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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Cláudia Tavares Alves
Jovens infelizes
Pier Paolo Pasolini
em
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Para lembrar a figura de Pier
Paolo Pasolini neste ano em que se celebra seu centenário de nascimento, empresto
o título deste artigo do texto de abertura de Cartas luteranas – livro
publicado em 1976, após a morte de Pasolini, mas que fora organizado pelo
autor, e que reúne uma série de ensaios publicados em jornais italianos ao
longo dos anos de 1970. Cartas luteranas e Escritos corsários são
os dois livros organizados por Pasolini em que estão agrupados seus textos mais
políticos, que circularam em periódicos. Relembro que aqui, no Brasil, alguns
desses textos foram publicados na década de 1990, na antologia que também
recebeu o nome de “Os jovens infelizes”, organizada por Michel Lahud, e
traduzida por Lahud e por Maria Betânia Amoroso. Recentemente, esse projeto
finalmente encontrou continuidade, com a publicação da tradução brasileira
integral de Escritos corsários, feita por Amoroso.
O ensaio “Os jovens infelizes”,
apesar de ser inédito no livro, é um representante apropriado da linha
argumentativa de Pasolini nesse tipo de publicação para jornais. Ele revela
principalmente que tipo de relação Pasolini estabelecia com os jovens italianos
nesses escritos. O texto começa explicitando um conflito de geração marcante
entre o autor e os jovens sobre os quais ele fala. Há uma dicotomia entre a
geração de Pasolini, isto é, a geração que ele chama de geração dos pais,
e a geração dos filhos, que seriam os jovens italianos. Vale lembrar que
Pasolini nasceu em uma Itália completamente diversa daquela em que os jovens,
sobre os quais ele fala, nasceram, portanto a Itália dos anos 1970. E esse é um
fato que não pode ser desconsiderado. Quando Pasolini começa a notar uma certa
configuração social e política na Itália pós-Segunda Guerra Mundial e,
sobretudo, pós-Revolução Tecnológica, o tipo de análise que ele propõe só é
compreensível porque ele conheceu uma sociedade italiana muito diferente dessa
com a qual ele convive nos anos 70, quando já tem mais de 50 anos de idade.
Para falar então dessa nova configuração
econômica da Itália, que é também uma nova configuração social, política,
cultural, educacional etc., Pasolini estabelece a si mesmo, como uma espécie de
missão intelectual, denunciar as implicações que esse novo modelo trazia para a
vida dos italianos e italianas. A sociedade do consumo, pautada em valores
burgueses – como o próprio autor afirma –, será responsável então por alterar a
dinâmica de vida dos jovens. Para Pasolini, os jovens da década de 1970 não teriam
escolha, não conheceriam outro caminho: seriam os frutos da revolução antropológica
e trariam em seus próprios corpos as marcas que esse modelo consumista de vida
produziria.
A forma como essa nova ordem
afeta os jovens é descrita de maneira impactante. A seguir, um trecho do
ensaio “Os jovens infelizes”, no qual o autor descreve os jovens que observa:
Os filhos que nos circundam,
especialmente os mais jovens, os adolescentes, são quase todos uns monstros.
Seu aspecto físico é quase aterrorizante e, quando não aterrorizante,
enfadonhamente infeliz. Horríveis pelagens, cabeleireiras caricaturais, carnações
pálidas, olhos embaciados. (...) Seus olhos se esquivam, seu pensamento está
perpetuamente alheio, têm ao mesmo tempo respeito e desprezo excessivos, paciência
demais ou demasiada impaciência. (...) Não têm nenhuma luz nos olhos: seus traços
são traços imitados de autômatos, sem que nada de pessoal os caracterize de
dentro. A estereotipia torna-os pérfidos. Seu silêncio pode preceder um trépido
pedido de ajuda (que ajuda?) ou uma facada. Não possuem mais o domínio de seus
atos, diria mesmo dos seus músculos. Não sabem bem qual é a distância entre
causa e efeito. Regrediram – sob a aparência de uma maior educação escolar e de
melhores condições de vida – a uma rudeza primitiva[1].
Segundo o autor, a interferência
do modelo capitalista é tão intensa que passa a modificar fisicamente os
jovens, e é nessa modificação física que Pasolini encontra pistas significativas
para corroborar suas hipóteses. A partir de uma leitura semiológica, isto é, a
partir da percepção de indícios que indicam mudanças mais profundas, Pasolini
passou a procurar nos comportamentos e nos corpos dos jovens sinais que lhe
permitissem observar a gravidade das mudanças sociais.
Quando Pasolini começa a publicar
no jornal Corriere della sera, em
janeiro de 1973, faz uso exatamente deste mecanismo de análise. Para falar
sobre a mutação antropológica a um grande público, já que esse era e ainda é um
dos jornais de maior circulação na Itália, ele escreve um ensaio chamado
“Contra os cabelos longos”, que depois será publicado em Escritos corsários
como “O 'discurso' dos cabelos”. Nele, descreve seu contato com jovens de
cabelos compridos, vistos durante vários anos por suas viagens pelo mundo e
pela Itália. Aqueles longos fios de cabelo, ou melhor, a atitude de deixar o
cabelo crescer era, para Pasolini, um sinal de que havia ali naquele gesto um
discurso implícito. A questão que se coloca é que um gesto que, a princípio, seria
um discurso de resistência, de questionamento, de revolta, acaba por ceder
lugar a um discurso vazio e conformista, que reflete o retrocesso e a falsa
liberdade de expressão. Este é o final do artigo, que ajuda a ilustrar a
expressividade e a indignação de Pasolini:
Sinto um desprazer imenso e
sincero em dizê-lo (até mesmo um puro e verdadeiro desespero): atualmente,
milhares e milhares de caras de jovens italianos se assemelham cada vez mais à
cara de Merlin. Sua liberdade de usar os cabelos como bem entenderem não é mais
defensável, porque já não é mais liberdade. É, pelo contrário, chegada a hora
de dizer aos jovens que seu modo de se pentear é horrível, porque servil e
vulgar. Mais ainda, é chegada a hora de eles mesmos se darem conta disso e se
libertarem dessa sua ânsia criminosa e de se aterem à ordem degradante da horda[2].
Pasolini estava preocupado em
questionar essa liberdade, expressa pelo uso dos cabelos longos, pois, segundo
sua visão, essa liberdade não era real – ela era consentida, manipulada,
oferecida, justamente para dar a falsa sensação de que se é livre. Para ele,
tal liberdade só existe para que o modelo burguês ganhe força entre os
consumidores, sobretudo entre os jovens consumidores.
Entretanto, há, nos escritos jornalísticos,
um contraponto muito interessante a essa visão pessimista em relação aos
jovens. Em uma série de artigos publicados no jornal Il Mondo, de março
a junho de 1975, Pasolini se coloca como o mestre de um pupilo, o napolitano
Gennariello, a quem o escritor dará várias lições sobre temas importantes, como
família, religião, escola, sexo, televisão, entre outros. Esse “pequeno tratado
pedagógico”, como o próprio autor denomina, é um exemplo importante de que,
apesar da aspereza com que Pasolini falava sobre os jovens, não havia de fato a
intenção de cessar completamente sua comunicação com eles.
Como Gennariello é um personagem
criado por Pasolini, ele é claramente um jovem idealizado, com características
muito particulares. Por exemplo, Gennariello é napolitano justamente porque
Pasolini sentia simpatia pelos povos do sul, nos quais ele ainda reconhecia uma
atmosfera provinciana e alguma sobrevivência das tradições. Seriam regiões
ainda parcialmente imunes aos ideais econômicos e sociais do norte do país.
Gennariello é também um estudante
burguês e há nessa escolha um detalhe que não é ingênuo. Enquanto nos outros
ensaios Pasolini é completamente negativo em relação à burguesia, na descrição
de Gennariello esta característica é positiva na medida em que não anula sua
vitalidade. É, na verdade, o fato de ser um estudante burguês que permite a
Gennariello ter acesso a uma educação prévia, capaz de fazê-lo acompanhar as lições
recebidas de seu mestre. E, além de napolitano, estudante e burguês, Pasolini
faz questão de descrever Gennariello como um rapaz muito bonito, fisicamente
bonito – uma característica que se opõe totalmente aos jovens monstruosos e apáticos
descritos anteriormente.
Para ilustrar a dinâmica dessas lições,
vejamos um trecho em que Pasolini explica muito didaticamente qual é, afinal,
sua posição, como intelectual, nesses textos:
Veja, Gennariello, a maioria dos
intelectuais laicos e democráticos italianos se consideram extraordinários
porque se sentem virilmente "dentro" da história: aceitam
realisticamente que ela transforma as realidades e os homens. (...) Eu não,
Gennariello. Lembre-se de que eu, seu mestre, não acredito nessa história, nem
nesse progresso. Não é verdade que, contudo, avançamos. Com muita frequência,
tanto o indivíduo, como as sociedades regridem ou pioram. Nesse caso, não se
deve aceitar a transformação: a sua "aceitação realista" na verdade é
uma culposa manobra para tranquilizar a própria consciência e seguir em frente.
(...) A regressão e a piora não se devem aceitar: talvez com indignação ou com
raiva, que, ao contrário do que sugerem as aparências, neste caso específico são
atos profundamente racionais. É preciso ter a força da critica total, da rejeição,
da denúncia desesperada e inútil[3].
Fica evidente que existe, enfim,
uma relação ambígua entre Pasolini e os jovens infelizes: ao mesmo tempo em que
esses jovens são o produto mais monstruoso da mutação antropológica que
Pasolini percebe, é com esses mesmos jovens que ele ainda está disposto a
estabelecer uma comunicação, um diálogo sobre as condições sociais que os
afetam. E é ainda nesses jovens que ele quer despertar a indignação, com o
objetivo de impulsioná-los à crítica total, à reação a essa história e a esse
modo de viver burguês.
Por outro lado, apesar do tom
extremamente enfático que reconhecemos nesses escritos, Pasolini nunca se
assumiu como uma autoridade. Ele, inclusive, negava essa autoridade e se
colocava como um intelectual disposto a observar e a pensar o mundo à sua volta;
também como um intelectual disposto a se reinventar, a renovar suas formas de comunicação,
passando a escrever, por exemplo, em jornais de grande circulação. Dentro desse
limite, se assumia como um escritor, no máximo como um diagnosticador dos
sinais deixados, como alguém que se permitiria ser crítico, mas que também teria
“imaginação política”.
Na famosa sequência “Eu sei”, do
ensaio “O que é este golpe?”, depois publicado como “O romance dos massacres”
em Escritos corsários, Pasolini confessa saber nomes e dados importantes
sobre uma série de acontecimentos políticos da Itália de 1974. Nesse contexto,
ele também apresenta uma das mais belas definições para o que ele considerava
ser um escritor:
Eu sei os nomes dos responsáveis
pelo massacre de Milão de 12 de dezembro de 1969. Eu sei os nomes dos responsáveis
pelos massacres de Brescia e de Bolonha nos primeiros meses de 1974. (...) Eu
sei. Mas não tenho as provas. Não tenho nem mesmo indícios. Eu sei porque sou
um intelectual, um escritor que procura acompanhar tudo o que acontece, procura
conhecer tudo o que se escreve a respeito, procura imaginar tudo o que não se
sabe ou que se cala; que relaciona fatos ainda que distantes, que aproxima as peças
desorganizadas e fragmentárias de todo um quadro político coerente, que
restabelece a lógica ali onde parece reinar a arbitrariedade, a loucura e o mistério[4].
Essa é uma ressalva importante a
ser feita para responder às críticas que veem a produção jornalística de
Pasolini como profética. Para o escritor, a questão não foi pensar aqueles
fatos como previsões para o futuro. Ele observava a sua realidade, vivia a sua
realidade, sentia em sua própria vida as mudanças que observava. Se hoje,
apesar das distâncias temporais e geográficas, podemos reconhecer um pouco de nós
mesmos nos escritos de Pasolini, é porque também nós estamos dispostos a olhar
nosso mundo com a mesma criticidade, com a mesma intenção de desconstruir os mecanismos
políticos e econômicos que visam a nos igualar culturalmente.
Pasolini foi um escritor que reiteradas
vezes falou sobre a solidão de ser um intelectual consciente da realidade em
que vivia, mas que, mesmo sozinho, não deixaria de escrever, não deixaria de se
manifestar. Falando sobre sua solidão, estava ainda assim falando. E com sua
aparente resignação estava, na verdade, se fazendo ser ouvido. E é nesse
sentido que, apesar de suas análises se referirem a uma Itália muito específica,
Pasolini ainda tem muito a nos dizer até hoje. Sigamos lembrando e nos
inquietando por suas ideias.
[1] PASOLINI, P. P. Os jovens
infelizes: antologia de ensaios corsários. Org. Michel Lahud. Trad. Michel
Lahud e Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Brasiliense, 1990, pp. 30-31.
[2] PASOLINI, P. P. Escritos corsários. Trad. Maria Betânia Amoroso.
São Paulo: Editora 34, 2020. p. 41.
[3] PASOLINI, P. P. Saggi sulla
politica e sulla società. Coleção I Meridiani. Org.
Walter Siti. Milano: Mondadori, 2001, p. 561; trad. minha.
[4] PASOLINI, P. P. Escritos corsários. Trad. Maria Betânia Amoroso.
São Paulo: Editora 34, 2020, p. 122.
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