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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Ignazio Silone
Rafael Reginato Moura
em
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Imagem: pxhere.com |
Il
segreto di Luca, romance publicado por Ignazio Silone em
1956, obteve o reconhecimento crítico positivo na Itália que o autor de Fontamara e Pane e Vino (e depois Vino e
Pane) ainda não havia alcançado em seu país. Silone, por esta altura, já
havia retornado do exílio de mais de dezessete anos na Suíça por conta do
regime fascista italiano e reingressado no Partido Socialista Italiano, pelo
qual havia sido eleito deputado em 1944 e participado da Assembleia
Constituinte em 1946. As marcas do exílio, do assassinato brutal do irmão
caçula Romolo Tranquilli na prisão fascista e da perseguição política sofrida
durante anos, inclusive sendo monitorado quando estava já fora do país,
deixaram marcas na personalidade do escritor. Vittoriano Esposito relembra, em
entrevista, de um encontro ocorrido na metade da década de 1940, quando ainda
era adolescente, com o escritor abrucês, na oportunidade retornado do exílio há
mais de um ano. A conversa ocorrida na casa de Agostino Carusi na cidade de
Celano envolvia outras pessoas e a presença de Silone causou grave impressão no
jovem ouvinte: “Durante a conversa, os silêncios de Silone me chamaram mais
atenção do que as suas palavras. Em seu semblante liam-se os evidentes sinais
de tormento[1]”.
O silêncio de Silone, o seu olhar distante e penetrante, responde, na mesma
medida, ao silêncio da crítica italiana em relação às suas primeiras obras,
ainda que já consagradas em outros países, à distância de sua terra natal por
mais de uma década de sofrimento, à desilusão política, à luta antifascista que
roubou preciosos anos de sua vida e de sua saúde.
Luca Sabatini, antigo cafone que nas primeiras páginas de Il Segreto di Luca chega andrajoso à
pequena cidade de Cisterna, carrega consigo um silêncio profundo. Septuagenário,
Luca está retornando ao povoado, após mais de 40 anos de ausência, e encontra a
terra agreste, tomada de arbustos, as ruas desertas, desabitadas, as portas e
janelas cerradas, silenciosas. A primeira pessoa que o vê chegar à cidade,
ainda no atalho pedregoso de acesso, é uma jovem camponesa. Ao perguntar sobre
a procedência do miserável velho, ela apenas recebe como resposta o seu
silêncio. E assim, em silêncio, Luca responderá ainda a outros personagens,
curiosos com seu retorno. Mesmo diante de um recíproco admirador, Andrea
Cipriani, filho do melhor amigo de seu pai e que também ficara preso por 12
anos como revolucionário partigiano, Luca
repete a mesma reação silenciosa às perguntas do interlocutor: “Por que você
não se defendeu durante o processo de acusação?[2]”, “Por que não quis
revelar onde passou a noite do delito?[3]” O silêncio de Luca é o seu
segredo, sua maneira de elaborar a dor, mesmo a do luto pela morte de Teresa,
sua mãe, enquanto se manteve mais de quatro décadas inocentemente preso. É
Andrea Cipriani quem revelará um outro segredo: quando criança, encarregou-se
de escrever cartas para Luca na prisão, a pedido de sua mãe e passando-se por ela.
A mãe analfabeta somente podia se comunicar com o filho por intermédio de
Andrea Cipriani. O silêncio das palavras da mãe é transposto ao papel pela
criança em formação, espécie de tradução do mundo adulto, do drama familiar, da
injustiça dos homens. É um silêncio materno estranhamente conivente porque sabe
da inocência do filho, mas entende que a condenação ao ergastolo[4]
preserva a escrita de seu destino, como um pecado não cometido pelo qual,
ainda assim, deve purgar. O contorno religioso, rígido à escrita do destino, à
purificação do martírio, pode ser lido pela maneira como a mãe iletrada assinava
as cartas que a criança Andrea escrevia ao filho detido: assinalando no papel uma
pequena cruz. O destino do ergastolo apenas
será alterado pela confissão de outro velho da cidade, já às portas da morte,
admitindo ter assassinado um homem na estrada de Avezzano, crime pelo qual Luca
injustamente pagara.
O silêncio também se
alastrará sobre todos os que Andrea Cipriani, retornado a Cisterna para receber
uma homenagem do poder municipal, procurará interrogar na região. Num primeiro
momento, é como se todos os antigos moradores respeitassem o desejo de um
inocente em não se manifestar, mesmo quando esteve diante do júri, sobre os
fatos ocorridos na noite do crime. Porque não se encontrava dentro de sua casa
quando o infortúnio ocorreu, Luca tornou-se automaticamente à época o único suspeito.
É Gelsomina, prima da falecida Lauretta, namorada de Luca à época do crime,
quem revelará a Andrea alguns detalhes sobre o condenado: “Era uma jovem sério,
bem estimado, mas fechado[5]”. Gelsomina ainda o
descreverá como taciturno, reservado e pensativo, o que lhe garantia a simpatia
da família da namorada. O silêncio de Luca, no entanto, revelar-se-á como
resignação religiosa perante um amor impossível por Ortensia, a bela sobrinha
de Agnese. Dali em diante, mesmo tendo sido prometido a Lauretta, Luca
silenciará. Percebendo-o atormentado e deprimido em seu silêncio, Ortensia, a
esta altura já casada com don Silvio, proporá à família dele que encontre uma
esposa, já que nem mesmo a emigração de Luca para outro país garantiria a sua
paz. A certa altura, como forma de livrar Ortensia daquele amor proibido e Luca
de seu tormento silencioso, o padre don Serafino lança a revelação: “A prisão
perpétua era uma saída[6]”.
O pacto silencioso pelo ergastolo é estabelecido entre Luca e
todos os demais moradores da região. Sabedores de sua inocência, familiares,
amigos e moradores não testemunharão a seu favor, respeitando o silêncio de
Luca que rechaçou qualquer defesa no processo. O amor proibido de Ortensia
somente poderá ser reconhecido após o ergastolo
dela também. Depois da condenação voluntária de Luca por amá-la perdidamente,
Ortensia decide passar o resto de sua vida num monastério: “Agora não poderei
mais viver sem pensar nele. Há histórias de homens que aceitaram a morte pelo
próprio amor; mas Luca fez muito mais do que isso. A prisão perpétua é mais do
que a morte. A morte dura um átimo e requer uma coragem momentânea; a prisão
perpétua é uma existência”.
Dedicar o restante de sua
vida ao monastério, como ergastolo, prisão
perpétua, também é maneira de encerrar-se no próprio silêncio. Ortensia escolhe
religiosamente o mesmo destino que Luca, o único possível, o que se aproxima de
uma contemplação diária da morte, de uma morte vivida todos os dias. Se é o
átimo dessa existência - o segundo que antecede a morte, o instante que reúne
toda a angústia e sofrimento, todos os tempos e experiências de uma vida em
rememoração – que, ao fim ao cabo, importará, o ergastolo apresenta-se então como lugar de elaboração ontológica,
do pensamento radical da morte revolvendo-se a cada dia. A morte em vida é
também afasia, silêncio entranhando-se nas rasuras do pensamento. A morte e, no
caso de Il segreto di Luca, o ergastolo, abrem-se a relações dentro de
um espaço estético, inauguram no romance um phatos
do pensamento, como aponta Franco Rella.
O esquecimento das palavras, seu silenciamento, pode refulgir como
pensamento ou gesto artístico, literário: “Qual é então a tarefa da arte? [...]
é a de dar figura àquilo que não tem expressão [...] testemunhar o mundo, mas
também a destruição das palavras que falam o mundo, testemunhar, portanto, a
afasia do mundo[7]”.
Em sua visita ao monastério onde viveu Ortensia para investigar o segredo que
escondia a condenação de Luca, Andrea Cipriani recebe da abadessa a informação
de que Ortensia, em seus últimos anos, havia perdido o movimento das pernas e
passava o tempo bordando e escrevendo nas páginas de um diário íntimo. A madre
abadessa ainda acrescenta: “Escrevia com grande lentidão, refletindo às vezes
dias inteiros sobre uma palavra ou sobre uma frase curta. Sentindo-se morrer,
obtém do confessor a permissão de deixar comigo um certo número de páginas de
seu diário. ‘São para Luca’, me disse”[8]. O silêncio torna-se
escrita, demora artesã em busca da forma perfeita, lapidação e lápide, phatos do pensamento, maneira de se
comunicar com o ser amado. Confissão amorosa, portanto, mas que vaticina o
porvir. A ponte silenciosamente afásica entre o ergastolo e o monastério somente se abrirá em palavras muitos anos
após, depois de Ortensia já morta, depois que Luca saísse da prisão inocentado,
depois que Andrea entregasse a ele as cartas escritas no claustro. Abertura e
fechamento, liberdade e claustro, vida e morte, amor e silêncio, reúnem-se num
átimo. O gesto de escrever no cárcere, onde Luca troca cartas com a mãe (e com
a criança em formação Andrea), repete-se em Ortensia como memória, diário
íntimo do que viveu enquanto amor. É assim que o padre don Serafino, ao se
aproximar da porta entreaberta do quarto de Luca e vê-lo sentado como uma
criança lendo as cartas de Ortensia, os olhos banhados em lágrimas, perceberá a
sua felicidade convulsa e falará ao velho cafone
ex-prisioneiro: “Não acredite que um instante de felicidade seja pouco. A
felicidade existe somente sob a forma de átimos[9]”.
Se a morte atrita a vida, o ergastolo enquanto espaço improvável
contém em Il segreto di Luca o átimo
do amor, maneira de salvar-se do rancor, da resignação, da opressão de classe, dos
presságios de uma natureza humana que, embora sob o signo da fé cristã,
católica, pode encobrir até mesmo aquilo que Umberto Eco denominou de “fascismo
eterno” e que, na Itália Meridional, agrária, campesina, pobre e arruinada,
encontrou eco numa mentalidade que, a despeito de sua ancestralidade mágica,
conservou a contradição puritana e, por vezes, mascarada. Nas últimas páginas
do romance, enquanto se despedem um do outro, Luca confessa a Andrea a sua
inocência, jamais compreendida ou aceita num lugar como Cisterna:
“Que eu não fosse um assassino”
disse Luca “acho que todos aqui sabiam, à exceção dos policiais. Como poderia
explicar, de outra forma, o rancor que os velhos daqui ainda hoje sentem por
mim? Você sabia que, na época da última bandidagem[10] (eu recordo bem porque já
era jovem) muitos homens daqui procuraram esconderijos para si e cometeram
assaltos e homicídios: e, mesmo assim, a maioria da população simpatizava com
eles. Mas o meu delito, aos olhos dos moradores daqui, era de outro gênero,
muito pior”[11].
Como citar: MOURA, Rafael Reginato. " O silêncio de Luca: do ergastolo à secreta afasia". In "Revista de Literatura Italiana", v. 3, n. 2, mai-ago, 2022. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/239902
[1]
PETERLE, Patricia.
“Testemunho de um encontro e de leituras – entrevista a Vittoriano Esposito –
Patricia Peterle”. In: Ignazio Silone:
ontem e hoje. Niterói, RJ: 2010, p. 99.
[2]
SILONE, Ignazio. Il segreto di Luca. Milano: Arnoldo
Mondadori Editore, 1956, p. 60 – tradução minha. Texto original: “Perchè non ti
difendesti al processo?”
[3]
Idem, p. 60 – tradução
minha. Texto original: “Perchè rifiutasti di rivelare dove passati la notte del
delito?”
[4]
O advento do ergastolo (prisão perpétua, em
português) é recorrente na obra de Ignazio Silone. Em Fontamara, seu romance de estreia, a paisagem montanhosa e árida
que circunda a aldeia imaginária dos cafoni
como um anfiteatro a céu aberto representa um espaço sem saída, assim como
suas vidas condenadas à opressão, à injustiça, à miséria e aos dias sempre
iguais também se apresentam como um ergastolo.
Não se pode furtar aqui de comparar tal situação à experiência de Silone no
exílio por mais de uma década, condenado a viver longe de sua terra natal,
assim como seu contato político que já vislumbrava um aprisionamento
conjuntural entre os totalitarismos negro do fascismo italiano e vermelho do
estalinismo, os quais necessitou ingloriamente combater. O ergastolo siloniano se desvela como angústia do tempo, o passado
trágico pela perda de entes queridos, a solidão indecifrável, a desilusão
elaborada como a que o levou ao sanatório de Davos, mas também à escrita
literária salvífica, curadora. Silone viveu seu destino como um ergastolo, sua vida como tentativa
desesperada de encontrar uma uscita di
sicurezza.
[5]
SILONE, op. cit., p. 126 –
tradução minha. Texto original: “Era un ragazzo serio, ritenuto, chiuso”.
[6]
Idem, p. 152 – tradução
minha. Texto original: “L’ergastolo era una via d’uscita”.
[7]
RELLA, Franco. Limiares: entre arte e filosofia. Trad.
Andrea Santurbano e Patricia Peterle. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2021, p.
21.
[8] SILONE, op. cit., p. 167 –
tradução minha. Texto original: “Scriveva con grandissima lenteza, riflettendo
talvolta giornate intere su una parola o su una breve frase. Sentendosi morire,
ottene dal confessore di poter lasciare a me un certo numero di pagine del suo
diario. ‘Sono per Luca’ mi disse”.
[9] Idem, p. 172 – tradução minha.
Texto original: “Non credere mica che un instante di felicità sia poco. La
felicità esiste solo sotto forma di attimi”.
[10] A referência aos “bandidos” é
recorrente na cultura meridional da Itália, angariando muitas vezes a simpatia
dos camponeses oprimidos e tornando-se lendários ou míticos dentro da mundividência
campesina. Em
Cristo parou em Eboli, Carlo Levi, ao
observar o modo de ver dos camponeses da Lucânia (hoje Basilicata), faz
diversas alusões aos “bandidos” que em tempos remotos perambulavam por aquelas
aldeias e povoados.
[11] SILONE, op. cit., p. 192 –
tradução minha. Texto original: “Che io non fossi un assassino” disse Luca
“credo che qui lo sapessero tutti, a eccezione, s’intende, dei caribinieri.
Come si spiegherebbe altrimenti il rancore che i vecchi ancora oggi mi portano?
Devi sapere che, all’epoca dell’ultimo brigantaggio (me ne recordo bene perchè
ero già un ragazzo) anche un paio d’uomini di qui si diedero alla macchia e
commisero grassazioni e omicidi: ebbene, la maggioranza della popolazione
simpatizzava con essi. Ma il mio delitto, agli occhi dei paesani, era d’altro
genere, assai peggiore”.
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