agosto de 1944, com a amadíssima Heimat posta a ferro e fogo – se refere, além
das aparências frias e cauterizadas, também a imagery desabitada e “metafisica” de Por
trás da paisagem. Zanzotto contará em seguida:
Em meus
primeiros livros, eu tinha até cancelado a presença humana, por uma forma de “incomodo”
causado pelos eventos históricos; queria somente falar de paisagens, retornar a
uma natureza em que o homem não tivesse operado. Era um reflexo psicológico das
devastações da guerra. Não teria podido mais olhar para as colinas que me eram
familiares como algo de belo e doce, sabendo que nelas muito garotos inocentes
tinham sido massacrados.
Além de poucos textos, que “necessariamente” mencionam a tragédia da
guerra (em Elegia e outros versos, o poema “Mártir, primavera” comemora Antonio “Toni” Adami, o “pequeno
mestre” que indicou a Zanzotto a doutrina da Resistência “não violenta” contra
o fascismo, mas que do fascismo acabou sendo vítima; em Vocativo, ao
tremendo fogo de 1944 faz alusão o “rompe a delicada / noite Hitler, de fósforo”
do poema em lembrança dos “Companheiros
que correram na frente”, ou seja, dos partigiani que “foram, morrendo, ‘até́-o-pequeno-do-vi-ver’”
e que daquele cume moral olhando para quem, sobrevivente, ao contrário, se
sente em culpa por se ter agachado no chão, escondido “por trás da paisagem”),
o primeiro Zanzotto evoca, então, o trauma histórico com um Argumentum e silentio (este é o título de um texto do “irmão”
Paul Celan, dedicado à poesia, muito obscura, do partigiano René Char), com a chamada, em
termos retóricos, preterição.
Inclusive no “cerrado” da guerra (para retomar as palavras de um escritor partigiano,
admirado por Zanzotto, Beppe Fenoglio), na primavera de 1945, ele escreveu –
decidindo, porém, em seguida censurá-la, por ser “pouco compreensível” – um
poema em lembrança aos “companheiros que correram na frente”, aqueles fuzilados
na aldeia pelos fascistas: “Hoje a neve no branco do colo / tem um fio de
sangue / que vem das veias de dez mortos...” (a poesia “Neve rossa” [Neve vermelha] foi publicada, de fato, em 1946, no aniversário
da Liberação, mas Zanzotto a excluiu de suas coletâneas. Agora ela foi
recuperada por Carbognin no citado volume dos “poemas dispersos”, Erratici).
Mesmo depois, em sua poesia, a neve será́ um manto cauterizante, um manto protetor que afasta o
sujeito das percepções mais lacerantes como, em primeiro lugar, a da história.
Isso fica claro num dos poemas da primeira coletânea, o que traz o título de “Agora já́”, que se conclui com o
seguinte dístico muito citado: “Aqui não resta senão se cingir à paisagem /
aqui dar as costas”. Com perspicácia Matteo Giancotti reconheceu nessa fórmula
o eco de um ensaio de Rilke, Da paisagem, que não é certo que Zanzotto já́
tivesse lido nessa época. Mas a consonância é, em todo caso, eloquente; na conexão
do poeta das Elegias duinenses, a natureza – ao invés de abraçar
maternalmente o homem que nela se funde exaltado, como na tradição romântica –
se apresenta indiferente, se não hostil (muito próxima, para um ouvido
italiano, àquela de Leopardi; não casualmente Rilke traduziu em 1912 “O infinito”). Mas é justamente essa
sua condição de alheia seu
maior fascínio, sua majestade mais solene; então, é possível “cingir-se dela”,
escreve Rilke, “como de uma coroa”. Da mesma forma, a paisagem de “Agora já́” – transfigurada pela dicção
“metafisica” do primeiro Zanzotto em “verde acuem”, “loggias vibradas”, “sol /
tranquilo verme de espinhentos bosques” – se apresenta luzente de uma “evidência
fantástica” (dirá́ o poeta muito tempo depois), e exatamente graças a isso é possível
se defender das chamas do tempo: simplesmente “dando” a elas “as costas”.
Mas prosseguindo em seu percurso, Zanzotto deverá assumir que os
choques da história – como o fio de
sangue que mancha o branco,
no poema já́ citado e autocensurado em 1945 – são capazes de “espetar” aquela proteção
(o “escudo psíquico” do qual fala Freud em Além do princípio de prazer),
e, às vezes, de atravessá-la de lado a lado. Esta será́ a história do Zanzotto
dos anos 60 e 70: aquele mais exposto aos ventos da história e às modificações
violentas que estes provocaram em sua linguagem poética (leia-se o tormentoso
poema que em Idioma traz
o título “Rumo ao 25 de abril”, comemorando a data-símbolo de uma Liberação do
fascismo que na realidade, homenageada somente por mal-entendida retórica, tudo
faz menos nos aproximar realmente do sentido profundo daqueles agora já́ remotos
“massacres” daqueles obscenos “sacrifícios humanos”).
Nas “Primeiras paisagens”,
poema de Vocativo com o
qual iniciamos, estamos, contudo, ainda distantes desses abismos infernais e babélicos.
Aqui o “manto de neve” que amanta o sujeito aparece “inconsútil” (como a poesia-manifesto vai dizer na Beltà, Oltranza
oltraggio [Ser ultra
ultraje], evocando a milagrosa veste de Cristo, perfeitamente intacta e sem
costuras): tal que, do “corpo” do sujeito, ele só́ pode ser removido por aquele
que foi seu “artífice”. O “modesto senhor de Lorna” (desde Por trás da
paisagem, Lorna é o nome de fantasia, o evocativo senhal, com o
qual Zanzotto designa um dos lugares mais sagrados da Heimat, a
localidade de Arfanta, não distante da natal Pieve di Soligo) é o pai do
poeta, que com seu “férvido pincel” “compôs frutos e flores”, assim “espelhando [...] céus perdidos nos céus”.
Bom pintor de paisagens e caligrafo miniaturista, veterano da Grande Guerra e assíduo
opositor ao fascismo, Giovanni Zanzotto, durante as duas décadas fascistas,
viu-se obrigado a emigrar e, digamos também, ao exílio, para ganhar o pão para
si e para sua família (retornará no pós-guerra, primeiro prefeito socialista
de sua aldeia). Antes de partir, porém, conseguiu decorar, com seu férvido
pincel, a casa herdada em Cal Santa, em Pieve. Não faltam, na sua produção,
homenagens à grande tradição pictórica (os numes tutelares de Leonardo,
Raffaello, Michelangelo e Tiziano) nem as figurações sagradas, mas Giovanni
Zanzotto reserva para aquela que marca o destino psíquico de seu filho uma sala
do primeiro andar, cujas quatro paredes são revestidas por um afresco, uma
faixa contínua, que repete dentro as imagens de paisagens “que tudo ao redor já́
tem”, isto é, os “musgos” “paraísos” “presépios” que se encontram do lado de
Fora da Casa: num espelho alucinatório que deveras reproduz céus perdidos
nos céus. Isto é, os céus reais
e perdidos, mas por magia de artífice replicados naqueles fictícios
pintados: naquele Céu em um Quarto que é a substância psíquica chamada Casa.
A questão, nesse Exilio caseiro, está, todavia, num detalhe. Num canto
da faixa paradisíaca pintada
para ele pelo Pai, de fato, está também representado o destinatário, o Filho:
um pouco como, na tradição pictórica, à qual Giovanni Zanzotto fazia referência,
encontravam espaço os abastados comitentes no interior dos luxuosos retábulos
pintados pelos Antigos Mestres do Renascimento. É da seguinte forma que Andrea
se lembra desse detalhe, entrevistado por Marco Paolini no belo documentário, Ritratti [Retratos], realizado por Carlo
Mazzacurati, em 2000:
Zanzotto: [...] ele tinha criado, nos quatro lados da sala
ao longo do teto, uma espécie de faixa paradisíaca, em que se viam ‘coabitar’
perdizes, pássaros, garças, fruteiras repletas e árvores em diferentes estações,
de maturação e de floração...
Paolini: E Andrea.
Zanzotto: Sim, em um determinado ponto, eu estava lá́; mas
num uniforme de pequeno príncipe.
Paolini: Descreva para mim um pouco, porque eu não sei
como é esse uniforme de pequeno príncipe.
Zanzotto: O que um pequeno príncipe tem de ter? Uma gola
bordada, por exemplo, e um casaco bem peculiar.
Paolini: Você̂ já́ teve aquele casaquinho?
Zanzotto: Não.
Paolini: Ah, tá.
Zanzotto: Nem golinhas, nem outras coisas. Só́ ali, na
pintura. [...] Como se eu tivesse encontrado comigo mesmo numa espécie de reino
todo meu, dentro do qual eu estava meio embalsamado. E esse meu reino, num
certo momento da minha vida, por vários motivos, se tornou uma espécie de deficiência.
A própria paisagem se tornou uma deficiência da qual, ainda hoje, mal consigo
me livrar.
Como citar: CORTELESSA, Andrea. " Centenário de Nascimento de Andrea Zanzotto". In "Revista de literatura Italiana", v. 2, n. 10, out. 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/229423
[1] Há um trocadilho no verso de
Magrelli com as palavras “fregio” e “sfregio” que não se reproduziu para não se
perder a aproximação entre “friso” e “cicatriz” [N. do T.].
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