La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Itinerários poéticos: Percursos pela poesia italiana e brasileira (parte 1), por Elena Santi

 

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O percurso aqui proposto, e que se dividirá em duas etapas, tem como ponto de partida algumas considerações sobre o gesto do caminhar e, de forma geral, de percorrer o espaço, físico e literário, e propõe uma leitura em conjunto de experiências poéticas italianas e brasileiras que, de alguma maneira, apresentam uma relação forte com o eixo central da reflexão.
O caminhar, nessa perspectiva, não é um simples desloca-se no espaço, mas é um contato físico e material, que institui uma relação de troca entre o transeunte e o solo. Os passos, com sua cadência, seu estilo de “apropriação cinésica” (CERTEAU, 2003, p. 176), constituem o lugar, o esculpem: “os jogos dos passos moldam espaços. Tecem os lugares” (CERTEAU, 2003, p. 176). As pegadas, então, não se configuram como uma unidade de medida quantitativa, objetiva e definível, mas, pelo contrário, qualitativa, como uma maneira de interação com o espaço, que, por sua vez, por elas é desenhado. O conjunto dos passos percorridos delimita itinerários, escreve o chão, como uma caneta escreve em uma folha e essa trilha de rastros envolve, também, o esquecimento, pois “visível, tem como efeito tornar invisível a operação que a tornou possível” (CERTEAU, 2003, p. 176).
Da mesma maneira, na perspectiva do arquiteto Francesco Careri[1], caminhar se configura como um ato estético. Significa ler e escrever o espaço ao mesmo tempo, transitar com o próprio corpo em um lugar que, enquanto é marcado pela nossa passagem, contemporaneamente nos marca, nos transforma e nos contamina, deixando rastros no corpo de quem se desloca. Caminhar, então, significa abrir-se – para as sugestões, para os agentes externos – e, ao mesmo tempo, abrir caminhos, explorar possibilidades, renunciar à manipulação da paisagem para se fundir com ela. Tornam-se fundamentais as analogias entre caminhar e enunciar. Contudo, a relação não tem a ver somente com a materialidade dessas práticas, mas, e principalmente, com algumas caraterísticas que poderiam ser definidas de fundo, como “o presente, o descontínuo, o fático” (CERTEAU, 2003, p. 177).
Em outras palavras, a analogia com a linguagem não se dá somente por meio da metáfora do indivíduo que caminha como um pincel, que traça signos indeléveis na página em branco, mas, mais ainda, de maneira estrutural. Como colocado por De Certeau, o caminhar é irregular, pode ser feito de trajetórias repetitivas e em espiral, idas e vindas, momentos de êxtase, saltos, acelerações e desacelerações. Além disso, permite o mantenimento de um canal de comunicação, a possibilidade da abertura para um lugar de encontro e de troca. Pode significar criar uma narração do espaço, contá-lo por meio do próprio itinerário:
 
A caminhada afirma, lança suspeita, arrisca, transgride, respeita etc., as trajetórias que “fala”. Todas as modalidades entram aí em jogo, mudando a cada passo, e repartidas em proporções, em sucessões, e com intensidades que variam conforme os momentos, os percursos, os caminhantes. (CERTEAU, 2003, p. 179)
 
É por isso que não é possível reduzir o caminhar a um traço sobre um mapa geográfico, já que, dessa forma, não se poderia devolver a complexidade de um gesto tão plural e articulado.
Por meio dessa analogia podemos pensar a palavra poética, que é plural e com muitas facetas, por sua vez, feita de idas e vindas, de vazios e de cheios, que livremente se compõem, nunca de forma definitiva, mas mantendo-se em uma relação capaz de mudar, visto que o significado da poesia permanece algo em devir, nunca já dado, mas sempre além, nos empurrando para uma peregrinação perpétua. Palavra poética como conjunto desses passos que sulcam um território. A poesia como espaço desse caminhar, tecido de palavras que se entrecruzam, conjunto de itinerários, possíveis e imaginados, desconhecidos e já percorridos. Palavra, poeta, poesia: articulação de identidade que se intersectam. Não somente o poeta transita, mas a poesia em si percorre essas trilhas, abre caminhos, procurando espaços de hibridação, novas possibilidades, pontos de contato outros. Se, por sua definição, o caminho não é linear, frequentemente essas trilhas poéticas podem se revelar particularmente íngremes e complexas.
Ao longo do século XX, se pensarmos os contatos entre literatura brasileira e italiana, vários são os caminhos que se entrelaçaram, percorreram estradas por vezes paralelas, algumas destinadas a se chocar bruscamente, outras aparentemente coincidentes. Resulta difícil isolar as correntes ou as posições individuais, como difícil é separar os fios de uma trama bem tecida, complexa, que, na sua totalidade, oferece ao leitor e ao estudioso uma imagem rica e diversificada, que na sua complexidade revela sua íntima beleza. É possível, contudo, tentar seguir as pegadas de alguns poetas, por meio de suas obras, mergulhar em sua atmosfera, retomando o ritmo do passo que nelas está contido. O que anima essas páginas é uma vontade de peregrinar pelos textos, de se deixar conduzir em caminhos que foram abertos poeticamente, para depois poder neles se perder, devanear, se reencontrar.
Esse caminhar estético, que é tanto do poeta quanto da poesia, se configura como uma espécie de arquivo da experiência poética, junto aos signos, que interagem e se compenetram, conjunto de vivências que constituem a narração daquilo que foi, aglomerado de vozes, que interagem e dialogam. Por sua definição, esse arquivo é lacunoso, fragmentário: não pode anelar à completude. Arquivo de resíduos[2], de marcas deixadas no espaço, pegadas de memórias e vivências, que mantém consigo a dimensão do esquecimento, mostra sua parcialidade, seu ser fragmento de algo que se dissolveu. E é justamente dessas fendas lacunosas que algo emana. No nosso caminhar, um itinerário formado por fragmentos poéticos heterogêneos, os silêncios compartilham o mesmo espaço das palavras, criando um emaranhado entre presente e ausente, tradições que se compenetram e se tocam, experiências humanas e pessoais que se entrecruzam em alguns momentos específicos.
Para abrir essa reflexão, se propõe uma espécie de mosaico inacabado do caminhar, composto por inúmeras tesselas que, como um ímã, atraem outras, mesmo que pareçam muito distantes entre si. Esse mosaico, visto de longe, forma uma espécie de cartografia – mesmo que incompleta – e oferece a possibilidade de um percurso, de um caminhar que se torna possível somente no dar-se e expor-se, no momento em que junta os passos e as vozes de poetas aparentemente distantes, mas cujos versos podem ser lidos a partir desse olhar transversal.
O poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), nesse sentido, representa um ponto de partida importante do nosso percurso, a partir justamente dos seus versos: “No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra” (DRUMMOND, 1987, p. 6).  Nos seus versos, secos e sem ornamentos, que retomam de maneira explícita o ‘cammin di nostra vita’ dantesco, Drummond mostra o obstáculo, a impossibilidade de um fluir livre e sereno, a necessidade do confronto com a pedra, que se encontra no meio do caminho e não pode ser desviada. A repetição anafórica, juntamente à secura dos versos, contribui para conferir certa materialidade à palavra, que se faz pedra, material sólido a ser moldado, plasmado. Não por acaso o poema continua dessa forma: “Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra” (DRUMMOND, 1987, p. 6). A operação de Drummond, como colocado, parte de maneira explícita do incipit da Divina Commedia. O poeta brasileiro bebe da fonte de Dante, criando um percurso poético que o leva a atravessar séculos de tradição, colocando-o diretamente em contato não somente com o poeta de Florença, mas também com outros, que fizeram da releitura de Dante sua própria marca. Podemos pensar em Eugenio Montale (1896-1981) e, de forma geral, na operação do redescobrimento de Dante que se dá no século XX, ao repensar uma poesia que, no momento da sistematização do cânone poético italiano, no século XVI, era percebida como demasiado polifônica e contaminada. Podemos pensar também em Ezra Pound e T.S. Eliot, que em Dante encontraram sua inspiração, uma palavra ainda viva e pulsante, capaz de transcender as fronteiras do seu tempo. Completa esse círculo, finalmente, a tradução que Antonio Tabucchi faz de alguns poemas de Drummond para o italiano. O gesto de Tabucchi, de traduzir, parece acrescentar outro segmento à espiral dessa palavra poética que atravessa os séculos e as tradições, os espaços, para se transformar, adquirir novas roupagens e formas.
Drummond, então, recorre a Dante para falar do seu encontro com a pedra; o acontecimento que resulta do seu encontrar-se no meio do caminho, e modificar seu percurso, se torna o nó central do fazer poético. A inevitabilidade da lembrança, expressada nos versos centrais, emoldurados por uma estrutura que retoma os versos iniciais invertidos, conferindo plasticidade ao texto, se torna o foco do poema. A matéria, com sua dureza, se transforma em material poético, plasmável, tangível, no seu ser plasticamente transfigurado. O acontecimento é essencial, e coloca em comunicação momentos que dialogam por meio da pedra, do seu encontrar-se no meio do caminho. A busca poética se faz caminho, percurso que na poesia se desenvolve e se desvenda, por meio da materialidade do ato de caminhar, que cria o contato do corpo com a matéria e o espaço, trazendo novos estímulos e sugestões para a poesia.
Para Drummond, é a pedra, o seu estar no meio do caminho, o fazer-se divisor de águas de uma poesia que muda, que não é mais a mesma. Escreve ainda:
 
Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
[...]
esta viagem é mortal, e começá-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras
secretas, duras. Eis aí meu canto.
(DRUMMOND, 2000, p. 9-10)
 
Nesses versos, que parecem complementar os citados anteriormente, Drummond, com maior clareza, fala do seu trabalho poético que, mais uma vez, se liga à matéria e à viagem, ao peregrinar na dureza das coisas. A pedra, nesses versos, é a exposição de uma inquietude que, manifestando-se, pode proporcionar o começo da viagem poética por meio das diversas formas que compõem a realidade, percorrida e percebida por meio da poesia. O caminho não é uma forma exterior, mas um percurso interno à própria poesia, que toma como ponto de partida a pedra ou a sua ausência, denunciada pelo rastro deixado, encurtando as distâncias, ou melhor, anulando-as. Como diz Antonio Candido, Drummond parece “abordar o ser e o mundo em estado pré-poético de material bruto” (CANDIDO apud FORNONI, 2015, p. 105). Uma matéria bruta, que transporta na página poética toda uma série de inquietações que se manifestam no meio do caminho, mas sem representá-las, sem lhes dar forma. O mineral[3] no seu estado natural, quase pré-histórico, precedente a qualquer refinamento, em sua extrema materialidade, se faz evanescente, não representado, mas, sim, estando presente. Esse material bruto que permeia a poesia drummondiana, pode encontrar um interlocutor em Eugenio Montale, como nos adverte Aurora Fornoni Bernardini no seu texto “Montale e Drummond: possíveis projeções” (2015). As figuras de Drummond e Montale podem ser colocadas em diálogo, interlocutores que se encontram, entre outras coisas, justamente nesse campo mineral, em que as aglomerações orgânicas levam, no interno do texto poético, uma relação de conflito com a realidade.
Frente à consternação do abismo, os objetos se fazem, mais uma vez, fonte da poesia, em seu cotidiano, na sua tangível materialidade. Diferente, mas talvez complementar, de certo ponto de vista, é, então, a epifania montaliana de Ossos de sépia, de um texto como “Talvez uma manhã andando num ar de vidro”, que nos transmite a imagem de um poeta que olha para trás, para as duas primeiras décadas do século XX. O gesto, subversivo e corajoso, se configura como uma maneira de olhar para dentro do abismo, do vazio que envolve a existência. O caminhar do poeta, nesse caso, se transforma em um meio de revelação, um momento poético que, por um instante, tira os véus que escondem a vacuidade que rodeia o todo. Por meio das imagens sensoriais do texto (“Talvez uma manhã andando num ar de vidro / árido, voltando-me, verei cumprir-se o milagre / o nada às minhas costas, o vazio atrás / de mim, com um terror de embriagado.[4] (MONTALE, 2002, p. 91)) é plasmada uma poesia fortemente tátil e sinestésica, em que se cria um contraste entre a matericidade cortante de alguns elementos, como o ar árido e de vidro, e a aliteração do “l” no terceiro verso (no italiano) revelando uma atmosfera evanescente, mas que fere, corta e racha os véus que cobrem a realidade. Novamente, essa revelação se dá por meio do caminhar, expressado por meio do verbo “andando”, no começo do poema, perfeitamente no centro do primeiro verso, por meio de um hipérbato que o coloca em posição chave. E se a epifania é momentânea, destinada a ser reabsorvida em um átimo, o gesto do caminhar, do vagar entre os homens, permanece. É isso que resta no momento da revelação: “e eu irei muito quedo / entre os homens que não se voltam, com meu segredo”[5] (MONTALE, 2002, p. 91). Mesmo que em um momento tudo retome o semblante habitual, para o poeta já é tarde demais. Seu gesto de virar-se para trás, de olhar para o abismo, quase como um moderno Orfeu, não é reversível.
O gesto de Montale resume em si um significado profundo, carrega um valor outro, renunciando a toda finalidade, abdicando de um objetivo. Não muda a situação, não troca o cenário, não age sobre a realidade modificando-a. O poeta cumpre um gesto na medida em que “nele, não se produz nem se age, mas se assume e se suporta” (AGAMBEN, 2015, s/p). Assumir e suportar, nesse caso, significa reconhecer a vacuidade de qualquer pretensão de significado e, ao mesmo tempo, renunciar à vontade de indicar algo por meio do próprio fazer. O gesto de Montale não somente não tem objetivo, como não remete a nada para além dele mesmo. O que resta é continuar o caminho, entre os homens, mas solitário, já que somente ele guarda o segredo. O caminhar, então, com seus obstáculos, suas incertezas, se torna momento poético na medida em que propicia o evento, que, por sua vez, é gerador da poesia. O poeta não é estático, não se apresenta em contemplação, mas sente, percebe e age no espaço, por meio do passo, do avançar, frequentemente sem meta, de sua vontade de vagar, de se perder, de se confundir.
Se repensarmos a data da primeira publicação de Ossos de sépia, 1925, podemos perceber a novidade da operação realizada. Por um lado, de fato, representa uma ruptura com a poesia que era produzida nesses anos, propondo soluções novas, em linha com as instâncias do modernismo de ascendências anglo-saxônicas. Por outro, contudo, olha para a tradição, para Dante, como já colocado, mas para além dele também, cumprindo um gesto de retomada e releitura que abrirá as portas do século XX para muita poesia que tinha ficado esquecida. Então, é um caminhar que também perpassa os séculos, feito de saltos e lacunas, e que leva Montale para o redescobrimento de Dante, colocando o poeta da ligúria em contato com algumas das experiências mais criativas do século XX. É um percurso plural, em que a vivência poética pessoal e a força da tradição se reverberam uma na outra.

Como citar: SANTI, Elena. "Itinerários poéticos: Percursos pela poesia italiana e brasileira (parte 1)". In "Revista de Literatura Italiana", v. 3, n. 1, jan-abr, 2022.  Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/231931

 
REFERÊNCIAS
 
AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim. Notas sobre a política. Tradução de Davi Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2000.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento del mondo. Trentasette poesie scelte e tradotte da Antonio Tabucchi. Torino: Einaudi, 1987.
CARERI, Francesco. Caminhar e parar. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo: Gustavo Gili, 2017.
CARERI, Francesco. Walkscapes. O Caminhar como prática estética. Tradução de Frederico Bonaldo.  São Paulo: Editora Gustavo Gili, 2013. 
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Vol. I Artes de fazer: Cultura: Sociologia. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2003.
FORNONI, Aurora Bernardini. Montale e Drummond: possíveis projeções. In: PETERLE, Patricia; GASPARI, Silvana de (org). Arquivos poéticos: desagregação e potencialidades do Novecento italiano. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015, p. 103-112.
MONTALE, Eugenio. L’opera in versi. A cura di Rosanna Bettarini e Gianfranco Contini. Torino: Einaudi, 1980.
MONTALE, Eugenio. Ossos de sépia 1920-1927. Tradução de Renato Xavier. São Paulo; companhia das Letras, 2002.


[1] CARERI, Francesco. Caminhar e parar. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo: Gustavo Gili, 2017 e CARERI, Francesco. Walkscapes. O Caminhar como prática estética. Tradução de Frederico Bonaldo.  São Paulo: Editora Gustavo Gili, 2013. 
[2] Nesse sentido relembramos o congresso realizado em 2016, na Universidade Federal de Santa Catarina “Resíduos do humano: experiência e linguagem na literatura italiana das últimas décadas”, organizado pelo Núcleo de Estudos Contemporâneos de Literatura Italiana - NECLIT e a publicação que dele surgiu: Patricia Peterle (org). Resíduos do humano. São Paulo: Rafael Copetti, 2019.
[3] Destacamos, sobre o tema, a tese de doutorado Operações poéticas de Eugenio Montale: os minerais em Ossi di seppia (2016), de Arivane Augusta Chiarleotto, que procura as imagens de minerais sólidos no interno da coletânea montaliana.
[4] “Forse un mattino andando in un’aria di vetro, / arida, rivolgendomi, vedrò compirsi il miracolo: / il nulla alle mie spalle, il vuoto dietro / di me, con un terrore di ubriaco” (tradução de Renato Xavier).
[5] “[...] io me ne andrò zitto / tra gli uomini che non si voltano, col mio segreto” (tradução de Renato Xavier).