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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Eugenio De Signoribus
Lucia Wataghin
poesia contemporânea
em
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Sante sono le terre
ai pellegrini smante
(Eugenio De Signoribus, Ronda dei conversi)
(“noi non visti, colpiti spettatori,
battitori di pugni dentro l´acqua,
lottatori mai usciti dagli asili...”)
(Eugenio De Signoribus, Istmi e chiuse)
Cada vez mais, com o
passar dos anos, a poesia de Eugenio De Signoribus pode ser lida a partir da
ideia da santidade do acolhimento ao peregrino e ao expatriado (mas note-se que
as terras da epígrafe são smante, abertas
e ao mesmo tempo despojadas) e, outro lado da mesma moeda, do incessante
empenho no desmascaramento e na denúncia do mal. Eugenio De Signoribus (Cupra
Marittima, 1947) é (e não só) um poeta civil, considerado o maior de sua
geração[1], e
político, pelo seu alarmado testemunho, que acolhe razões do protesto
anticapitalista, numa tradição que conta nomes como Rebora, Fortini, Volponi[2] e,
certamente, Pasolini. Em tempos que nos parecem atingir o cume das violações de
toda e qualquer humanidade, De Signoribus se apresenta como “testemunha do
humano contra o desumano”[3], expondo intensamente
seu “assíduo estado de estupor moral”[4] diante
dos horrores da história contemporânea. Seu olhar é amplo, mas é um olhar de
perto, do mundo interior e da experiência do quotidiano – que inclui,
evidentemente, o assédio de telas, telões e jornais – um olhar bem ilustrado
pelos versos de Boris Pasternak: “Meus caros, qual milênio / está agora no nosso quintal?”, versos que o
poeta escolheu como epígrafe do seu Istmi
e chiuse [Istmos e barragens]. É a história contemporânea que temos diante
dos olhos, mas há também a clara visão de um tempo maior, o tempo do “ignóbil
século dos séculos”, ou seja, o horror de sempre - pois a história é “um
escândalo que dura há dez mil anos”, como diz um título de Elsa Morante. Pode-se,
em outra perspectiva, “ignorar o coro temporâneo / e escutar o inverno subterrâneo”[5],
de todas as gerações, dos vivos e dos mortos.
Nenhum
corpo é elementar, coletânea pensada especialmente para a
edição brasileira, bilíngue, contém a tradução de Nessun luogo è elementare, livro
publicado primeiro na França, em 2017, e somente em 2020 na Itália, do qual retoma o título
com uma variação, que enfatiza o corpo,
e não mais o lugar; corpos são os
infelizes protagonistas das prosas poéticas dedicadas à “exposição dos corpos”
e dos textos finais, “Dos poços exteriores”, terrível catálogo das formas de
martírio do mundo contemporâneo. O livro apresenta
uma fisionomia diferente do resto da produção de De Signoribus, que costuma alternar
poesia versificada e os que definiu “versos, não-versos e quase prosas”[6], mas oferece
aqui, prevalentemente, prosas poéticas, muitas das quais (as que correspondem à
última seção), compostas nos primeiros meses de 2020. Além dessa produção mais
recente de prosas e da tradução de Nessun
luogo è elementare, com poucas variações, o volume inclui o belíssimo Limiares genoveses, seção de Veglie genovesi [Vigílias genovesas] (2013).
Na presente, nova coletânea, a poesia ou prosa de De Signoribus se presta à
forma de pessoais abecedários, – listas do delinquir e dos delitos dos “muitos
civis perseguidores” da humanidade inerme, denúncia programática dos males e
das responsabilidades de cada um: poesia onde “mundo inospital” rima com
“criminal”, onde “a dobra” da ferida do mundo é “dolosa”. Mas compõe também listas
das possibilidades de escuta, de um “sentir criatural” (entristecer-se), que o poeta encontra, na linha de outra, antiga,
tradição, na sensibilidade infantil: capacidade de sentir, enfurecer-se,
maravilhar-se, falar, colorir, dolorosamente conexas à condição de inermidade
peculiar das crianças (“nós não vistos, golpeados espectadores, / batedores de
golpes na água / lutadores que nunca saíram dos jardins de infância...” (secundária)[7].
De Signoribus lê a história nas formas precisas da violência, da indiferença,
da traição, do descomprometimento, num estado de completa consternação, sem
defesa, pela espreitadeira da porta de casa, pelas brechas do limiar entre
dentro e fora (“se
fechou prudente no fortim / e não abre, espia pela espreitadeira / a horrenda torta
cara do mundo” (mutações)[8]. A condição humana e ética do poeta é a
inermidade, que percebemos associada, por sua vez, à ideia fundamental de casa, construída desde seu primeiro
livro, Case perdute (1976-1985), e
que se articula em múltiplos e variáveis pontos de vista[9]. A casa,
diz De Signoribus na já citada entrevista a Peterle e Santi, é para ele o lugar
“do ouvir e da espera”; é um lugar “di
chiara sosta” (de clara pausa) que pode, talvez, ser vislumbrado após um
tortuoso caminho (quem sabe): é da
soleira, do limiar, que parte o olhar, oscilando entre introversão e
extroversão, busca dentro de si e abertura para o outro. Mas é necessário, diz
o poeta, “transpor o limiar com o estranho, o invísivel... para, depois,
reentrar naquela nudez, para retomar corpo e dar em testemunho”[10]. É a
casa-fortim, e ao mesmo tempo prisão (Zublena), o novo prédio de detenção (Desterro),
construído pela obra selvagem de cimentificação que cobre as velhas casas (falar ainda), é uma das moradias seriais (deslocamento) que invadem
o mundo; é a casa sempre ameaçada, em que se lê a história “escrita com
caligrafias grosseiras / em datas de deflorações e outras passagens corruptas”[11]. E
finalmente, grande tema desse livro, a não-casa dos sem teto, dos emigrantes,
expatriados, exilados, dos famintos e dos excluídos, dos inermes. São figuras
da inermidade, no vocabulário bíblico-alegórico que se instala
progressivamente, cada vez mais, na linguagem de De Signoribus, o agnus mundi[12]
e o novo Abel, o que foi “salvado do homem violento”[13] e que
levanta, orando, sua casa, para em seguida derrubá-la, orando, e se oferecendo
a uma “pátria diferente”. É na casa,
onde o eu nunca cresceu, ou talvez, sim, cresceu, que se forma o sentimento da
inermidade, que oscila entre fechamento e abertura, dentro e fora, numa
contração rítmica, sístole e diástole do respiro, história e possibilidade de
resgate: “aqui, onde cresci/ é a
inermidade / a balança do respiro / a batida do nutrimento: /
ora se tornando raiz / ora vendo além / entre utopia e arrependimento (Aqui cresci?)
Dessa posição declarada de sensível inermidade, o eu se dissolve em outros – eles, nós, tu, você, vocês –, torna-se “sujeito plural de uma autobiografia”[14]
(quantas vezes a palavra “coro” aparece nessa poesia), e o “não pertencer se
torna princípio de responsabilidade”[15].
E é de um olhar impessoal, ou coletivo, que invenções lexicais, deslizamentos
de sentido e de uso das palavras – que muito exigiram do olhar atento da
tradutora – se
tornam juízos lapidários e impiedosos, compondo um detalhado e terrível vocabulário
do mal, “temporâneo” e universal: “os muitos civis algozes” (Atravessar) “sub-aranhas,
solertes, surdas, servis” (O assédio), “o guardião das próprias propriedades” (Limpar); “os não-homens de honra, os salvadores de uma não-moral” (apedrejar); as “sociedades
alpinistas” (Atravessar); “o traidor
dos justos e premiador dos servos”, que “merece ser visto” (A espera), os “de aqui” (Atravessar) (essa última categoria
compreende também os inermes cidadãos desse mundo hostil). A denúncia pode ocorrer,
incisivamente, pela nomeação exaustiva das formas do mal, dadas em formas
impessoais: atravessar (os mortos no Mediterrâneo), punir (execuções, lapidações), vigília
(o “nervoso verão de 2001”, que precede a grande enchente de novembro, em
Gênova), vivere! (os não-lugares dos povos
famintos), pôr-se à espreita (para
achar docilmente um lugar, segurança, um trabalho); controlar (o destino comum é o abate); com acentos sempre nas
responsabilidades individuais, do sacro
bove (o trabalho e a submissão) e do sacro
boia (o sagrado algoz), olhando para como se vive do lado de quem deve atravessar e do lado de quem escolhe
punir, executar, assassinar. As prosas mais recentes fecham o livro com mais um
abecedário do mal, visão do inferno na terra, visto dos
poços externos do inferno: cortar as
gargantas, lapidar, explorar, queimar, bombardear, chutar, envenenar. O final
é catastrófico: “que ninguém torne mais!”.
O polo positivo, nessa visão do mundo, é o apelo à fraternidade, que inclui
abertura e despojamento. A longa meditação sobre o mal, um Deus
silencioso e invisível e Cristo e Maria, contudo, misericordiosos, se
desenvolve no terreno bíblico nos textos das Stazioni [Estações], 2018)
e nos recentes Trinità dell´esodo (2011) [Trindade
do êxodo] e L´altra passione. Giuda: il tradimento necessario? (2020) [A outra paixão. Judas: a traição
necessária?] Na nota-de-despedida
desse último livro, há uma definição de inermidade: “melhor um ato
não-violento, melhor sofrer do que tramar, esperando a crise do violento, que
se arrependa...”, embora não pareça suficiente o simples “desaparecimento” do
eu de toda “assembleia desumana”. Mas a nota do poeta, que se declara culpado
do pecado do desespero, acrescenta que ele é incapaz de conceder perdão, na
ausência do arrependimento, da reparação do mal.
Em primeira pessoa, com acento na raiz autobiográfica dessa poesia/prosa, é
incluída em Nenhum corpo é elementar, uma
belíssima seção aberta ao mundo privado, Sonhos,
composta de cinco prosas e dois poemas, imersa na dimensão de um espaço
protegido pelo sono, mas também cheio de angústia, de onde se cria um mundo
sombrio de estranhos diálogos, convocações à responsabilidade,
contos-parábolas, encontros com os mortos, narrações de medos, perdas e
impotência, em que se misturam acentos capronianos e kafkianos e se alternam
medo, incerteza e promessas de redenção. Se um dos grandes temas dos sonhos é o
medo da perda da palavra, é o falar sem voz, falar a um Deus que não escuta e
não responde, as vozes dos mortos, em primeira pessoa (uma referência talvez ao
Spoon River), são extraordinariamente
eloquentes: “– a mais dura vergonha me esmagou –/– a cólera é que me dilaniou
–/– a onda piedosa me afogou –”.
Aberta ao espaço do eu e
composta em boa parte em primeira pessoa é também a seção Limiares genoveses (6 prosas e 1 poesia), já parte do livro Veglie genovesi (2013) [Vigílias genovesas]; esse último
compreende também Tavole genovesi [Paineis
genoveses], publicadas anteriormente
na coletânea Principio del giorno (Garzanti,
2000). Stefano Verdino observa que Veglie
genovesi oferece quase uma nova perspectiva do “tema originário da casa”, ao
mesmo tempo “fronteira ameaçada” (Bandini)” e “primo asilo” [primeiro abrigo][16]; Gênova
se apresenta como o lugar do conforto da amizade e da hospitalidade, mas também
como ponto de acesso às percepções que De Signoribus oferece – como homenagem
aos amigos lígures –, juntando “as malhas” da rede, ao “coro obscuro e
iluminado” da cidade.[17] É uma
visão “de meio-sono”[18], –
aberta às mais íntimas solicitações da imaginação e da memória, do sono e dos
sonhos – especialmente em “Soglie genovesi”, cujo outro grande tema é a
dificuldade, as possibilidades e a ética do dizer. Limiares genoveses se somam ao magnífico panorama genovês que De
Signoribus desenhou em décadas de frequentação da cidade e também do intenso
repertório de versos e imagens dedicados a Gênova por outros poetas[19]. Gênova é,
naturalmente, também o que se vê em qualquer outro lugar: “véus de outras
presenças, desvelamentos / maçanetas,
buracos negros, bitolas, / nucas do dia, rampa”
(“ao velejar na água-marinha”, Tavole
genovesi), mas sua especial fisionomia é traçada numa rede de referências a
Caproni, Montale, Campana, retomando e enriquecendo o imaginário da Gênova
vertical, labiríntica, “plateal”, numa língua riquíssima, especialmente em Tavole genovesi, de dantismos e
neologismos. Em Limiares genoveses, há
uma Gênova das relações com os amigos, com seus ambientes, como Balbi sei, sede dos institutos de Letras
(já celebrada, em versos, com título diferente, via Balbi di lumi luccicanti, em Tavole genovesi), e o Caffè degli Specchi, já cantado por Dino
Campana, o Porto antigo, museus, monumentos, antigos palácios hoje abertos a
visitas; essa é ocasião de saídas, desvelamentos, revelações, meditações,
sonhos, hesitações, tentações de condescendência, sutis observações. E há
outra, de perfis visuais fascinantes e angustiantes, a Gênova dos rios
subterrâneos que, engasgados nas enchentes, arrastam todas as coisas,
apocalipses que falam “a língua não vigiada da natureza”, a Gênova da Torre dos
Serra, da qual se vê a cidade vertical de Campana e Caproni, “subir como uma
parede de quinto grau”, e, ainda, a mesma torre dos Serra, assim como um certo hotel
que o hospedou, labirintos de escadas, andares, passagens secretas, saídas
cegas, lugares de surpresas e desorientação.
É dedicada também a
Gênova, na primeira seção desse livro, occupare,
sombria representação de uma praça genovesa ocupada pelas forças policiais durante a reunião dos G8, em 2001; a
praça e o prédio que a domina parecem se mover, querer retroceder diante das
figuras armadas e mascaradas que a vigiam; se destaca aqui o predador maior,
“aquele que pensa pela sua brava gente, o boi sagrado ou o algoz sagrado que
todo lugar desfaz...”. Volta aqui a dimensão política, que ocupa tão
intensamente a poesia mais recente de De Signoribus. Na história do mal, não é
sem relevância que os fatos daquele G8, os mais espantosos episódios da história
recente da cidade, permanecem impunes.
Como citar: WATAGHIN, Lucia. "' Pessoais abecedários: Nenhum corpo é elementar de Eugenio de Signoribus". In "Revista de Literatura Italiana", v. 3, n. 2, mai-ago, 2022. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/240148
[1] AGAMBEN, Giorgio. “Bibliografia essenziale”. In DE SIGNORIBUS, Eugenio. Poesie (1976-2007), Milano: Garzanti, 2008, p. 628-9.
[2] TESTA, Enrico. In DE SIGNORIBUS, Eugenio. Poesie (1976-2007) p. 640; ZINATO Emanuele. Idem, p. 645.
[3] Em entrevista a Peterle e Santi. In PETERLE, Patricia; SANTI, Elena. Vozes. Cinco
décadas de poesia italiana. Rio de Janeiro: editora Comunità, 2017, p. 160.
[4] LUZZI, Giorgio. “Bibliografia essenziale”. Op. cit., p. 644.
[5] DE SIGNORIBUS, Eugenio. "(altre voci), Istmi e chiuse". In Poesie
(1976-2007), Milão: Garzanti, 2008.
[6] Idem, p. 587.
[7] Ibidem, p. 312.
[8] Ibidem, p. 230.
[9] Veja-se o exaustivo
ensaio de Paolo Zublena, “Casa”, in Nuova
corrente, Rivista di letteratura e filosofia, n. 150, 2012, p. 13-37.
[10] PETERLE, Patricia; SANTI, Elena. Op. cit., p. 162.
[11] DE SIGNORIBUS, Eugenio. "Case perdute". In Poesie, op. cit., p.
86.
[12] "Principio del giorno,". Idem, p. 462.
[13] "Ronda dei conversi". Idem, p. 569.
[14] CORTELLESSA, Andrea. In DE SIGNORIBUS, Eugenio. Poesie (1976-2007), p. 642.
[15] TESTA, Enrico. “De
Signoribus”. In Dopo la lirica. Poeti
italiani 1960-2000. Torino: Einaudi, 2005, p. 380.
[16] DE SIGNORIBUS, Eugenio. “chi buca il disturbo mercantile”. In Veglie genovesi. Genova: il canneto
editore, 2013, p. 28.
[17] Texto que abre Veglie genovesi. Op. cit.: Ultima, come prima.// qui
ho dimenticato le tenaglie / perché mai sono stato abbandonato// ho potuto così
tutte le maglie / offrire al coro oscuro e illuminato.
[18] DE SIGNORIBUS, Eugenio. Veglie genovesi. Op. cit., nota na p. 41.
[19] Stefano Verdino reuniu em
antologia muita da melhor poesia, de poetas italianos e não, dedicada a Gênova
e ao interior da Ligúria; na seleção, três textos De Signoribus, dois deles
extraídos de Tavole genovesi, além de
occupare (Nessun corpo è elementare). Verdino, Stefano. Genova in versi e l´entroterra ligure. Ventimiglia: philobiblon,
2003.
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