La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Pasolini entre jovens infelizes, por Cláudia Tavares Alves

 


Para lembrar a figura de Pier Paolo Pasolini neste ano em que se celebra seu centenário de nascimento, empresto o título deste artigo do texto de abertura de Cartas luteranas – livro publicado em 1976, após a morte de Pasolini, mas que fora organizado pelo autor, e que reúne uma série de ensaios publicados em jornais italianos ao longo dos anos de 1970. Cartas luteranas e Escritos corsários são os dois livros organizados por Pasolini em que estão agrupados seus textos mais políticos, que circularam em periódicos. Relembro que aqui, no Brasil, alguns desses textos foram publicados na década de 1990, na antologia que também recebeu o nome de “Os jovens infelizes”, organizada por Michel Lahud, e traduzida por Lahud e por Maria Betânia Amoroso. Recentemente, esse projeto finalmente encontrou continuidade, com a publicação da tradução brasileira integral de Escritos corsários, feita por Amoroso.
O ensaio “Os jovens infelizes”, apesar de ser inédito no livro, é um representante apropriado da linha argumentativa de Pasolini nesse tipo de publicação para jornais. Ele revela principalmente que tipo de relação Pasolini estabelecia com os jovens italianos nesses escritos. O texto começa explicitando um conflito de geração marcante entre o autor e os jovens sobre os quais ele fala. Há uma dicotomia entre a geração de Pasolini, isto é, a geração que ele chama de geração dos pais, e a geração dos filhos, que seriam os jovens italianos. Vale lembrar que Pasolini nasceu em uma Itália completamente diversa daquela em que os jovens, sobre os quais ele fala, nasceram, portanto a Itália dos anos 1970. E esse é um fato que não pode ser desconsiderado. Quando Pasolini começa a notar uma certa configuração social e política na Itália pós-Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, pós-Revolução Tecnológica, o tipo de análise que ele propõe só é compreensível porque ele conheceu uma sociedade italiana muito diferente dessa com a qual ele convive nos anos 70, quando já tem mais de 50 anos de idade.
Para falar então dessa nova configuração econômica da Itália, que é também uma nova configuração social, política, cultural, educacional etc., Pasolini estabelece a si mesmo, como uma espécie de missão intelectual, denunciar as implicações que esse novo modelo trazia para a vida dos italianos e italianas. A sociedade do consumo, pautada em valores burgueses – como o próprio autor afirma –, será responsável então por alterar a dinâmica de vida dos jovens. Para Pasolini, os jovens da década de 1970 não teriam escolha, não conheceriam outro caminho: seriam os frutos da revolução antropológica e trariam em seus próprios corpos as marcas que esse modelo consumista de vida produziria.
A forma como essa nova ordem afeta os jovens é descrita de maneira impactante. A seguir, um trecho do ensaio “Os jovens infelizes”, no qual o autor descreve os jovens que observa:

Os filhos que nos circundam, especialmente os mais jovens, os adolescentes, são quase todos uns monstros. Seu aspecto físico é quase aterrorizante e, quando não aterrorizante, enfadonhamente infeliz. Horríveis pelagens, cabeleireiras caricaturais, carnações pálidas, olhos embaciados. (...) Seus olhos se esquivam, seu pensamento está perpetuamente alheio, têm ao mesmo tempo respeito e desprezo excessivos, paciência demais ou demasiada impaciência. (...) Não têm nenhuma luz nos olhos: seus traços são traços imitados de autômatos, sem que nada de pessoal os caracterize de dentro. A estereotipia torna-os pérfidos. Seu silêncio pode preceder um trépido pedido de ajuda (que ajuda?) ou uma facada. Não possuem mais o domínio de seus atos, diria mesmo dos seus músculos. Não sabem bem qual é a distância entre causa e efeito. Regrediram – sob a aparência de uma maior educação escolar e de melhores condições de vida – a uma rudeza primitiva[1].

 Pasolini se mostra interessado em entender de que maneira os avanços nos campos da tecnologia e do mercado financeiro afetam diretamente a maneira como a sociedade passa a se comportar e, em especial, de que maneira esse novo estilo de vida contamina física e psicologicamente os jovens. É, como o autor diz em outro ensaio, um desenvolvimento que não traz necessariamente consigo o progresso. Há mais acesso à informação, à mídia, à educação, mas esse acúmulo de conhecimento não necessariamente se torna responsável por trazer sabedoria, nem sequer qualquer reflexão sobre esse conhecimento.
Segundo o autor, a interferência do modelo capitalista é tão intensa que passa a modificar fisicamente os jovens, e é nessa modificação física que Pasolini encontra pistas significativas para corroborar suas hipóteses. A partir de uma leitura semiológica, isto é, a partir da percepção de indícios que indicam mudanças mais profundas, Pasolini passou a procurar nos comportamentos e nos corpos dos jovens sinais que lhe permitissem observar a gravidade das mudanças sociais.
Quando Pasolini começa a publicar no jornal Corriere della sera, em janeiro de 1973, faz uso exatamente deste mecanismo de análise. Para falar sobre a mutação antropológica a um grande público, já que esse era e ainda é um dos jornais de maior circulação na Itália, ele escreve um ensaio chamado “Contra os cabelos longos”, que depois será publicado em Escritos corsários como “O 'discurso' dos cabelos”. Nele, descreve seu contato com jovens de cabelos compridos, vistos durante vários anos por suas viagens pelo mundo e pela Itália. Aqueles longos fios de cabelo, ou melhor, a atitude de deixar o cabelo crescer era, para Pasolini, um sinal de que havia ali naquele gesto um discurso implícito. A questão que se coloca é que um gesto que, a princípio, seria um discurso de resistência, de questionamento, de revolta, acaba por ceder lugar a um discurso vazio e conformista, que reflete o retrocesso e a falsa liberdade de expressão. Este é o final do artigo, que ajuda a ilustrar a expressividade e a indignação de Pasolini:
 
Sinto um desprazer imenso e sincero em dizê-lo (até mesmo um puro e verdadeiro desespero): atualmente, milhares e milhares de caras de jovens italianos se assemelham cada vez mais à cara de Merlin. Sua liberdade de usar os cabelos como bem entenderem não é mais defensável, porque já não é mais liberdade. É, pelo contrário, chegada a hora de dizer aos jovens que seu modo de se pentear é horrível, porque servil e vulgar. Mais ainda, é chegada a hora de eles mesmos se darem conta disso e se libertarem dessa sua ânsia criminosa e de se aterem à ordem degradante da horda[2].
 
Pasolini estava preocupado em questionar essa liberdade, expressa pelo uso dos cabelos longos, pois, segundo sua visão, essa liberdade não era real – ela era consentida, manipulada, oferecida, justamente para dar a falsa sensação de que se é livre. Para ele, tal liberdade só existe para que o modelo burguês ganhe força entre os consumidores, sobretudo entre os jovens consumidores.
Entretanto, há, nos escritos jornalísticos, um contraponto muito interessante a essa visão pessimista em relação aos jovens. Em uma série de artigos publicados no jornal Il Mondo, de março a junho de 1975, Pasolini se coloca como o mestre de um pupilo, o napolitano Gennariello, a quem o escritor dará várias lições sobre temas importantes, como família, religião, escola, sexo, televisão, entre outros. Esse “pequeno tratado pedagógico”, como o próprio autor denomina, é um exemplo importante de que, apesar da aspereza com que Pasolini falava sobre os jovens, não havia de fato a intenção de cessar completamente sua comunicação com eles.
Como Gennariello é um personagem criado por Pasolini, ele é claramente um jovem idealizado, com características muito particulares. Por exemplo, Gennariello é napolitano justamente porque Pasolini sentia simpatia pelos povos do sul, nos quais ele ainda reconhecia uma atmosfera provinciana e alguma sobrevivência das tradições. Seriam regiões ainda parcialmente imunes aos ideais econômicos e sociais do norte do país.
Gennariello é também um estudante burguês e há nessa escolha um detalhe que não é ingênuo. Enquanto nos outros ensaios Pasolini é completamente negativo em relação à burguesia, na descrição de Gennariello esta característica é positiva na medida em que não anula sua vitalidade. É, na verdade, o fato de ser um estudante burguês que permite a Gennariello ter acesso a uma educação prévia, capaz de fazê-lo acompanhar as lições recebidas de seu mestre. E, além de napolitano, estudante e burguês, Pasolini faz questão de descrever Gennariello como um rapaz muito bonito, fisicamente bonito – uma característica que se opõe totalmente aos jovens monstruosos e apáticos descritos anteriormente.
Para ilustrar a dinâmica dessas lições, vejamos um trecho em que Pasolini explica muito didaticamente qual é, afinal, sua posição, como intelectual, nesses textos:

Veja, Gennariello, a maioria dos intelectuais laicos e democráticos italianos se consideram extraordinários porque se sentem virilmente "dentro" da história: aceitam realisticamente que ela transforma as realidades e os homens. (...) Eu não, Gennariello. Lembre-se de que eu, seu mestre, não acredito nessa história, nem nesse progresso. Não é verdade que, contudo, avançamos. Com muita frequência, tanto o indivíduo, como as sociedades regridem ou pioram. Nesse caso, não se deve aceitar a transformação: a sua "aceitação realista" na verdade é uma culposa manobra para tranquilizar a própria consciência e seguir em frente. (...) A regressão e a piora não se devem aceitar: talvez com indignação ou com raiva, que, ao contrário do que sugerem as aparências, neste caso específico são atos profundamente racionais. É preciso ter a força da critica total, da rejeição, da denúncia desesperada e inútil[3].
 

Fica evidente que existe, enfim, uma relação ambígua entre Pasolini e os jovens infelizes: ao mesmo tempo em que esses jovens são o produto mais monstruoso da mutação antropológica que Pasolini percebe, é com esses mesmos jovens que ele ainda está disposto a estabelecer uma comunicação, um diálogo sobre as condições sociais que os afetam. E é ainda nesses jovens que ele quer despertar a indignação, com o objetivo de impulsioná-los à crítica total, à reação a essa história e a esse modo de viver burguês.

Por outro lado, apesar do tom extremamente enfático que reconhecemos nesses escritos, Pasolini nunca se assumiu como uma autoridade. Ele, inclusive, negava essa autoridade e se colocava como um intelectual disposto a observar e a pensar o mundo à sua volta; também como um intelectual disposto a se reinventar, a renovar suas formas de comunicação, passando a escrever, por exemplo, em jornais de grande circulação. Dentro desse limite, se assumia como um escritor, no máximo como um diagnosticador dos sinais deixados, como alguém que se permitiria ser crítico, mas que também teria “imaginação política”.
Na famosa sequência “Eu sei”, do ensaio “O que é este golpe?”, depois publicado como “O romance dos massacres” em Escritos corsários, Pasolini confessa saber nomes e dados importantes sobre uma série de acontecimentos políticos da Itália de 1974. Nesse contexto, ele também apresenta uma das mais belas definições para o que ele considerava ser um escritor:
 
Eu sei os nomes dos responsáveis pelo massacre de Milão de 12 de dezembro de 1969. Eu sei os nomes dos responsáveis pelos massacres de Brescia e de Bolonha nos primeiros meses de 1974. (...) Eu sei. Mas não tenho as provas. Não tenho nem mesmo indícios. Eu sei porque sou um intelectual, um escritor que procura acompanhar tudo o que acontece, procura conhecer tudo o que se escreve a respeito, procura imaginar tudo o que não se sabe ou que se cala; que relaciona fatos ainda que distantes, que aproxima as peças desorganizadas e fragmentárias de todo um quadro político coerente, que restabelece a lógica ali onde parece reinar a arbitrariedade, a loucura e o mistério[4].
 
Essa é uma ressalva importante a ser feita para responder às críticas que veem a produção jornalística de Pasolini como profética. Para o escritor, a questão não foi pensar aqueles fatos como previsões para o futuro. Ele observava a sua realidade, vivia a sua realidade, sentia em sua própria vida as mudanças que observava. Se hoje, apesar das distâncias temporais e geográficas, podemos reconhecer um pouco de nós mesmos nos escritos de Pasolini, é porque também nós estamos dispostos a olhar nosso mundo com a mesma criticidade, com a mesma intenção de desconstruir os mecanismos políticos e econômicos que visam a nos igualar culturalmente.
Pasolini foi um escritor que reiteradas vezes falou sobre a solidão de ser um intelectual consciente da realidade em que vivia, mas que, mesmo sozinho, não deixaria de escrever, não deixaria de se manifestar. Falando sobre sua solidão, estava ainda assim falando. E com sua aparente resignação estava, na verdade, se fazendo ser ouvido. E é nesse sentido que, apesar de suas análises se referirem a uma Itália muito específica, Pasolini ainda tem muito a nos dizer até hoje. Sigamos lembrando e nos inquietando por suas ideias.

 Como citar: ALVES, Cláudia Tavares. "Pasolini entre jovens infelizes". In "Revista de Literatura Italiana"v. 3, n. 1, jan-abr, 2022.  Disponível em:



[1] PASOLINI, P. P. Os jovens infelizes: antologia de ensaios corsários. Org. Michel Lahud. Trad. Michel Lahud e Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Brasiliense, 1990, pp. 30-31.
[2] PASOLINI, P. P. Escritos corsários. Trad. Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Editora 34, 2020. p. 41.
[3] PASOLINI, P. P. Saggi sulla politica e sulla società. Coleção I Meridiani. Org. Walter Siti. Milano: Mondadori, 2001, p. 561; trad. minha.
[4] PASOLINI, P. P. Escritos corsários. Trad. Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 122.