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“o que pode o poeta para fixar o movimento da
matéria?”
Prisca Agustoni
Prisca Agustoni, poeta
suíça de língua italiana, em seus poemas
“Borders - Confini”, publicados recentemente na revista Ós - The Journal, 2021[1],
estabelece um interessante diálogo intersemiótico com as esculturas-instalações
da artista islandesa Steinunn Thorarinsdóttir, mostrando frutíferas reverberações da arte visual na sua escrita poética. Propomos
aqui uma reflexão sobre as relações intertextuais e fronteiriças que se
estabelecem nessa poesia, explorando suas potencialidades semânticas e sua
relação com as artes visuais, particularmente com a escultura, a partir das
confluências entre estas artes e a escrita literária da contemporaneidade.
Em seu livro, Seis propostas para o próximo milênio, Italo Calvino nos conta que
adotou como método de escrita de sua narrativa o hábito de escrever a partir de
quadros famosos da história da arte ou de figuras e imagens que exerciam sobre
ele alguma sugestão, expressando assim sua paixão pela pintura[2]. Procedimento de escrita comum a muitos outros autores, não
apenas contemporâneos, mas que na contemporaneidade se torna quase inerente ao
processo de escrita literária, ao ponto de sentirmos que não é mais possível
ler literatura sem considerar a interferência da cultura da imagem[3].
De todo modo, nas suas lições
americanas, Calvino já propunha a visibilidade na literatura e afirmava o “poder
imaginativo da palavra” contra os “efeitos nocivos da banalização da imagem” na
contemporaneidade. De acordo com o escritor, o poder da imaginação literária
pressupõe uma maior consistência da imagem, como se fosse uma espécie de
“reservatório do possível”, a “força criadora da imagem”, como única e
verdadeira “inspiração para a ação individual sobre a própria história. As
imagens visíveis são fontes de inspiração para a produção literária, mas na
literatura as imagens visíveis se cruzam com as não visíveis e estabelecem com
elas uma relação de mútua inspiração”[4]. Diz Calvino:
“A mente do poeta, bem como o
espírito do cientista em certos momentos decisivos, funcionam segundo um
processo de associações de imagens que é o sistema mais rápido de coordenar e
escolher entre as formas infinitas do possível e do impossível”[5].
Nessa perspectiva, a literatura seria
“um lugar de encontro entre imagens e palavras, mas também um lugar de criação
de imagens liberadas da fantasia superficial, um lugar para depuração e
cristalização de imagens, onde elas adquirem definição e autossuficiência”[6].
Assim posto, passamos a refletir agora
sobre esta tendência da literatura contemporânea em interseccionar linguagens, este
fascínio por textos visuais e imagéticos tomados de empréstimo do cinema, da
fotografia, da escultura, da pintura, mostrando o fecundo diálogo intertextual
e intersemiótico que consiste na essência dessas obras. Especificamente nos
deteremos na poesia em língua italiana de Prisca Agustoni, procurando notar
como manifestações artísticas visuais são incorporadas, traduzidas, recriadas
na sua escrita poética.
A poeta Prisca
Agustoni reside no Brasil, em Minas Gerais, desde 2002, é formada em Letras
Espanhol e Filosofia, possui mestrado em Estudos de gênero, pela Universidade
de Genebra e doutorado em Literatura comparada pela PUC-Minas. Sua intensa
atividade literária é marcada pelo plurilinguismo: escreve em italiano, francês
e português, também traduz poesia nestas línguas, é a principal tradutora do
poeta suíço, de língua italiana Fabio Pusterla no Brasil. Desde 2008 é também
professora de língua e literatura italianas na Universidade Federal de Juiz de
Fora. Recentemente foi indicada ao prêmio Jabuti por seu volume de poesias escrito
em português, mas com interferências de outras línguas, O mundo mutilado.
No início de 2020, durante o período
de reclusão devido à pandemia de Covid-19, Prisca decidiu participar de uma chamada para
uma publicação de poesia em várias línguas que tivesse alguma relação com a
Islândia, país em que seria publicada a revista. Visto que sempre teve muitas
relações com as artes plásticas e visuais, a poeta fez uma pesquisa e entrou em
contato com a obra da escultora islandesa Steinunn Thorarinsdóttir, e dessa pesquisa e contato nasceram sete poemas
intitulados “Borders - Confini”.
As pesquisas de Prisca levaram a
conhecer a instalação artística de Steinunn Thorarinsdóttir
que consiste em 26 estátuas, 13 de bronze
e 13 de aço e que, desde 1998, percorrem o mundo, sendo expostas em museus,
galerias, praças e parques públicos. São figuras humanas, dorsos nus, sem
rostos, mas que traduzem gestos, expressões e muitas delas transmitem sensações
e sentimentos. Em geral expostas em pares, uma de bronze e outra de aço, muitas
vezes uma em frente à outra, ou colocadas ao lado uma da outra em espaços
inusitados, interagem com o público fruidor e com os espaços urbanos. As
estátuas de aço, mais leves, cinza metálico, lembrando figuras de gelo e as de
bronze, metal quente e pesado, lembrando também a terra. Quente e frio, terra e
gelo, peso e leveza, qualidades expressas pelos materiais que servem de base para
a escultura, tanto quanto para a escrita poética de Prisca Agustoni.
Das imagens esculpidas e expostas pelo mundo nascem os
poemas de “Borders” – título que a poeta toma emprestado inclusive de algumas
das mostras da escultora – poemas que retratam o
processo fronteiriço de interação das estátuas com o público fruidor que as
observa, tanto quanto descrevem o processo de humanização que estas figuras
empreendem. Reportamos abaixo o primeiro desses poemas:
BORDERS – CONFINI
Dalle sculture di Steinunn
Thorarinsdóttir
(Dag
Hammarskjöld Plaza, NYC,2011)
sono ventisei corpi immobili
divisi da superfici di silenzio
l’anima s’è staccata e vaga
tra di loro, li esplora, persa,
li osserva come ci si guarda
animali in una gabbia aperta
tra lingue che ci sfiorano ma
schizzano via come autobus
in corsa, pieni di volti perenni
e senza storia, fissi cactus
in un deserto lacerante di voci.
O primeiro poema descreve
as estátuas como vinte e seis corpos imóveis, dispostos de frente uns para os
outros, distantes e separados pelo silêncio das salas e parques que os acolhem.
Corpos de pura matéria, inertes, adormecidos, separados da alma, que perdidas,
vagam transeuntes, observando os corpos fixos, aprisionados aos espaços das
praças, dos museus e galerias. Corpos “cactos fixos”, sem história e destinados
ao silêncio, mas perscrutadores, ouvintes, vigilantes no seu aparente sono
eterno.
Estes corpos emudecidos,
observados e observadores, entre os rostos curiosos dos passantes de vozes
lancinantes que os circundam e ecoam no deserto das cidades, vão aos poucos
despertando, na sucessão dos poemas, como se fossem, aos poucos, recebendo de
volta no corpo inerte a “pequena alma” que vaga flutuante, numa espécie de
movimento contrário ao do famoso poema do imperador Adriano[7].
Assim, se o primeiro
poema descreve as frias e mudas estátuas sem alma, o segundo poema da série
lhes devolve, em um movimento de aproximação, alguma “anima”, um pequeno
lampejar. As estátuas andróginas de olhos e bocas fechadas guardam dentro de si
suas raízes e línguas originárias, as antigas línguas congeladas, silenciosas, que
se opõem ao burburinho movente das línguas vivas, babélicas – burburinho que
simboliza o percorrer terras estrangeiras das estátuas imóveis.
Os corpos expostos
horizontalmente vão aos poucos adquirindo um “cuore” fronteiriço, desejosos de
sair do silêncio do frio islandês que os condiciona, para o calor dos gêisers,
interagindo com o mundo babélico a sua volta. Aqui também uma alusão aos tempos
do confinamento, ao emudecer das vozes diante das atrocidades da nossa
realidade (especificamente, brasileira, que é o espaço em que a poeta reside
enquanto escreve estes versos); o vocativo/imperativo nos versos “voi, attorno,
siate una bufera di parole”, conclama o público a re-agir, as estátuas
silenciosas ainda não podem gritar, mas os passantes sim, então elas suplicam
àqueles ao redor que sejam “tempestade de palavras”, que rompam o espelho, que
transbordem como um gêiser que explode, dando vida ou trazendo de volta à vida:
siamo frontiere invisibili
borders between tongues
and roots
abbiamo occhi androgeni
e bocche chiuse dove dentro
congelano lingue antiche
ma voi, attorno, siate
una bufera di parole
che incrinino lo specchio
o una futura babele
orizzontale, un confine
di cuore che deborda
un geiser che esplode
Esse leve e constante
movimento, descrito na
passagem
do primeiro ao segundo poema, aparece também representado na forma dos poemas,
que se alternam entre cinco estrofes de dois versos e quatro de três versos, imprimindo
um ligeiro e contínuo fluxo rítmico entre um poema e outro. Esse movimento parece
acentuar cada vez mais a tentativa da poeta de “dar vida” às estátuas,
humanizar as figuras, intenção contida também na instalação da artista
islandesa, tornando as estátuas parte do cenário cotidianos dos fruidores,
obrigando-os a interagir, ainda que de forma não perceptível[8].
O
“dar vida” e constante humanizar das estátuas é expresso também pelo verso
inicial de cada poema: se no primeiro poema a poeta apenas descreve as
estátuas, “sono ventisei corpi immobili”, do segundo poema em diante, as
estátuas ganham alma, pensamento, voz, palavras, são sujeitos que se
autodescrevem, se percebem, desejosos de ver, sentir, pensar: “siamo frontiere
invisibili” (segundo poema), “siamo forse solo anime” (3º.), “abitiamo il
pensiero”(4º.).
As
estátuas de almas e línguas congeladas, no terceiro poema, já despertas, tomam
consciência de si, percebem-se como “almas aprisionadas ao metal”, tentam se
decifrar, reaver sua forma original, talvez suas asas, talvez o espírito:
Siamo forse
solo anime
inchiodate nel
ferro
le braccia che
penzolano
dal tronco
vertebrale
la cifra della
specie
nel peso del
metallo
desiderose di
riavere
le ali che
precedono
la traccia
originale,
la cicatrice o
la luce
che ci univa e
ci separava,
oggi,
silenziosi ed erranti
entriamo nello
specchio
o in una
seconda morte
Embora
nítido o diálogo com a cultura nórdica contemporânea, representado pela “transposição”
das estátuas para a linguagem poética, os poemas ecoam também mitos da cultura clássica,
o mito do Andrógino de Platão sobre a separação das almas, o ser uno que se duplica
e se procura – duplicidade também resgatada pela exposição especular das
figuras, que colocadas muitas vezes em pares, uma de frente para a outra, se
refletem e se reclamam, unidas mas separadas, silenciosas e errantes, refletindo-se
narcisicamente num espelho – referência
a outro mito clássico presente nos versos finais do terceiro poema, em que os
seres desejosos das formas originárias, “as asas”, “a cicatriz ou a luz”,
entram no espelho ou se precipitam numa “segunda morte”.
As
estátuas de Thorarinsdóttir parecem confluir, na poesia de Prisca Agustoni, em
direção a uma cosmogonia, uma busca pela origem empreendida pela palavra
poética, pela força da palavra que nomeada, ou melhor, escrita, traz em si a
própria manifestação do ser mítico. É a força da palavra que dá a vida a esses
seres imóveis e fixos.
Outro
tema importante que perpassa os poemas é o das fronteiras invisíveis, talvez
porque já presente nas instalações artísticas que percorreram vários países,
interagindo com outras culturas e percepções do mundo, talvez porque também
ressoem os versos do volume O mundo
mutilado, publicado em 2020, livro que também tematiza as fronteiras
geográficas e linguísticas, os confins entre as línguas e suas origens,
mesclando a arte poética à história pessoal da poeta.
Em
“Borders” as fronteiras entre os corpos de metal e seus fruidores propostas
pelas instalações da escultora islandesa são retomadas na e pela linguagem, representando
os limiares entre o real e a invenção, as intersecções entre as linguagens, o diálogo
intersemiótico que se estabelece entre a escultura e a poesia. Nas instalações
artísticas, as estátuas se emocionam, às vezes parecem rir e brincar
descontraídas, e outras se desesperam juntas de seus observadores.
Já
no texto poético, elas habitam o pensamento dos homens, como se habitassem as
fronteiras entre a terra e o mar. No cotidiano apressado, as estátuas confusas ou
brincalhonas ganham vida, despertando entre os passos apressados do dia-a-dia, para
o rumor brejeiro das crianças, para o olhar distante e às vezes desdenhoso dos
adultos, para a sem pressa dos velhos sentados nos bancos das praças e perdidos
nos vãos da memória.
Na
poesia, essa memória traz a tona os elementos do abandono, da vida que se
dissipa e se perde no trânsito, no correr das ruas. E nessa confusão incessante
dos dias urbanos, passado e presente parecem convergir para um futuro
catastrófico: as estátuas-despertas se perguntam, no quarto poema, se são elas as
ruínas sobreviventes do passado, “la rovina emersa dal sasso”, ou a vida que
precede o constante desastre por vir. Inquietações tão humanas quanto o próprio
passar do tempo:
Abitiamo il pensiero
come si abita
il confine
tra la terra e
il mare
o l’unghia di
sole
che lenta
smangia l’ombra
e traslucida
matura
rivelando la
memoria
smerlata,
piena
degli elementi
dell’abbandono
: siamo la
rovina
emersa dal
sasso o la vita
che precede il disastro?
Habitadas, preenchidas
pela força das palavras “dromedárias”, “pré-históricas”, originárias, as
estátuas-palavras migram e percorrem outras terras, descem do norte em direção
ao deserto, esses “irmãos de ferro” e “de neve”, peregrinam com seu desejo
constante de comunhão com o universo:
parole dromedarie
preistoriche
migrano assieme alla gente
scendono dai fiordi del nord
o dai cardi delle alpi
e vanno lungo il deserto
vichinghi o tuareg
fratelli di ferro o di neve
pellegrini di noi stessi
confine tra ciò che brilla
e ciò che brucia
No
lento movimento de despertar das estátuas, cada poema é um passo adiante, como
a própria vida que nasce a cada instante – assim a poeta tenta traduzir, recriar,
reescrever em outra linguagem, em várias línguas, esse caminhar das estátuas. Os
últimos dois poemas mostram a versatilidade com que a poeta transita de uma
língua a outra, o exercício plurilíngue, as infinitas possibilidades e
combinações do ato poético e criativo.
siamo
ventisei corpi tutti uguali
e
diversi, nati dalla stessa madre
we
are brothers among fires
and
burned borders:
do
you know me?
can
you spell my soul
or
smell my skin?
abitiamo
il lungo sonno
della
balena del nord
che
resiste oltre il nostro passo
do
we share a common hunger
and
a shelter
as
a dog between dogs?
Esses
corpos iguais, nascidos da mesma mãe, irmãos de/entre fronteiras, que queimam,
ardem, buscam a comunhão das almas e sentir o cheiro da pele. Migrantes ou
nômades peregrinam em busca de um lugar “onde estar”, onde permanecer, “onde
florir”. O último dos poemas traz essa confluência para a natureza mítica, o
encontro com a terra, a floresta ferida, floresta mãe, que tudo acolhe. A
imagem da clareira segura, protegida, enquanto tudo ao redor é furor e “raízes
babélicas” em chamas.
intuire tra
gli strati morbidi
d’alluminio
e nei muscoli
del ferro
che la foresta
è un cratere
una lunga
ferita
che lenta
rimargina
sou
filho de uma terra
onde
ouvimos as palavras
das árvores
il verde e il
bianco
sono dei
luoghi
dove sostare
dove fiorire
clareiras
mentre attorno
il furore
e radici
babeliche
infiammano
No
andar dos poemas, percebemos esse componente narrativo, que busca retratar o
movimento de “dar vida” a seres imóveis e a busca constante destes por “mais
vida”, numa alegoria da vida humana que se vê refletida nessas estátuas, imagens
especulares e quase caricata de nós mesmos, das vicissitudes que nos
constituem, das fronteiras que nos habitam. Em seu retorno à vida, em seu lento
caminhar e conhecer, elas procuram resgatar as origens, as raízes babélicas que
constituem o ser e também a poesia, numa confluência para o ser mítico e a
poesia originária.
A
busca da completude assim representada em uma poesia que envolve o leitor, que
articula linguagens e expressões artísticas diversas, que mostra o poder da
palavra e a força da imagem poética.
Referências:
AGUSTONI, P.“Borders/Confini”. In: Ós - The Journal, no.
5, Reykjavík,
Iceland: Ós Pressan, 2021.
____________
Sete exercícios de escrita a partir do vazio. In: Língua-Lugar: Literatura.
História. Estudos Culturais. no.2. Universidade de Genebra, 2020.
CALVINO,
I. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
SCHOLLHAMMER,
K. E. Além do visível; o olhar da literatura. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
Site
da artista: https://www.steinunnth.com/
Como citar: SALATINI, Erica. " Das fronteiras invisíveis: as artes visuais na poesia de Prisca Agustoni". In "Revista de Literatura Italiana", v. 3, n. 1, jan-abr, 2022. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/234476
[1] ÓS, The
Journal, no. 5, Reykjavík,
Iceland: Ós Pressan, 2021. As poesias serão publicadas em
português, em breve, pela editora Urutau.
[2] CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 110.
[3] SCHOLLHAMMER, K. E. Além do
visível; o olhar da literatura. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p.7.
[4] SCHOLLHAMMER,
cit., p.10.
[5] CALVINO,
cit., p.107.
[7] No que é considerado o último
poema do Imperador romano Adriano (76-138 D.C.) encontramos o verso “Animula vagula, blandula”.
[8] Remeto ao site da artista onde é
possível visualizar fotos das estátuas em suas interações com os fruidores: https://www.steinunnth.com/
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