La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Das fronteiras invisíveis: as artes visuais na poesia de Prisca Agustoni, por Erica Salatini

 



 

“o que pode o poeta para fixar o movimento da matéria?”

Prisca Agustoni

 

Prisca Agustoni, poeta suíça de língua italiana, em seus poemas “Borders - Confini”, publicados recentemente na revista Ós - The Journal, 2021[1], estabelece um interessante diálogo intersemiótico com as esculturas-instalações da artista islandesa Steinunn Thorarinsdóttir, mostrando frutíferas reverberações da arte visual na sua escrita poética. Propomos aqui uma reflexão sobre as relações intertextuais e fronteiriças que se estabelecem nessa poesia, explorando suas potencialidades semânticas e sua relação com as artes visuais, particularmente com a escultura, a partir das confluências entre estas artes e a escrita literária da contemporaneidade.
Em seu livro, Seis propostas para o próximo milênio, Italo Calvino nos conta que adotou como método de escrita de sua narrativa o hábito de escrever a partir de quadros famosos da história da arte ou de figuras e imagens que exerciam sobre ele alguma sugestão, expressando assim sua paixão pela pintura[2]. Procedimento de escrita comum a muitos outros autores, não apenas contemporâneos, mas que na contemporaneidade se torna quase inerente ao processo de escrita literária, ao ponto de sentirmos que não é mais possível ler literatura sem considerar a interferência da cultura da imagem[3].
De todo modo, nas suas lições americanas, Calvino já propunha a visibilidade na literatura e afirmava o “poder imaginativo da palavra” contra os “efeitos nocivos da banalização da imagem” na contemporaneidade. De acordo com o escritor, o poder da imaginação literária pressupõe uma maior consistência da imagem, como se fosse uma espécie de “reservatório do possível”, a “força criadora da imagem”, como única e verdadeira “inspiração para a ação individual sobre a própria história. As imagens visíveis são fontes de inspiração para a produção literária, mas na literatura as imagens visíveis se cruzam com as não visíveis e estabelecem com elas uma relação de mútua inspiração”[4]. Diz Calvino:
 
“A mente do poeta, bem como o espírito do cientista em certos momentos decisivos, funcionam segundo um processo de associações de imagens que é o sistema mais rápido de coordenar e escolher entre as formas infinitas do possível e do impossível”[5].
 
Nessa perspectiva, a literatura seria “um lugar de encontro entre imagens e palavras, mas também um lugar de criação de imagens liberadas da fantasia superficial, um lugar para depuração e cristalização de imagens, onde elas adquirem definição e autossuficiência”[6].
Assim posto, passamos a refletir agora sobre esta tendência da literatura contemporânea em interseccionar linguagens, este fascínio por textos visuais e imagéticos tomados de empréstimo do cinema, da fotografia, da escultura, da pintura, mostrando o fecundo diálogo intertextual e intersemiótico que consiste na essência dessas obras. Especificamente nos deteremos na poesia em língua italiana de Prisca Agustoni, procurando notar como manifestações artísticas visuais são incorporadas, traduzidas, recriadas na sua escrita poética.
 A poeta Prisca Agustoni reside no Brasil, em Minas Gerais, desde 2002, é formada em Letras Espanhol e Filosofia, possui mestrado em Estudos de gênero, pela Universidade de Genebra e doutorado em Literatura comparada pela PUC-Minas. Sua intensa atividade literária é marcada pelo plurilinguismo: escreve em italiano, francês e português, também traduz poesia nestas línguas, é a principal tradutora do poeta suíço, de língua italiana Fabio Pusterla no Brasil. Desde 2008 é também professora de língua e literatura italianas na Universidade Federal de Juiz de Fora. Recentemente foi indicada ao prêmio Jabuti por seu volume de poesias escrito em português, mas com interferências de outras línguas, O mundo mutilado.
No início de 2020, durante o período de reclusão devido à pandemia de Covid-19,  Prisca decidiu participar de uma chamada para uma publicação de poesia em várias línguas que tivesse alguma relação com a Islândia, país em que seria publicada a revista. Visto que sempre teve muitas relações com as artes plásticas e visuais, a poeta fez uma pesquisa e entrou em contato com a obra da escultora islandesa Steinunn Thorarinsdóttir, e dessa pesquisa e contato nasceram sete poemas intitulados “Borders - Confini”.
As pesquisas de Prisca levaram a conhecer a instalação artística de Steinunn Thorarinsdóttir que consiste em 26 estátuas, 13 de bronze e 13 de aço e que, desde 1998, percorrem o mundo, sendo expostas em museus, galerias, praças e parques públicos. São figuras humanas, dorsos nus, sem rostos, mas que traduzem gestos, expressões e muitas delas transmitem sensações e sentimentos. Em geral expostas em pares, uma de bronze e outra de aço, muitas vezes uma em frente à outra, ou colocadas ao lado uma da outra em espaços inusitados, interagem com o público fruidor e com os espaços urbanos. As estátuas de aço, mais leves, cinza metálico, lembrando figuras de gelo e as de bronze, metal quente e pesado, lembrando também a terra. Quente e frio, terra e gelo, peso e leveza, qualidades expressas pelos materiais que servem de base para a escultura, tanto quanto para a escrita poética de Prisca Agustoni.
Das imagens esculpidas e expostas pelo mundo nascem os poemas de “Borders” – título que a poeta toma emprestado inclusive de algumas das mostras da escultora – poemas que retratam o processo fronteiriço de interação das estátuas com o público fruidor que as observa, tanto quanto descrevem o processo de humanização que estas figuras empreendem. Reportamos abaixo o primeiro desses poemas:

 

BORDERS – CONFINI

Dalle sculture di Steinunn Thorarinsdóttir

(Dag Hammarskjöld Plaza, NYC,2011)

 

sono ventisei corpi immobili

divisi da superfici di silenzio

 

l’anima s’è staccata e vaga

tra di loro, li esplora, persa,

 

li osserva come ci si guarda

animali in una gabbia aperta

 

tra lingue che ci sfiorano ma

schizzano via come autobus

in corsa, pieni di volti perenni

e senza storia, fissi cactus

 

in un deserto lacerante di voci.

 

O primeiro poema descreve as estátuas como vinte e seis corpos imóveis, dispostos de frente uns para os outros, distantes e separados pelo silêncio das salas e parques que os acolhem. Corpos de pura matéria, inertes, adormecidos, separados da alma, que perdidas, vagam transeuntes, observando os corpos fixos, aprisionados aos espaços das praças, dos museus e galerias. Corpos “cactos fixos”, sem história e destinados ao silêncio, mas perscrutadores, ouvintes, vigilantes no seu aparente sono eterno.
Estes corpos emudecidos, observados e observadores, entre os rostos curiosos dos passantes de vozes lancinantes que os circundam e ecoam no deserto das cidades, vão aos poucos despertando, na sucessão dos poemas, como se fossem, aos poucos, recebendo de volta no corpo inerte a “pequena alma” que vaga flutuante, numa espécie de movimento contrário ao do famoso poema do imperador Adriano[7].
Assim, se o primeiro poema descreve as frias e mudas estátuas sem alma, o segundo poema da série lhes devolve, em um movimento de aproximação, alguma “anima”, um pequeno lampejar. As estátuas andróginas de olhos e bocas fechadas guardam dentro de si suas raízes e línguas originárias, as antigas línguas congeladas, silenciosas, que se opõem ao burburinho movente das línguas vivas, babélicas – burburinho que simboliza o percorrer terras estrangeiras das estátuas imóveis.
Os corpos expostos horizontalmente vão aos poucos adquirindo um “cuore” fronteiriço, desejosos de sair do silêncio do frio islandês que os condiciona, para o calor dos gêisers, interagindo com o mundo babélico a sua volta. Aqui também uma alusão aos tempos do confinamento, ao emudecer das vozes diante das atrocidades da nossa realidade (especificamente, brasileira, que é o espaço em que a poeta reside enquanto escreve estes versos); o vocativo/imperativo nos versos “voi, attorno, siate una bufera di parole”, conclama o público a re-agir, as estátuas silenciosas ainda não podem gritar, mas os passantes sim, então elas suplicam àqueles ao redor que sejam “tempestade de palavras”, que rompam o espelho, que transbordem como um gêiser que explode, dando vida ou trazendo de volta à vida:
 

siamo frontiere invisibili

borders between tongues

and roots

 

abbiamo occhi androgeni

e bocche chiuse dove dentro

congelano lingue antiche

 

ma voi, attorno, siate

una bufera di parole

che incrinino lo specchio

 

o una futura babele

orizzontale, un confine

di cuore che deborda

 

un geiser che esplode

 
Esse leve e constante movimento, descrito na passagem do primeiro ao segundo poema, aparece também representado na forma dos poemas, que se alternam entre cinco estrofes de dois versos e quatro de três versos, imprimindo um ligeiro e contínuo fluxo rítmico entre um poema e outro. Esse movimento parece acentuar cada vez mais a tentativa da poeta de “dar vida” às estátuas, humanizar as figuras, intenção contida também na instalação da artista islandesa, tornando as estátuas parte do cenário cotidianos dos fruidores, obrigando-os a interagir, ainda que de forma não perceptível[8].
O “dar vida” e constante humanizar das estátuas é expresso também pelo verso inicial de cada poema: se no primeiro poema a poeta apenas descreve as estátuas, “sono ventisei corpi immobili”, do segundo poema em diante, as estátuas ganham alma, pensamento, voz, palavras, são sujeitos que se autodescrevem, se percebem, desejosos de ver, sentir, pensar: “siamo frontiere invisibili” (segundo poema), “siamo forse solo anime” (3º.), “abitiamo il pensiero”(4º.).
As estátuas de almas e línguas congeladas, no terceiro poema, já despertas, tomam consciência de si, percebem-se como “almas aprisionadas ao metal”, tentam se decifrar, reaver sua forma original, talvez suas asas, talvez o espírito:
 

Siamo forse solo anime

inchiodate nel ferro

 

le braccia che penzolano

dal tronco vertebrale

 

la cifra della specie

nel peso del metallo

 

desiderose di riavere

le ali che precedono

 

la traccia originale, 

la cicatrice o la luce

 

che ci univa e ci separava,

oggi, silenziosi ed erranti

 

entriamo nello specchio

o in una seconda morte

 
Embora nítido o diálogo com a cultura nórdica contemporânea, representado pela “transposição” das estátuas para a linguagem poética, os poemas ecoam também mitos da cultura clássica, o mito do Andrógino de Platão sobre a separação das almas, o ser uno que se duplica e se procura – duplicidade também resgatada pela exposição especular das figuras, que colocadas muitas vezes em pares, uma de frente para a outra, se refletem e se reclamam, unidas mas separadas, silenciosas e errantes, refletindo-se narcisicamente num espelho –  referência a outro mito clássico presente nos versos finais do terceiro poema, em que os seres desejosos das formas originárias, “as asas”, “a cicatriz ou a luz”, entram no espelho ou se precipitam numa “segunda morte”.
As estátuas de Thorarinsdóttir parecem confluir, na poesia de Prisca Agustoni, em direção a uma cosmogonia, uma busca pela origem empreendida pela palavra poética, pela força da palavra que nomeada, ou melhor, escrita, traz em si a própria manifestação do ser mítico. É a força da palavra que dá a vida a esses seres imóveis e fixos.
Outro tema importante que perpassa os poemas é o das fronteiras invisíveis, talvez porque já presente nas instalações artísticas que percorreram vários países, interagindo com outras culturas e percepções do mundo, talvez porque também ressoem os versos do volume O mundo mutilado, publicado em 2020, livro que também tematiza as fronteiras geográficas e linguísticas, os confins entre as línguas e suas origens, mesclando a arte poética à história pessoal da poeta.
Em “Borders” as fronteiras entre os corpos de metal e seus fruidores propostas pelas instalações da escultora islandesa são retomadas na e pela linguagem, representando os limiares entre o real e a invenção, as intersecções entre as linguagens, o diálogo intersemiótico que se estabelece entre a escultura e a poesia. Nas instalações artísticas, as estátuas se emocionam, às vezes parecem rir e brincar descontraídas, e outras se desesperam juntas de seus observadores.
Já no texto poético, elas habitam o pensamento dos homens, como se habitassem as fronteiras entre a terra e o mar. No cotidiano apressado, as estátuas confusas ou brincalhonas ganham vida, despertando entre os passos apressados do dia-a-dia, para o rumor brejeiro das crianças, para o olhar distante e às vezes desdenhoso dos adultos, para a sem pressa dos velhos sentados nos bancos das praças e perdidos nos vãos da memória.
Na poesia, essa memória traz a tona os elementos do abandono, da vida que se dissipa e se perde no trânsito, no correr das ruas. E nessa confusão incessante dos dias urbanos, passado e presente parecem convergir para um futuro catastrófico: as estátuas-despertas se perguntam, no quarto poema, se são elas as ruínas sobreviventes do passado, “la rovina emersa dal sasso”, ou a vida que precede o constante desastre por vir. Inquietações tão humanas quanto o próprio passar do tempo:

 

Abitiamo il pensiero

come si abita il confine

tra la terra e il mare

 

o l’unghia di sole

che lenta smangia l’ombra

e traslucida matura

 

rivelando la memoria

smerlata, piena

degli elementi dell’abbandono

 

: siamo la rovina

emersa dal sasso o la vita

che precede il disastro?

 
Habitadas, preenchidas pela força das palavras “dromedárias”, “pré-históricas”, originárias, as estátuas-palavras migram e percorrem outras terras, descem do norte em direção ao deserto, esses “irmãos de ferro” e “de neve”, peregrinam com seu desejo constante de comunhão com o universo:

 

parole dromedarie

preistoriche

migrano assieme alla gente

 

scendono dai fiordi del nord

o dai cardi delle alpi

e vanno lungo il deserto

 

vichinghi o tuareg

 

fratelli di ferro o di neve

pellegrini di noi stessi

 

confine tra ciò che brilla

e ciò che brucia

 

No lento movimento de despertar das estátuas, cada poema é um passo adiante, como a própria vida que nasce a cada instante – assim a poeta tenta traduzir, recriar, reescrever em outra linguagem, em várias línguas, esse caminhar das estátuas. Os últimos dois poemas mostram a versatilidade com que a poeta transita de uma língua a outra, o exercício plurilíngue, as infinitas possibilidades e combinações do ato poético e criativo. 

 

siamo ventisei corpi tutti uguali

e diversi, nati dalla stessa madre

 

we are brothers among fires

and burned borders:

 

do you know me?

 

can you spell my soul

or smell my skin?

 

abitiamo il lungo sonno

della balena del nord

che resiste oltre il nostro passo

 

do we share a common hunger

and a shelter

as a dog between dogs?

 

Esses corpos iguais, nascidos da mesma mãe, irmãos de/entre fronteiras, que queimam, ardem, buscam a comunhão das almas e sentir o cheiro da pele. Migrantes ou nômades peregrinam em busca de um lugar “onde estar”, onde permanecer, “onde florir”. O último dos poemas traz essa confluência para a natureza mítica, o encontro com a terra, a floresta ferida, floresta mãe, que tudo acolhe. A imagem da clareira segura, protegida, enquanto tudo ao redor é furor e “raízes babélicas” em chamas.

 

intuire tra gli strati morbidi

d’alluminio

e nei muscoli del ferro

 

che la foresta è un cratere

una lunga ferita

che lenta rimargina

 

sou filho de uma terra

onde ouvimos as palavras

    das árvores

 

il verde e il bianco

sono dei luoghi

dove sostare

dove fiorire

 

     clareiras

mentre attorno il furore

e radici babeliche

infiammano

 

No andar dos poemas, percebemos esse componente narrativo, que busca retratar o movimento de “dar vida” a seres imóveis e a busca constante destes por “mais vida”, numa alegoria da vida humana que se vê refletida nessas estátuas, imagens especulares e quase caricata de nós mesmos, das vicissitudes que nos constituem, das fronteiras que nos habitam. Em seu retorno à vida, em seu lento caminhar e conhecer, elas procuram resgatar as origens, as raízes babélicas que constituem o ser e também a poesia, numa confluência para o ser mítico e a poesia originária.
A busca da completude assim representada em uma poesia que envolve o leitor, que articula linguagens e expressões artísticas diversas, que mostra o poder da palavra e a força da imagem poética. 
 
 
Referências:
 
AGUSTONI, P.“Borders/Confini”. In: Ós - The Journal, no. 5, Reykjavík, Iceland: Ós Pressan, 2021.
____________ Sete exercícios de escrita a partir do vazio. In: Língua-Lugar: Literatura. História. Estudos Culturais. no.2. Universidade de Genebra,  2020.
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
SCHOLLHAMMER, K. E. Além do visível; o olhar da literatura. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
 
Site da artista: https://www.steinunnth.com/

                       

Como citar: SALATINI, Erica. "Das fronteiras invisíveis: as artes visuais na poesia de Prisca Agustoni". In "Revista de Literatura Italiana", v. 3, n. 1, jan-abr, 2022.  Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/234476

                                                                                    



[1] ÓS, The Journal, no. 5, Reykjavík, Iceland: Ós Pressan, 2021.  As poesias serão publicadas em português, em breve, pela editora Urutau.
[2] CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 110.
[3] SCHOLLHAMMER, K. E. Além do visível; o olhar da literatura. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p.7.
[4] SCHOLLHAMMER, cit., p.10.
[5] CALVINO, cit., p.107.
[6] SCHOLLHAMMER, cit., p. 10.
[7] No que é considerado o último poema do Imperador romano Adriano (76-138 D.C.) encontramos o verso “Animula vagula, blandula”.
[8] Remeto ao site da artista onde é possível visualizar fotos das estátuas em suas interações com os fruidores: https://www.steinunnth.com/