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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Andrea Santurbano
Giuseppe Artale
Millenium Poetry
em
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Duelo entre Bontempelli e, de costas, Ungaretti (Fonte: https://colorgrammar.wordpress.com/non_profit_campaigns/duello-tra-bontempelli-e-ungaretti-di-spalle-1930/) |
Arte e poesia frequentemente cruzaram seus caminhos com histórias de capas e espadas. Baste lembrar do duelo entre Ungaretti e Bontempelli, ainda em 1926. Num cenário surpreendente – pois, na época, tais desafios já eram proibidos em público: o jardim da casa romana de Pirandello. Por motivos mais ou menos fúteis: maledicências literárias. Felizmente, tudo se resolveu com uma espetada num braço, e as pazes prontamente restabelecidas.
Já mais célebre e, dessa vez, com consequências fatais, é o duelo que viu protagonista Caravaggio, em 1606, no centro histórico de Roma. Para quem pensa que brigas de futebol ou esportivas são fenômenos recentes, bem, saiba que o grande pintor pegou a espada contra seu rival por causa de um ponto contestado no jogo da pallacorda (uma espécie de ténis da época). Se o rival morreu em decorrência de uma ferida na perna, o pintor não teve uma sorte muito melhor, sendo obrigado a fugir da cidade e a começar uma complicada peregrinação, entre Nápoles e a Sicília, que o levaria à morte em poucos anos.
E entre esses dois episódios se coloca a trajetória de um outro artista italiano, “poeta menor”, como se costuma dizer, do séc. XVII, Giuseppe Artale (Mazzarino, Caltanissetta, 1628-Nápoles,1679). No seu caso, a frequentação com o crime começa cedo, aos 15 anos, quando mata em duelo um nobre siciliano, provavelmente seu coetâneo. A partir daí, curiosamente, seus itinerários seguem os do último Caravaggio: Sicília, Nápoles..., mas com uma etapa adicional na ilha de Creta, para participar de batalhas contra os turcos. Valerio Magrelli, em sua antologia Millennium Poetry, o define uma espécie de “Cirano siciliano”, e, de fato, estudo, poesia, conventos, armas e campos de batalha se alternam na vida aventurosa desse literato que muitos biógrafos não hesitam em definir “sanguinário”.
E entre esses dois episódios se coloca a trajetória de um outro artista italiano, “poeta menor”, como se costuma dizer, do séc. XVII, Giuseppe Artale (Mazzarino, Caltanissetta, 1628-Nápoles,1679). No seu caso, a frequentação com o crime começa cedo, aos 15 anos, quando mata em duelo um nobre siciliano, provavelmente seu coetâneo. A partir daí, curiosamente, seus itinerários seguem os do último Caravaggio: Sicília, Nápoles..., mas com uma etapa adicional na ilha de Creta, para participar de batalhas contra os turcos. Valerio Magrelli, em sua antologia Millennium Poetry, o define uma espécie de “Cirano siciliano”, e, de fato, estudo, poesia, conventos, armas e campos de batalha se alternam na vida aventurosa desse literato que muitos biógrafos não hesitam em definir “sanguinário”.
George de La Tour, Jogadores de dados, 1650-51, óleo sobre tela Preston Park Museum and Grounds, Stockton-on-Tees, U.K. |
A poesia de Artale bebe na fonte de dois elementos: a origem siciliana, berço da lírica italiana e do soneto, e a influência do conceptismo – melhor seria dizer, nesse caso, marinismo – da idade barroca. E no poema proposto se concentram três dos ingredientes já vistos e que interessam o seiscentismo, ou seja, o jogo, a sorte e a morte. Com o acréscimo de um tempero decisivo, a presença feminina, que abre para uma série plural de interpretações. É apenas o caso de deixar uma advertência prévia para um melhor aproveitamento da leitura: os dados em objeto eram então obtidos de ossos, em particular os astrágalos, pois eles possuíam uma forma cúbica que os tornavam ideais.
Dama che giuoca a dadi
Queste, ch’agiti in un reliquie erranti,
son Ossa, e punti; e son cifre eloquenti,
che parlan scosse; e presuppongon pianti
fra tuoi Tragici Giuochi, e non le senti.
Cantan Lidia l’esequie a’ tuoi sembianti
nere note, atri segni, ossa stridenti;
giuochi a punti? or se mai vinci ad istanti,
perdi a dì, vivi ad or, mori a momenti.
Or piangi al giuoco, omai de’ tuoi Trofei
morte trionfa; e sol per tuoi sconforti
quai son l’ossa, che stringer esser tu dei.
E mira, or, ch’ossa in man chiudi, e trasporti,
qual sussistenza ha tua beltà, che sei
fatta pria di morir sepolcro a morti.
Dama que joga dados
O que agitas num relíquias errantes
são Ossos, pontos; cifras eloquentes,
que, mexidas, de pranto são falantes
em teus Jogos Trágicos, e não sentes.
Cantam, Lídia, exéquias a teus semblantes
negras notas, sinais, ossos estridentes;
pontuas? mas se ganhas por instantes,
lá vêm perdas, dias, horas morrentes.
No jogo ora choras, já faz revés
dos teus Troféus a morte; linhas tortas
só vêm dos ossos, a te doer de vez.
Mira, qu’ossos seguras e transportas,
que valor tem tua beleza, pois és
feita antes de morrer tal tumbas mortas.
[trad. Andrea Santurbano]
Hoje em dia, seria até fácil ceder à tentação de citar os diversos ditados ou lugares-comuns no tocante a jogo, sorte, mulheres, amor... Mas o que talvez chame mais a atenção no soneto de Artale é a luz sinistra – até com acentos ossiânicos e sepulcrais ante-litteram – desse holofote que ilumina a sorte efêmera da beleza e do tempo. Daria para pensar em raios-x, que enxergam o esqueleto onde, a olho nu, só se vê florescer a carne e o colorido do corpo. E nada melhor que um jogo de dados para simbolizar a velocidade de mudança nos destinos da existência: ganha-se e perde-se de um instante para outro. Todavia, o êxito, por mais que possam variar as vias da divinação, no fundo, é um só, tendo sempre a morte como “recompensa” final. Dessa forma, como acontece em ‘A livella, do grande Totò, é possível imaginar um gari sepultado ao lado de um marquês, replicando post mortem a arrogância classista deste último: “Sti ppagliacciate 'e ffanno sulo 'e vive: / Nuje simmo serie... appartenimmo à morte!” [Essas palhaçadas só as fazem os vivos: / Nós somos sérios... pertencemos à morte!].
Astrágalos (fonte: https://tocati.it/programma/astragali/) |
Os dados e os ossos, o jogo e a morte, são portanto os paralelismos que sustentam os versos do soneto. Porém, como mencionado, resta a considerar o porquê esse alerta ou, possivelmente, recado é dado justamente a uma mulher. Um aviso à vaidade, súplica, apelo, execração, castigo? Os leitores podem fazer suas considerações, sem, contudo, esquecer de um detalhe importante: uma Lídia, cujos traços biográficos permanecem vaporosos, existiu e foi, nada mais nada menos, amante do poeta. Certamente, os tempos das Beatrizes e das Lauras já são distantes.
como citar: SANTURBANO, Andrea. Giuseppe Artale, uma poesia em ponta de lâmina. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.5, jun. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209823
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Essa é a quarta postagem do projeto Valerio Magrelli - Millennium Poetry: Viagem sentimental na poesia italiana, iniciativa promovida pelo Istituto Italiano di Cultura di São Paulo durante esta Pandemia de Covid-19.
“Cruzaremos oito séculos de poesia italiana seguindo um percurso autoral. Exclusivamente para o público do IICSP, graças à colaboração da Editora Emons, o poeta Valerio Magrelli apresenta e ilustra em áudio trechos da própria particularíssima antologia de poesia italiana. A proposta é enriquecida pelas traduções e comentários (literatura-italiana.blogspot.com) em português dos professores Patricia Peterle e Andrea Santurbano da UFSC e Lucia Wataghin da USP.”
Os trechos serão publicados pelo canal YouTube do IIC nas datas abaixo. Para acessar, é preciso estar inscrito na NewsLetter do IICSP.
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