La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

“É fantástico o que se pode suportar”: a experiência do horror em "Peregrinação", de Giuseppe Ungaretti, por Lucia Wataghin


Pellegrinaggio                                            Peregrinação
Giuseppe Ungaretti

Valloncello dell´Albero Isolato,                                                      Valloncello dell´Albero Isolato, 
il 16 agosto 1916                                                                                            16 de agosto de 1916


In agguato                                                                                 À espreita
in queste budella                                                                    nestas entranhas
di macerie                                                                                 de escombros
ore e ore                                                                                    horas e horas
ho strascicato                                                                          arrastei
la mia carcassa                                                                        minha carcaça
usata dal fango                                                                        gasta pela lama
come una suola                                                                       como uma sola
o come un seme                                                                      ou uma semente
di spinalba                                                                                de escalheiro

Ungaretti                                                                                   Ungaretti
uomo di pena                                                                           homem de pena
ti basta un'illusione                                                                te basta uma ilusão
per farti coraggio                                                                    para te dar coragem       

Un riflettore                                                                             Um refletor
di là                                                                                               lá fora
mette un mare                                                                         põe um mar
nella nebbia                                                                              na neblina

[Trad. Lucia Wataghin] 


“É fantástico o que se pode suportar” (Apollinaire)[1]

Peregrinação é um termo da família que compreende viagem, caminhada, deslocamento e busca: é tema central da Bíblia à Odisseia, da Comédia dantesca aos Cavaleiros da Távola Redonda a Rousseau, Walser, Bernhard e, finalmente, Palazzeschi, come lembrou recentemente Andrea Santurbano nesse blog, em seu comentário a O passeiouma caminhada aguda e irônica do poeta pela Itália de 1910 (o poema data de cinco anos antes da entrada do país na guerra). Pellegrinaggio (Peregrinação) também é uma caminhada, mas é palavra que, em Ungaretti, remete ao nomadismo, à sua própria vida marcada por grandes e decisivos deslocamentos e diferentes pátrias, à busca da Terra Prometida, mito ungarettiano; nesse poema, sua associação com o tema da guerra lhe confere as mais graves conotações. 
O horror da vida na trincheira talvez não seja dizível, como escreveu uma vez[2] Apollinaire, combatente, como Ungaretti, na primeira guerra mundial, uma das mais sangrentas da história humana. O número de vítimas desse conflito se conta em dezenas de milhões; foi calculado[3], considerando apenas os mortos do exército italiano, que mais de 650mil soldados perderam a vida, ou seja, 39,1 por cento do efetivo mobilizado. Quatro homens em cada dez (lembro aqui o intraduzível, também ungarettiano: Soldati // Si sta come / d´autunno / sugli alberi / le foglie)[4].  

Peregrinação oferece fragmentos de representação da experiência do horror, a caminhada de um corpo dobrado, à espreita, que se arrasta na lama das "budella" (vísceras, entranhas) na região alpina do Carso. Budella é termo usado, especialmente na Ligúria, para indicar as ruelas, estreitas e labirínticas, dos centros de pequenas e grandes cidades – e associado aos intestinos, com suas conotações, e ao ventre, à área secreta da origem, o centro; foi usado também para denominar os quilomêtros de trincheiras escavados com enorme dificuldade e sofrimento nas rochas calcárias do Carso, as sendas, corredores, galerias, cavernas assim formadas. Nos poemas ungarettianos da primeira guerra (os da segunda têm articulação muito diferente), tudo remete à frantumação: o massacre, os escombros, a própria natureza do Carso, o corpo exausto ou massacrado dos soldados, o verso esgarçado, até o substrato físico da escrita, traçada, como se sabe, ainda durante a peregrinação nas trincheiras, em papeis esparsos, cartões postais, envelopes, recortes de jornais, e ligada a impressões e fragmentos já fixados em cartas do front do poeta a amigos (até o nome próprio Ungaretti inscrito no corpo do poema já foi comparado, sugestivamente, àqueles sinais que permitem identificar os fragmentos de um lírico grego)[5]. A presença da guerra, e em especial as rochas frantumadas do Carso, a própria natureza daquela particular zona de guerra onde se encontrou Ungaretti, parecem estruturar a linguagem da Alegria. Retomando uma bela imagem de Jaccottet, essa poesia parece “o produto de uma calcinação ou de uma erosão”[6], ou, como conclui Magrelli, “uma concreção calcária, um corpo estalactítico trágico e áspero”[7].


O caráter diarístico de Il Porto Sepolto (O Porto Sepulto), a coletânea que hospeda Pellegrinaggio, é imediatamente evidente: cada poema desse livro (o livro inteiro será depois recolocado como seção da Alegria, em várias outras edições) é seguido por lugar e data de composição (nas edições seguintesteremos uma sinalização da importância dessas indicações, que passam a preceder os poemas). É possível assim acompanhar o caminho do soldado de infantaria Ungaretti, de trincheira em trincheira, de uma localidade para outra; na memória do leitor se fixam os nomes dos quatro cumes (Cima 4, Valloncello dell´Albero Isolato, Cotici, Quota 141) do monte San Michele, onde o regimento de Ungaretti permaneceu no mês de agosto de 1916. Não é esse o sentido do livro, que compreende a guerra entre outras experiências, e significativamente começa e termina com dedicatórias e despedidas (a Moammed Sceab, a Ettore Serra, ou aos leitores) que marcam uma mais ampla trajetória do poeta. Mas podemos ver que Pellegrinaggio traz a mesma indicação de data (16 de agosto de 1916) de outro célebre poema, I fiumique reconta, em torno de quatro rios (o Isonzo, o Serchio, o Nilo, o Sena), toda a peregrinação do poeta. 
Pellegrinaggio contém alusões mais secretas às diferentes fases da vida de Ungaretti: homenagens à França, com o francesismo “usata dal fango” (gasta pela lama) e uma referência a Baudelaire na última estrofe (“un mare nella nebbia”, “une mer de brouillards”)[8]; uma “spinalba” (pilriteiro, também chamado escalheiro, estrepeiro, espinha-branca), lembrança do Egito; da presença dessa última nos jardins de Alexandria Ungaretti dá notícia na única nota que escreve para esse poema[9]. E é secreto também o processo de maturação da semente, o segundo centro da poesia (exemplos da fascinação de Ungaretti pelo caráter oculto do amadurecimento dos grãos debaixo da terra se encontram nos poemas franceses de La Guerre, de 1919, Fin de mars e Hiver). A passagem do estado de exaustão à alegria do poeta Ungaretti é fulmínea, nos trê versos que comparam seu corpo com a sola de um calçado imerso na lama do poeta/ soldado de infantaria, ou com uma semente de spinalba, do poeta nascido e crescido no Egito. Imediatamente depois, produto da comparação, aparece o sobrenome Ungaretti, em evidência, formando o primeiro verso da segunda estrofe.
O sentido da alegria, é preciso dizê-lo, é a reação diante da guerra, do medo da morte; a “fonte” da alegria, explicou Ungaretti nas notas ao livro, é “o sentimento da morte a ser esconjurada”[10]. Os últimos versos de Pellegrinaggio, reelaboração de um breve poema independente (Rischiaro), retornam ao momento da guerra; a luz fixa de um refletor vinda do outro lado ("di là"), que traz à trincheira a ilusão capaz de devolver a coragem ao homem diante da morte. Não é aqui que a peregrinação deve terminar.


como citar: WATAGHIN, Lucia. ““É fantástico o que se pode suportar”: a experiência do horror em "Peregrinação", de Giuseppe Ungaretti”. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.6, jun. 2020.Disponível em

https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209673



[1] Guillaume Apollinaire, carta da zona de guerra a Madeleine, 30/11/1915, apud Murilo Marcondes de Moura, “Poesia de vanguarda e guerra moderna: o caso Guillaume Apollinaire”, in Elcio Cornelsen & Tom Burns (org.), Literatura e Guerra. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1010, p. 83. 
[2] Ibidem, p. 85.
[3] Giorgio Mortara. La Salute Pubblica in Italia durante e dopo la Guerra. Bari: G. Laterza & figli, 1925.
[4] Intraduzível, mas: Soldados // Se está como / no outuno/ nas árvores / as folhas. 
[5] Niva Lorenzini & Stefano Colangelo, Giuseppe Ungaretti, Milão: Mondadori Education S.p.A. 2012, p. 94.
[6] Philippe Jaccottet, apud Valerio Magrelli. Millennium Poetry. Viaggio sentimentale nella poesia italiana. Bologna: Il Mulino, 2015, p. 171.
[7] Idem, Ibidem, 
[8] Carlo Ossola, in Giuseppe Ungaretti. Il Porto Sepolto. Milão: Il Saggiatore, 1981, p. 183.
[9] Giuseppe Ungaretti. Vita d´un uomo. Tutte le poesie. Milão: Mondadori, 1969, p. 524.
[10] Giuseppe Ungaretti. Vita d´un uomo. Ibidem, p. 517.

Esta postagem faz parte do projeto Valerio Magrelli - Millennium Poetry: Viagem sentimental na poesia italiana, iniciativa promovida pelo Istituto Italiano di Cultura di São Paulo durante esta Pandemia de Covid-19.
“Cruzaremos oito séculos de poesia italiana seguindo um percurso autoral. Exclusivamente para o público do IICSP, graças à colaboração da Editora Emons, o poeta Valerio Magrelli apresenta e ilustra em áudio trechos da própria particularíssima antologia de poesia italiana. A proposta é enriquecida pelas traduções e comentários (literatura-italiana.blogspot.com) em português dos professores Patricia Peterle e Andrea Santurbano da UFSC e Lucia Wataghin da USP.”
Os trechos serão publicados pelo canal YouTube do IIC nas datas abaixo. Para acessar, é preciso estar inscrito na NewsLetter do IICSP.