La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Trabalhar cansa: a poesia de Cesare Pavese entre mitologia e narração, por Elena Santi

Cesare Pavese - Lavorare stanca - Primeira edição Einaudi
Fonte: Flickr
A primeira edição de Lavorare stanca (1936), primeira obra poética de Cesare Pavese (1908-1950) passa quase desapercebida na Itália. Os versos longos e narrativos, as imagens da vida quotidiana da cidade, destoam profundamente do código lírico hermético predominante na literatura italiana entre as duas guerras. Pavese, por outro lado, é um experiente anglista (se licenciou com uma tese sobre Walt Whitman) e, na sua colaboração com a editora Einaudi - que estava se consolidando nessas décadas - produziu ensaios sobre a literatura anglo-americana e importantíssimas traduções, como a de Moby dick, mas também trouxe para o público italiano Faulcker, Joyce, Dos Passos, entre outros.

Nesse sentido, seu verso se abre para sugestões em parte muito distantes da tradição peninsular, adotando versos de medidas muito longas, porém com uma certa regularidade na rima. A poesia, abandonando muito da obscuridade que caraterizava o hermetismo, adquire um ritmo mais plano, uma aparente simplificação formal, e uma presença muito mais direta do mundo da cidade com suas figuras peculiares dentro das páginas poéticas. Como lembra Andrea Battistini, "i metri lunghi e tendenzialmente narrativi, nonché alcune immagini metaforico-mitologiche derivano dal modello di Walt Withman"(BATTISTINI, Andrea. Letteratura italiana. Dal Settecento ai nostri giorni. Vol II. Bologna: Il Mulino, 2014, p. 469). Esses dois elementos, narratividade e mitologia, perpassam boa parte da produção pavesiana à constante procura de uma chave de leitura do fato humano que desse conta tanto do contingente quanto do universal, do particular e do coletivo. É nesse sentido, então, que as grandes obras da literatura, principalmente americana, se fundem com os estudos de antropólogos como Ernesto de Martino, misturando demandas históricas e universais com o contingente, a especificidade do momento histórico ou geográfico. Sempre como nos indica Battistini, sua relação com a história é quase uma relação metastórica, ou seja, não anula os acontecimentos históricos, mas, por meio do mito, interroga os elementos e as relações profundas que há entre os fatos.

Cesare Pavese
Fonte: Wikipedia

De índole esquiva, Pavese, nos aos antes da guerra, não assumiu posições explicitas contra o fascismo, embora, apoiando amigos e companheiros mais diretamente engajados, acabou sendo transferido pelo regime em um pequeno povoado da Calabria, no extremo sul da Itália, isolado dos colegas, do trabalho, dos círculos políticos. É nesses anos que retoma os poemas de Lavorare stanca, aprimorando seu trabalho, e, retornado em Turim, publicou uma nova edição em 1943, dessa vez com a Einaudi. É interessante notar como essa coletânea seja a única publicada em vida pelo autor. Em 1951, póstuma, será publicada Verrà la morte e avrà i tuoi occhi, que, a diferença de Lavorare stanca, ainda não possui tradução para o português. Sim, porque em 2009, o professor e tradutor Maurício Santana Dias lança pela Cosac Naify Trabalhar cansa, edição bilíngue, com texto italiano e tradução para o português, e um importante prefácio sobre a obra de Pavese, assinado sempre por Dias, cujo título é "A oficina irritada de Cesare Pavese". É possível ler nessa páginas: 

Moderno sem aderir às experiências mais radicais da modernidade, clássico sem evidentemente participar da Grécia antiga ou da Itália de Dante, consciente dessas antinomias insolúveis e vivendo o período histórico mais conturbado do século XX, o entre guerras, Pavese se propôs o projeto impossível de construir uma obra literária que condensasse tudo isso de maneira equilibrada. Mas para atingir suas intenções era necessário isolar cuidadosamente os elementos que pudessem pôr em risco a estabilidade do conjunto: o verso livre de Walt Whitman, a redescoberta do barroco pela geração espanhola de 1927 e o uso abundante da enumeração caótica, as colagens do futurismo, a página em branco de Mallarmé, a escrita automática do surrealismo francês, o fluxo de consciência de Joyce e Faulkner (pelos quais o autor não tinha especial predileção, embora os tenha traduzido), o “alusivo e fragmentário” dos herméticos italianos, enfim, todas as experiências que confrontavam os homens de sua geração com a perda de sentidos estáveis.
 Nessas poucas linhas, disponíveis também no blog Escamandro, assim como os poemas que disponibilizaremos na sequência, Maurício Santana Dias guia a leitura de quem começa a se aproximar à obra do escritor do Piemonte.


DUE SIGARETTE
Ogni notte è la liberazione. Si guarda i riflessi
dell’asfalto sui corsi che si aprono lucidi al vento.
Ogni rado passante ha una faccia e una storia.
Ma a quest’ora non c’è più stanchezza: i lampioni a migliaia
sono tutti per chi si sofferma a sfregare un cerino.
La fiammella si spegne sul volto alla donna
che mi ha chiesto un cerino. Si spegne nel vento
e la donna delusa ne chiede un secondo
che si spegne: la donna ora ride sommessa.
Qui possiamo parlare a voce alta e gridare,
che nessuno ci sente. Leviamo gli sguardi
alle tante finestre — occhi spenti che dormono —
e attendiamo. La donna si stringe le spalle
e si lagna che ha perso la sciarpa a colori
che la notte faceva da stufa. Ma basta appoggiarci
contro l’angolo e il vento non è più che un soffio.
Sull’asfalto consunto c’è già un mozzicone.
Questa sciarpa veniva da Rio, ma dice la donna
che è contenta d’averla perduta, perchè mi ha incontrato.
Se la sciarpa veniva da Rio, è passata di notte
sull’oceano inondato di luce dal gran transatlantico.
Certo, notti di vento. E’ il regalo di un suo marinaio.
Non c’è più il marinaio. La donna bisbiglia
che, se salgo con lei, me ne mostra il ritratto
ricciolino e abbronzato. Viaggiava su sporchi vapori
e puliva le macchine: io sono più bello.



Sull’asfalto c’è due mozziconi. Guardiamo nel cielo:



la finestra là in alto — mi addita la donna — la nostra.
Ma lassù non c’è stufa. La notte, i vapori sperduti
hanno pochi fanali o soltanto le stelle.
Traversiamo l’asfalto a braccetto, giocando a scaldarci.



DOIS CIGARROS



Cada noite é uma libertação. Os reflexos do asfalto


se destacam nas ruas que se abrem brilhantes ao vento.
Cada raro passante tem rosto e uma história.
A esta hora não há mais cansaço: milhares de postes
estão lá pra quem passa e precisa riscar seu fósforo.
A chaminha se apaga em frente à mulher
que me pede um fósforo. Apaga-se ao vento,
e a mulher, que se frustra, me pede um segundo,
que se apaga. A mulher então ri, acanhada.
Onde estamos podemos falar e gritar,
que ninguém nos escuta. Erguemos a vista
para as muitas janelas — com olhos que dormem —
e esperamos. Então ela encolhe seus ombros
e se queixa da perda da echarpe bonita
que a aquecia nas noites. Mas basta apoiar-se
contra a esquina que o vento de chofre arrefece.
Sobre o asfalto roído se vê uma guimba.
Essa echarpe viera do Rio, mas diz a mulher
que está alegre por tê-la perdido porque me encontrou.
Se a echarpe viera do Rio, cruzou muitas noites
o oceano inundado de luz, em algum transatlântico.
Sim, em noites de vento. É o presente de algum marinheiro.
Já não há marinheiro, e a mulher me sussurra
que, se subo com ela, me mostra sua foto,
cacheado e queimado. Zarpava em imundos vapores
e cuidava das máquinas: sou mais bonito.



Sobre o asfalto estão duas baganas. Olhamos pro céu:



a janela lá em cima — me aponta a mulher — é a nossa.
Mas não há aquecimento. De noite, os vapores perdidos
veem poucos faróis ou somente as estrelas.
Abraçados cruzamos o asfalto, tentando aquecer-nos.
(1933)

Para aprofundar a discussão sobre essa coletânea: Os Poemas-Narrativos de Cesare Pavese de Fabiana Assini 


como citar: SANTI, Elena. Trabalhar cansa: a poesia de Cesare Pavese entre mitologia e narração. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.5, jun. 2020. Disponível em
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209835