La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

O bisturi poético de Eugenio De Signoribus, por Giovanni Marco Ceriani (trad. Elena Santi)

 




Quase duas décadas atrás, Giovanni Giudici falou de “ascética religião da palavra” ao se referir a Eugenio De Signoribus. Passou-se muito tempo, e enquanto isso, o poeta pensou bem em guardar aquela palavra em sua ‘casa perdida’, como se guarda uma chama salvífica. Mas ‘perdida’ não deve levar a pensar em um autoexílio, em uma mimada morada e protegida de todo risco, apesar do desassossego aparente de todo estatuto. Pelo contrário, esse grande eremita se aventura, toda vez que se enclausura, para além de sua porta, que poderíamos igualar à predela de madeira humilde do sutil ícone vertiginoso de uma Majestade pré-cristã, e o faz para vasculhar o “dote puro do poço”. Para se desenvolver helicoidalmente em aventura, deve enfrentar a saída, o aberto, o embate cara a cara. 
O título de seu último livro, publicado pela editora genovesa Il canneto de Gênova, em uma roupagem editorial muito refinada, é L’uscita [A saída][1], e testemunha mais uma vez como De Signoribus é o maior poeta engajado dos dias de hoje e, provavelmente, não só na língua italiana. Isso, que parece apenas um friso decorativo veiculado por uma hipérbole, na realidade se justifica pela presença de uma airosa tradução em português, realizada por Patricia Peterle e Lucia Wataghin, da qual não nos ocuparemos, seja pela nossa escassa familiaridade com essa língua, seja pelos freios que são impostos pela natureza da revista. Do que se trata: é um poema em três partes, quase disse em três cantigas, de vinte quartetos mais um verso na conclusão, com um total de 243 versos, entre hexassílabos e heptassílabos (lembrando, raramente, a agilidade de Metastasio) e eneassílabos e decassílabos[2] preponderantes, esses últimos, de uma translúcida pureza valeriana. O perfil dos versos é serrilhado como o de uma chave, à exceção do penúltimo quarteto da terceira parte (duplo sonho), que é aberto por um eneassílabo, para depois propor um rastro de caracol de três sílabas que vibra seu apelo-invocação: “‘irmãos’ / ‘criaturas’ / ‘perdão’”... O fúlgido poeta está no clímax da estenocardia moral no mesmo momento em que está na estenose de sua mais heroica roupagem formal. Há a necessidade sentida por ele de construir para seus versos um sólido abrigo, pois os percebe tão frágeis como os inermes que canta. Sim, canta: peã de ore rotundo na predela pintada de branco do laconismo, brilho intermitente lustro de um franciscanismo estilístico.

Do que De Signoribus fala nesse grande livro, após ter derramado a sua “luz inerme” sobre os últimos? Chegando a esse gargalo, deixemos a palavra a Stefano Verdino, organizador da parte italiana e autor de um excelente prefácio. Verdino, insigne exegeta de Mario Luzi (onde inferir tangências da dicção de De Signoribus com a de Luzi? Talvez em uma determinada paisagem: mas, enquanto em Luzi a paisagem afunda em uma moldura metacrônica da alma, com influências da Toscana e de Siena – Simone Martini –, em De Signoribus a lente grande angular se amplia, e quanto mais se amplia, mais se torna vinculada a uma dobra de realismo: Luzi pinta, em substância, tornando-se alado e paleocristão; De Signoribus afunda o seu bisturi nos males do mundo, ou seja, daquele planeta habitado pelos homens, e o mal se encontra nele à espera da sua mão saneadora, para que nos regenere. Aqui se levanta a sua ‘voz engajada’ até alturas e temperaturas não costumeiras para a literatura italiana), mas voltemos a Verdino: “Logo aprendi de cor quatro versos de Istmi e chiuse [Istmos e eclusas] (1996) que sempre me pareceram epígrafe  do nosso viver [...]: “luz inerme, irremida luz / que ardes no mundo inabitável // entre sulcos celerados e portões / fixados pela mente criminal”[3]. E hoje aquele “movimento da terra inconsolada” com as “cicatrizes dos vales” [...] tem um novo e decisivo encontro marcado no poema que vê a luz”. Não pode não turbar, por tudo o que hoje está acontecendo, ler que a informação ‘terminado de imprimir’ é datada de ‘fevereiro de 2022’. As “casas perdidas” desses perdidos quartetos de De Signoribus desafiam – adornadas no severo aparato testemunhal de que são o anúncio e o último fastígio – a profecia, lhe fazem vigília entre os escombros do planeta desfigurado pela tirania. Números simbólicos: “os doze”; apelos veterotestamentários: “Era o sétimo dia”, “receando serpente e intrigas”; e crísticos: “ era um monte de sobras da ceia // nenhum sinal de madeira e pregos”, têm em juízo a urdidura desses versos, drapeados em uma sua Klangfarbenmelodie.
A carina desse peito – o volume respiratório que sopra dos seus pelotões de palavras – assusta até o basilisco que mata com o olhar, e o espelho em que, se refletindo, se mata. Escrevia Vladimír Holan, e quero pôr sobre minha nota esse sigilo: “até o pecado de um santo pode ser profecia”.


Como citar: CERIANI, Giovanni Marco. "O bisturi poético de Eugenio De Signoribus". Trad. Elena Santi. In "Revista de Literatura Italiana", v. 3, n. 3, set-dez, 2022.  Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/240150



[1] Eugenio de Signoribus. L’uscita / A saída. Org.Patricia Peterle, Stefano Verdino e Lucia Wataghin. Gênova: Il canneto editore, 2022, p. 112.
[2] As medidas dos versos fazem referência à métrica italiana. [N.T.]
[3] As traduções dos versos de Eugenio De Signoribus são de autoria de Patricia Peterle e Lucia Wataghin. [N.T.]