- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
Quase duas
décadas atrás, Giovanni Giudici falou de “ascética
religião da palavra” ao se referir a Eugenio De Signoribus. Passou-se muito
tempo, e enquanto isso, o poeta pensou bem em guardar aquela palavra em sua
‘casa perdida’, como se guarda uma chama salvífica. Mas ‘perdida’ não deve
levar a pensar em um autoexílio, em uma mimada morada e
protegida de todo risco, apesar do desassossego aparente de todo estatuto. Pelo
contrário, esse grande eremita se aventura, toda vez que se enclausura, para
além de sua porta, que poderíamos igualar à predela de madeira humilde do sutil
ícone vertiginoso de uma Majestade pré-cristã, e o faz para vasculhar o “dote
puro do poço”. Para se desenvolver helicoidalmente em aventura, deve enfrentar
a saída, o aberto, o embate cara a cara.
O título de seu
último livro, publicado pela editora genovesa Il canneto de Gênova, em
uma roupagem editorial muito refinada, é L’uscita
[A saída][1], e
testemunha mais uma vez como De Signoribus é o maior poeta engajado dos dias de
hoje e, provavelmente, não só na língua italiana. Isso, que parece apenas um
friso decorativo veiculado por uma hipérbole, na realidade se justifica pela
presença de uma airosa tradução em português, realizada por Patricia Peterle e
Lucia Wataghin, da qual não nos ocuparemos, seja pela nossa escassa
familiaridade com essa língua, seja pelos freios que são impostos pela natureza
da revista. Do que se trata: é um poema em três partes, quase disse em três
cantigas, de vinte quartetos mais um verso na conclusão, com um total de 243
versos, entre hexassílabos e heptassílabos (lembrando, raramente, a agilidade
de Metastasio) e eneassílabos e decassílabos[2] preponderantes, esses últimos, de uma translúcida pureza valeriana. O
perfil dos versos é serrilhado como o de uma chave, à exceção do penúltimo
quarteto da terceira parte (duplo sonho),
que é aberto por um eneassílabo, para depois propor um rastro de caracol de
três sílabas que vibra seu apelo-invocação: “‘irmãos’ / ‘criaturas’ /
‘perdão’”... O fúlgido poeta está no clímax da estenocardia moral no mesmo
momento em que está na estenose de sua mais heroica roupagem formal. Há a
necessidade sentida por ele de construir para seus versos um sólido abrigo,
pois os percebe tão frágeis como os inermes que canta. Sim, canta: peã de ore rotundo na predela pintada de
branco do laconismo, brilho intermitente lustro de um franciscanismo
estilístico.
Do que De
Signoribus fala nesse grande livro, após ter derramado a sua “luz inerme” sobre
os últimos? Chegando a esse gargalo, deixemos a palavra a Stefano Verdino,
organizador da parte italiana e autor de um excelente prefácio. Verdino,
insigne exegeta de Mario Luzi (onde inferir tangências da dicção de De
Signoribus com a de Luzi? Talvez em uma determinada paisagem: mas, enquanto em
Luzi a paisagem afunda em uma moldura metacrônica da alma, com influências da
Toscana e de Siena – Simone Martini –, em De Signoribus a lente grande angular
se amplia, e quanto mais
se amplia, mais se torna vinculada a uma dobra de realismo: Luzi pinta, em substância,
tornando-se alado e paleocristão; De Signoribus afunda o seu bisturi nos males
do mundo, ou seja, daquele planeta habitado pelos homens, e o mal se encontra
nele à espera da sua mão saneadora, para que nos regenere. Aqui se levanta a
sua ‘voz engajada’ até alturas e temperaturas não costumeiras para a literatura
italiana), mas voltemos a Verdino: “Logo aprendi de cor quatro versos de Istmi e chiuse [Istmos e eclusas] (1996) que sempre me pareceram epígrafe do nosso viver
[...]: “luz inerme, irremida luz / que ardes no mundo inabitável // entre
sulcos celerados e portões / fixados pela mente criminal”[3]. E hoje
aquele “movimento da terra inconsolada” com as “cicatrizes dos vales” [...] tem
um novo e decisivo encontro marcado no poema que vê a luz”. Não pode não
turbar, por tudo o que hoje está acontecendo, ler que a informação ‘terminado
de imprimir’ é datada de ‘fevereiro de 2022’. As “casas perdidas” desses
perdidos quartetos de De Signoribus desafiam – adornadas no severo aparato
testemunhal de que são o anúncio e o último fastígio – a profecia, lhe fazem
vigília entre os escombros do planeta desfigurado pela tirania. Números
simbólicos: “os doze”; apelos veterotestamentários: “Era o sétimo dia”, “receando
serpente e intrigas”; e crísticos: “ era um monte de sobras da ceia // nenhum
sinal de madeira e pregos”, têm em juízo a urdidura desses versos, drapeados em
uma sua Klangfarbenmelodie.
A carina desse
peito – o volume respiratório que sopra dos seus pelotões de palavras – assusta
até o basilisco que mata com o olhar, e o espelho em que, se refletindo, se
mata. Escrevia Vladimír Holan, e quero pôr sobre minha nota esse sigilo: “até o
pecado de um santo pode ser profecia”.
Como citar: CERIANI, Giovanni Marco. " O bisturi poético de Eugenio De Signoribus". Trad. Elena Santi. In "Revista de Literatura Italiana", v. 3, n. 3, set-dez, 2022. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/240150
[1] Eugenio de
Signoribus. L’uscita / A saída. Org.Patricia Peterle, Stefano Verdino e Lucia Wataghin. Gênova: Il canneto editore, 2022, p.
112.
[2] As medidas dos versos
fazem referência à métrica italiana. [N.T.]
[3] As
traduções dos versos de Eugenio De Signoribus são de autoria de Patricia
Peterle e Lucia Wataghin. [N.T.]
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos