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Épocas, cosmogonias, perfeições precárias: os deslizamentos da obra de Fabio Pusterla em Argéman: antologia poética
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Entrevista
Julia Bellei
Prisca Agustoni
em
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Prisca Agustoni. Fotografia de Lara Toledo. |
Penso que um bom tradutor é
aquele que sabe ouvir: o outro, o silêncio, a própria voz.
Entrevista concedida a Júlia
Bellei em 22 de outubro de 2021
Em um diálogo
marcadamente sutil e perspicaz com a obra de Fabio Pusterla (Mendrisio – Suíça,
1957), a professora, tradutora e poeta suíça Prisca Agustoni (Lugano – Suíça,
1975) organiza a primeira antologia brasileira dedicada ao trabalho do autor: Argéman:
antologia poética (2018, Edições Macondo). Evidenciando uma atmosfera
esteticamente atravessada por fragmentos da natureza, a coletânea ressoa uma
dimensão ética e política, que sugere não apenas um olhar inquieto perante os
elementos que nos circundam, mas também perante a complexidade das camadas que os
engendram desde as eras mais remotas. Pedras, cadáveres, troncos, cartilagens;
detritos acumulados, que remontam épocas longínquas: tudo se encadeia em
palavras silenciosas, advindas de vozes que, despretensiosamente, restam como
sopros de uma ausência, como rastros que perseveram.
Em meio a um contínuo
movimento arqueológico de busca pela substância lexical e pelos feixes de
sentido ainda por vir, as composições contempladas salientam uma intensa
disponibilidade à vida, em suas infinitas formas e suspensões. Dessa maneira,
Pusterla verte o ritmo interno de sua poesia para além das fronteiras
helvéticas, intervindo na paisagem literária de seu tempo e atribuindo à sua
escritura uma tonalidade universal, já que congrega seres orgânicos e
inorgânicos, vestígios urbanos e selvagens e, até mesmo, as “perfeições
precárias”[1] típicas de toda matéria
que resiste, de todo corpo que se permite manifestar, não obstante a exiguidade
que o constitui.
Denotando análoga
sensibilidade e comum receptividade às diversas nuances mundanas, Agustoni
também compartilha com o escritor mendrisiense uma experiência existencial
assinalada pelo contato com diferentes realidades linguísticas e
socioculturais. Nesse sentido, estabelece com a prática tradutória uma relação
particularmente intrigante, sobre a qual versa ao responder a uma série de
perguntas vinculadas à elaboração de Argéman. Aludindo ao feitio crítico e enigmático que perpassa os
poemas traduzidos, revela aguçada delicadeza de perspectiva mediante os
variados cenários escavados e projetados na tessitura textual. Ademais,
discorre acerca de sua vivência com a palavra, vivência essa que, revolvendo os
domínios do simbólico, configura um espaço de acolhimento: de si, do outro e
das lacunas que, aparentemente, os distanciam. A seguir, a entrevista
direcionada à poeta.
Quais fatores motivaram sua escolha pela tradução das obras
de Pusterla? Que características do autor mais chamam a sua atenção?
Nasci e cresci na região da Suíça
italiana, um pequeno cantão de aprox.450 mil habitantes que falam italiano,
situado na fronteira entre, ao norte, os Alpes (e a língua alemã) e, ao sul, a
Itália (Milão fica a quarenta minutos de carro da casa onde mora minha
família). Pusterla é, sem dúvida, o poeta mais importante e influente para a
minha geração de poetas: quando eu e meus colegas de “geração” começamos a
escrever, lá pelo final dos anos noventa, começo dos anos dois mil, estávamos
lendo as obras de Pusterla (Bocksten, Folla sommersa etc.). A
relevância de sua trajetória estava se destacando sempre mais fora do perímetro
da nossa região e também fora da chamada “linea lombarda”, na poesia
italiana. Cada vez mais críticos e leitores italianos reconheciam, em sua obra,
uma voz singular, em diálogo com a tradição da linha lombarda, mas também com
traços singulares emergentes. Paralelamente a isso, ao norte, para além das
fronteiras dos Alpes, na Suíça de língua alemã ou francesa, traduzia-se cada
vez mais sua poesia, reconhecendo-a como uma das mais importantes do país,
atribuindo-lhe prêmios importantes. E Pusterla começou a se destacar também
como atento tradutor de poesia francesa, especialmente do poeta Jaccottet,
recém-falecido.
No entanto,
é preciso dizer que o fator que mais aproximou Pusterla dos leitores da minha
geração na nossa região foi o fato de ele ser professor de ensino médio, um
excelente professor de literatura, disponível e presente para sentar no bar e
conversar ou sempre presente nas manifestações e nos festivais literários da
região.
O poeta, o
professor, o tradutor, o intelectual e a pessoa comum. A junção dessas figuras
numa única pessoa fez e faz de Fabio Pusterla um nome incontornável na Suíça
hoje, assim como na vizinha Itália.
Quanto à
sua obra, acho que seria difícil resumir aqui as características que me parecem
mais importantes. Acho que, em linhas gerais, Pusterla mantém certa tendência ao
antilirismo do sujeito, caro à linha lombarda, aliado a um olhar sempre muito
tensionado sobre a sociedade contemporânea e a história às vezes insignificante
das pessoas comuns.
A obra Argéman: antologia
poética apresenta poemas passíveis de serem encontrados em dois livros de
Pusterla: Argéman e Corpo Stellare. Embora este seja,
cronologicamente, anterior àquele, sua inserção na antologia brasileira se deu posteriormente
à inserção do primeiro. Que critério suscitou tal opção sequencial? Além disso,
que parâmetro direcionou a seleção textual e a associação entre as obras
mencionadas?
Sempre tive
o desejo de traduzir a poesia do Pusterla, assim como a de outros poetas suíços
e italianos. Colaborei com diferentes revistas literárias, propondo traduções,
e já publiquei alguns poemas do seu livro Bocksten,
na revista Ouroboro, de Curitiba, em 2005.
A ocasião
para concretizar esse meu desejo foi o convite que ele recebeu para participar
da FLIP de Paraty, em 2018, um convite que é fruto de um intenso diálogo que
mantive na época com a curadora, Josélia Aguiar, que queria a presença de um
autor suíço, e para a qual sugeri o nome do Pusterla. Após a efetivação do convite
e do seu aceite, fez-se quase natural propiciar em tempos breves uma amostra de
sua obra. De comum acordo entre a curadora, Josélia Aguiar, pensamos que, para
essa primeira abordagem do universo poético do Pusterla, seria interessante
apresentar algo relativo ao seu diálogo com a natureza, um dos temas a ele
muito caros.
Decidi,
então, escolher poemas daqueles que até então eram os dois últimos livros,
propondo-os de forma contrária à linearidade temporal, respeitando, portanto,
algo que nele está muito forte, que é o movimento temporal às avessas, na
escavação do passado, nas erosões de civilizações antigas.
Quanto aos
poemas selecionados, a escolha se fez em função do tema, da melhor ressonância
na língua portuguesa (lembrando que numa breve amostra, tende-se a privilegiar
os poemas cuja resolução tradutória é melhor), e de comum acordo com o próprio
Pusterla.
A natureza assume grande
relevo nas obras de Pusterla. Em sua experiência como tradutora do autor, elementos
da fauna e da flora desencadearam dificuldades de correspondência imagética?
Outros aspectos acarretaram desafios no processo intercomunicativo estabelecido
entre as culturas de partida e de chegada?
Você tem
toda razão em perguntar isso. Geralmente, elementos da flora ou da fauna
apresentam grandes desafios para os tradutores! Nesse caso, no entanto, não foi
particularmente difícil. Acho que isso se deve, em parte, ao fato de que
Pusterla se serve da natureza como uma metáfora de algo que emerge, por debaixo
dela, e cuja manifestação representa apenas a ponta do iceberg. Então, acho que
é mais difícil e importante, em sua poesia, entender o que está escondido por
debaixo da natureza, para depois realizar uma tradução mais afinada com esse
clima existencial. As dificuldades maiores foram de outra ordem: como disse
antes, Pusterla tem uma dicção poética afinada com as características e
ambiências da poesia lombarda, que não tem correspondentes diretos na tradição
brasileira do mesmo período. Enquanto, no Brasil, a poesia dos anos oitenta
saía, por um lado, da poesia marginal e, por outro, se desvencilhava aos poucos
da herança neoconcreta, na Itália, os debates eram outros, e o “eu lírico”
viveu um redimensionamento bem mais marcante do que no Brasil, tendendo a um
apagamento ou, pelo menos, a um redimensionamento rumo a uma certa “humildade”
diante da realidade. Isso traz como consequência o fato de que, às vezes, a
poesia do Pusterla – como a de outros italianos – possa soar estranha ou
impessoal aos ouvidos brasileiros. Então, tomei cuidado para escolher os poemas
que, a meu ver, poderiam ser melhor apreciados por aqui.
No poema “Argéman”, o léxico
enigmático evocado pela “língua de neve” implicou escolhas tradutórias
peculiares? Por que o título do poema se reverbera no título da antologia, isto
é, que relação poderia ser identificada entre o texto citado e o livro como um
todo?
Gosto
imensamente desse poema e desse título. Soa algo antigo, algo misterioso, soa
algo que precisamos decifrar, uma sabedoria partilhada só por alguns. E, para o
imaginário brasileiro, a neve tem um pouco esse elemento de fascinação e
estranheza.
Quis manter
esse título para a antologia justamente porque me pareceu perfeito para
ilustrar tanto esse fascínio – que eu espero que o leitor brasileiro perceba ao
entrar em seu universo poético – quanto certa modalidade de composição da
poesia de Pusterla, justamente no que ela tem de “revelado” e de “escondido”,
nos objetos da natureza que ele menciona e descreve e no momento subterrâneo
que dela emerge, lentamente.
Tal qual Pusterla, você
também é tradutora, poeta, professora e suíça, tendo como origem, portanto, um
lugar marcado pelo plurilinguismo. De que maneira essa fragmentação identitária
e um contínuo transitar entre línguas poderia contribuir para sua prática
tradutória?
Sem dúvida,
esse elemento plurilíngue é crucial na minha formação como pessoa e como poeta,
e, agora, como tradutora. O fato de ter nos ouvidos e na boca sons de várias
línguas ao mesmo tempo contribui para uma natural predisposição à constante
negociação entre as línguas. Desligar uma língua para ligar outra, ou ligar
duas ao mesmo tempo, é algo totalmente natural para mim, como para muitos no
meu país, imagino. Essa consciência de uma falha – há algo que não conseguimos
dizer ou traduzir perfeitamente, em nenhuma língua, inclusive porque a poesia
representa uma “língua singular” – a consciência dessas muitas maneiras diferentes
para expressarmos algo é importante para um tradutor, que nunca pode dar nada
por óbvio. É preciso sempre recuar e observar, de longe, perscrutar, analisar o
feito. Para refazer, se necessário. Acho que é preciso saber ouvir, acima de
tudo. Penso que um bom tradutor é aquele que sabe ouvir: o outro, o silêncio, a
própria voz.
Pusterla, em sua obra Quando
Chiasso era in Irlanda, alude a três elementos que estariam, como sombras,
na retaguarda daqueles que se dedicam à tradução: a paciência, o desespero e o
amor. Você concorda com o posicionamento do escritor? De que forma esses
elementos se inter-relacionam em seu trabalho como tradutora?
Interessante
essa frase do Pusterla. Concordo. Talvez trocaria o desespero pelo desejo. E
acrescentaria a escuta. Acho que a paciência é crucial: me parece que o
tradutor é como alguém que vai tricotando algo, dia após dia, pacientemente, e
cujo resultado final ele poderá ver e apreciar somente a trabalho concluído. O
desejo é um dos motores vitais mais importantes, penso. Para quase tudo o que de
importante a gente faz. Mas, na noção do desejo, tem essa falha, esse algo a
ser realizado, a ser possuído – de onde o desespero, talvez, ao qual se refere
Fabio. Desespero-desejo de ir ao encontro do outro, dos muitos outros, sabendo
que somos tão infinitamente pequenos e finitos. E o amor, sim, gosto disso,
como gesto supremo de entrega ao outro. Dar voz ao outro, prestar sua voz ao
outro, ao que está em outra margem da cultura, ou aquele que já não está mais
aqui. E fazer isso com uma generosidade que é inscrita nos gestos de amor. A
escuta me parece dialogar com essa noção do amor, mas também declinada para
dentro de si: escutar como ecoa em você (na sua própria língua) a língua do
outro, como um ato de amor, uma gestação, um ato amoroso entre dois amantes.
De acordo com sua
perspectiva, em que patamar se encontra a visibilidade da literatura e, mais
especificamente, da poesia em língua italiana no Brasil?
Se, nas
universidades brasileiras, sempre houve uma certa presença (e a defesa dessa
presença) da literatura italiana como uma das mais ricas e importantes
tradições literárias, inclusive em diálogo com a brasileira, me parece que
estamos vivendo agora um momento de forte aumento no interesse pela literatura
italiana fora das universidades. Acho que o mercado se interessa mais por
literatura italiana em geral, fomentado por nomes como Elena Ferrante, Igiaba
Scego etc. ou pelos clássicos do Novecento, como Calvino, Ginzburg,
Pavese. Vejo um interesse mais vivo também pela poesia contemporânea,
principalmente, graças ao movimento heroico das revistas on-line, dos blogs e
das editoras independentes de poesia, que, no Brasil, estão realmente fazendo
um trabalho fenomenal. É um bom momento, me parece. Há muito que se fazer, e,
agora, parece existir um ouvido atento. As recentes publicações de traduções de
Eugenio de Signoribus, realizada pela professora doutora Patricia Peterle, e de
Patrizia Cavalli, por Cláudia Alves, sinalizam essa tendência a uma chegada de
mais vozes, tanto de “clássicos” do Novecento italiano quanto de poetas
contemporâneos.
REFERÊNCIAS:
PUSTERLA,
Fabio. Argéman: antologia poética. Trad. Prisca Agustoni (org.). Juiz de
Fora: Edições Macondo, 2018.
PUSTERLA,
Fabio. Quando Chiasso era in Irlanda. Bellinzona: Edizioni Casagrande
s.a., 2012.
WOLF,
Caspar. Der Lauteraargletscher. 1776.
Kunstmuseum Basel, Basel. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Caspar_Wolf_-_Lauteraar.jpg#cite_note-1. Acesso em: 22
out. 2021.
____________________________
Como citar: BELLEI, Julia. " Épocas, cosmogonias, perfeições precárias: os deslizamentos da obra de Fabio Pusterla em Argéman: antologia poética". In "Revista de Literatura Italiana", v. 2, n. 11, nov. 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/230108
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