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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Clarice Lispector
Dayana Loverro
tradução
em
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“Você que me lê, que me ajude a nascer”.
(Água Viva, 1973)
Clarice
Lispector, escritora cujo centenário de nascimento é celebrado no ano de 2020, cultivava
uma destacada relação com o leitor em seus contos, romances e crônicas – conexão
que a acompanhava também na esfera privada, através de suas intensas correspondências.
Ao desenvolver a sua produção literária no século XX (momento em que, na teoria
literária, as construções de sentido tendiam a se concentrar um tanto menos no autor
e no texto em si para então se completarem no leitor), mesclava textos de profunda
introspecção com textos que manifestavam esse diálogo substancial, em uma interação
que atravessou fronteiras e proporcionou trocas em diversos idiomas – dentre eles,
o italiano.
Lispector
publicou o seu primeiro livro, “Perto do Coração Selvagem”, em 1943. Muito bem recebido
pela crítica, obteve grande reconhecimento em 1944 ao receber o prêmio Graça Aranha
que, à época, era um dos mais importantes prêmios literários do Brasil. Nesse período,
a escritora já morava na Europa: casada com o diplomata brasileiro Maury Gurgel
Valente, viveu na cidade de Nápoles, na Itália, entre os anos de 1944 e 1946.
Durante
a II Guerra mundial, atuou como voluntária junto ao corpo de enfermagem do hospital
da Força Expedicionária Brasileira (FEB), onde cuidava dos combatentes doentes e
feridos e também lia e escrevia-lhes cartas aos familiares. A experiência como voluntária
é relatada em suas cartas pessoais, como aquelas à sua irmã, Elisa, e ao amigo Lucio
Cardoso. Em suas cartas também estão presentes outras experiências do período em
que viveu na Itália, como por exemplo, passagens com o pintor De Chirico (que fizera
um retrato seu) e relatos sobre o seu estimado cão, Dilermando, que deixou, com
muito pesar, aos cuidados de outra pessoa ao mudar-se para a Suíça. Alguns traços dessa profunda relação de afeto com o seu
cão se fazem presentes em contos e em determinados momentos de suas obras.
Nos anos em que viveu na Itália, concluiu ainda a escrita do romance “O lustre”
e teve contato também com o poeta Giuseppe Ungaretti, que muito apreciou a qualidade
de seus escritos.
De
acordo com Mona Lisa Teixeira, o período vivido por Lispector na Itália é relembrado
em crônicas como “O maior elogio que já recebi”, “Bichos”, “Aldeia nas montanhas”,
“Corpo e alma”, “Uma italiana na Suíça” e “O chá”, com destaque às impressões sobre
o povo italiano e a natureza do país, bem como a episódios particulares. Teixeira
destaca que
Suas vivências pessoais nesse período
se transformariam, mais adiante, em mananciais para seus escritos, como é possível
perceber nas suas trocas de correspondências com as irmãs, e os amigos Lúcio Cardoso
e Manuel Bandeira, para citar alguns, em que muitas vezes fala sobre os problemas
com relação à adaptação de suas funções como esposa de diplomata, suas dificuldades
com relação à elaboração de seus escritos e sobre os escritores que lê, como Marcel
Proust, Emily Brontë e Katherine Mansfield. É através das correspondências que se
informa sobre a situação política do Brasil, assim como da vida intelectual do país,
como se constata nas suas cartas trocadas com Manuel Bandeira.[1]
Conforme
assinala Dal Pont[2],
diversos aspectos característicos do Brasil se descortinam ao público leitor das
obras brasileiras em contexto de recepção, como aqueles relacionados à Antropologia,
Sociologia e Estudos culturais. Se o consumo da produção literária promove a construção
de referenciais sobre determinada sociedade e cultura no mesmo país onde é escrita,
no exterior a construção desse imaginário tem chances de se potencializar. Pensando-se
sobre as formas de observação da literatura brasileira (a partir do próprio país
ou sob o espectro do olhar estrangeiro) e considerando-se a multiplicidade de influências
em sua composição, é útil nos lembrarmos, de acordo com Antonio Candido[3], que a literatura brasileira
se propaga através de um olhar comparativo – ao passo que as demais existem por
si só. Porém, ao longo dos anos foram cada vez mais reconhecidos os traços inovativos
presentes na literatura nacional, o que ocorre marcadamente através da obra de Clarice
Lispector.
O
destaque conferido aos escritos de Lispector pela crítica brasileira acontece com
maior intensidade entre as décadas de 60 e 70, momento em que as ideias europeias
chegavam ao Brasil em contraponto à hegemonia social ou ao engajamento presente
na produção estética desse período. De acordo com Corrêa & Pilati[4], foi dessa forma que a escrita
de Lispector parece ter assumido matizes universais, com a capacidade de entender
a alma humana
devido ao desejo profundo de compensação
(recorrência na história do intelectual brasileiro) do atraso nacional. “A sociedade
resolve no domínio imaginário as contradições que não consegue superar no real”
(JAMESON, 1985, p.14). A possibilidade artística de uma escritora que está acima
da matéria brasileira, desponta como uma exceção – Lispector existiria assim apesar
das condições precárias do país, e não, exatamente, por causa dessa materialidade
específica.
A natureza
universal presente em Lispector colaborou também para que a sua obra se difundisse
no exterior. O editor e escritor Pedro Corrêa do Lago, em matéria
de Tom C. Avendaño para o jornal El país
em 2017, considera que foram as traduções e o interesse que começou a despertar
no exterior que a transformaram em um fenômeno editorial brasileiro. Nas palavras
dele,
“os grandes artistas sabem projetar, de uma maneira muito
estranha, uma visão muito excêntrica e pessoal sobre os falantes de todo um idioma,
e também sabem fazer com que acreditem que essa visão é sua. Assim, é impossível
imaginar o espanhol sem Cervantes, o inglês sem Shakespeare, e o português sem Clarice”[5].
De acordo com Francavilla[6], a autora representou uma ruptura
com a tradição literária ao deslocar-se da abordagem local e nacional, predominante
na literatura brasileira do contexto pós-independência até o momento de suas primeiras
publicações (década de 1940), para temáticas universais e, ao mesmo tempo, com traços
de introspecção ligados às sensações e às questões da alma humana; abrindo espaço,
dessa forma, a novas possibilidades do fazer literário no Brasil.
Em
relação à Itália, os anos 70 representaram um marco para a tradução da ficção brasileira.
Conforme elucida Torquato, vários autores brasileiros até então inéditos foram introduzidos
no mercado editorial italiano nesse período. As décadas seguintes dariam prosseguimento
a esse intercâmbio literário, intensificando-o, como ocorreu na década de 80. Esse
é o caso de Clarice Lispector: desde que publicada pela primeira vez em italiano,
tornou-se uma das autoras brasileiras mais traduzidas na Itália (ao lado de Machado
de Assis e Jorge Amado).
Torquato[7] indica que a Itália tomou contato
com a ficção de Lispector muitos anos após outros países. A autora já era traduzida
na França, por exemplo, desde 1954 (com a publicação de Perto do coração selvagem);
e em 1967 foi traduzida pela primeira vez nos Estados Unidos (com a edição americana
de A maçã no escuro). Porém, aparentemente, após o contato do público leitor
italiano com a narrativa da escritora brasileira através da tradução de Uma aprendizagem
ou o livro dos prazeres [Un
apprendistato o il libro dei piaceri][8],
em 1981, a Itália buscou recuperar o período sem traduções, pois em um curto espaço
de tempo (1981-1989) traduziu-se, em média, uma publicação
ao ano.
Os paralelos entre a escrita de Lispector com James Joyce
e Virginia Woolf, por exemplo, também contribuíram para uma posição mais “canônica”
da autora na recepção da literatura brasileira no exterior. Um dos pontos mais marcantes
em comum deve-se ao fato de que Lispector também se utiliza do trabalho com a linguagem
para alcançar a expressão de um “fluxo de consciência”, próprio dos monólogos interiores.
Apresenta identificação – ainda que sem intencionalidade – também com a escrita
feminina, sob a ótica de Hélène
Cixous[9], que propõe, entre outros aspectos,
a mudança da noção do “feminino” como parte de uma lógica binária que se opõe à
noção do “masculino” (enquanto a primeira é atribuída às mulheres e a segunda aos
homens), e concebe a noção do feminino como transcendente de distinções biológicas.
Para
que se forme um público leitor cujas demandas possam ser atendidas, é preciso que
as esferas editoriais e mercadológicas atuem em consonância. Os escritos de Cixous
ajudaram a difundir Lispector internacionalmente em um momento em que as mulheres
se defrontavam com questões de cunho político e social, referentes ao seu espaço
no mundo – e a expressão literária feminina pôde atuar como uma grande auxiliar
na elaboração e síntese dessas mesmas questões. A abordagem feminista presente nos
estudos de Hélène Cixous
repercutiu amplamente também junto ao público leitor italiano (sobretudo feminino).
Assim, com relação à ampla divulgação internacional e à recepção de Clarice Lispector
na Itália, Guerini & Torquato[10] (2006) explicam que, a partir
da década de 70, Lispector vem a ser conhecida no país principalmente em decorrência
do movimento feminista.
Clarice
Lispector não é intencionalmente relacionada ao feminismo, pois nem mesmo permitia
ser classificada como uma feminista, mas a sua escrita ia ao encontro das necessidades
de expressão desse movimento. A autora desenvolveu a sua produção literária em
um momento em que o movimento feminista no Brasil ainda não havia se
consolidado. A biógrafa e especialista Nádia Gotlib[11] explica que,
Embora não tenha sido ativista e tenha até criticado o feminismo pelo
risco da sua burocratização, Clarice colaborou de modo decisivo para a
emancipação da mulher, ao desvendar novas perspectivas de vida contra os
limites paternalistas impostos por uma sociedade autoritária e machista.
No
que diz respeito ao aproveitamento das obras de Lispector por destacadas teóricas
feministas italianas, Bonalumi[12] expõe que a obra A Paixão segundo G.H. [La passione
secondo G.H.][13]
foi uma das obras mais impactantes sobre a qual essas estudiosas dedicaram discussões,
em grande parte motivadas pela sensação de estar ante a uma autora inacessível,
à qual se deve voltar muitas vezes para obter uma compreensão mais profunda sobre
ela. Bonalumi completa, ainda, que após a publicação dos Études Littéraires de Hélène Cixous em 1978 (um artigo sobre o livro
A maçã no escuro), Clarice Lispector passa
a ser mais lida mundialmente, em razão da intensificação das traduções. É interessante
lembrar que também os Estudos da Tradução começaram a se estruturar paralelamente
ao desenvolvimento dos estudos feministas na década de 1970, embora as duas áreas
tenham permanecido à parte até muito recentemente.
Em
complemento ao primeiro movimento das traduções de Clarice Lispector na Itália,
nota-se nos últimos anos o surgimento de um segundo movimento de traduções e retraduções
de sua obra em italiano, também acompanhando uma tendência internacional. Benjamin
Moser[14], biógrafo e um dos
tradutores de Lispector em língua inglesa, considera que a autora trouxe abordagens inéditas para a literatura,
destacando-se no contexto internacional, sobretudo, pelo talento.
Na
Itália, após a recente aquisição dos direitos para a publicação de traduções de
Clarice Lispector pela editora Adelphi (Adelphi Edizioni), estimam-se diversos lançamentos
de títulos traduzidos em italiano para os próximos anos. Os títulos em italiano
lançados mais recentemente foram Acqua viva[15], Un soffio di vita][16] e Tutti i racconti][17].
De
tal sorte, o mais recente processo de internacionalização da autora apresenta-se
amplamente relacionado às atuais dinâmicas editoriais e, em tempo, vem para lembrar
e laurear os esforços de muitos editores, tradutores, professores, pesquisadores
e leitores que, por décadas, se dedicam – no Brasil, na Itália e em todo o mundo
– à memória, interlocuções e presença de Clarice Lispector.
______________________
Como citar: LOVERRO, Dayana. "Clarice Lispector em italiano: entre o universal e o feminino". In "Literatura Italiana Traduzida", v. 1, n. 12, dez. 2020.
Disponível em:https://repositorio.ufsc.br/ handle/123456789/218739
[1] TEIXEIRA, Mona
Lisa Bezerra. “Uma estrangeira do mundo – Memórias de Clarice Lispector na
Itália.” In: Anais do XV Congresso Internacional da ABRALIC (Associação Brasileira
de Literatura Comparada). Rio de Janeiro, 2017, p. 6791-6792.
[2] DAL
PONT, Stella Rivello da Silva. “Cânone em
tradução: Três décadas de conexões literárias entre Brasil e Itália (1977-2007)".
Tese. Centro de Comunicação e Expressão. Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2017.
[3] CANDIDO,
Antonio. Formação da Literatura
Brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2000.
[4] CORRÊA, Camila Chernichiarro de Abreu;
PILATI, Alexandre Simões. “A dimensão histórica da obra de Clarice Lispector”.
In: Anais do XV Congresso Internacional da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura
Comparada). Rio de Janeiro, 2017, p. 2598.
[5] LAGO, Pedro Corrêa do. “Clarice Lispector: o
segredo mais popular da literatura brasileira”. El pais (jornal). Espanha, 20/09/2017. Disponível em:
brasil.elpais.com/brasil/2017/09/20/cultura/1505923237_969591.html.
[6] Cf. FRANCAVILLA, Roberto. “A língua é um cavalo:
traduzir Clarice Lispector”. In: Revista Olho d’água. UNESP: São José do Rio
Preto, 2018.
[7] Cf. TORQUATO,
Carolina Pizzolo. Breve estudo sobre a
literatura brasileira na Itália: traduções entre 1882 e 1996. Florianópolis:
Editora da UFSC, 2007.
[8] LISPECTOR, Clarice. Un
apprendistato o il libro dei piaceri. Trrad. Rita Desti). La Rosa: Turim,
1981.
[9] CIXOUS, Hélène. “The Laugh of the Medusa” (1975). In: FREEDMAN,
Estelle B. The essential feminist reader. Nova York:
Modern Library, 2007.
[10] GUERINI, A; TORQUATO, C.P. “La letteratura italiana tradotta
in Brasile e la brasiliana tradotta in Italia”. Mosaico (revista),
nº 26. 2006. Disponível em: www.comunitaitaliana.com.br/mosaico/mosaico92/guerini.htm
[11] GOTLIB, Nádia Battella. “[ENTREVISTA] Nádia
Battella Gotlib fala sobre Clarice Lispector”. Folha de Pernambuco (jornal).
Brasil, 09/12/17. Disponível em: www.folhape.com.br/cultura/entrevista-nadia-battella-gotlib-fala-sobre-clarice-lispector/51542/
[12] Cf. BONALUMI,
Emiliana Fernandes. “Análise de similaridades e diferenças no uso de marcadores
de reformulação e frases lexicais, em um corpus paralelo, constituído de contos
e romances de Clarice Lispector, e as respectivas traduções para o inglês e
italiano”. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, São José do Rio
Preto, 2010.
[13] LISPECTOR, Clarice. La passione secondo G. H. Trad. Adelina
Aletti. Feltrinelli Editore: Milão, 1982, 1991.
[14] MOSER, Benjamin. “Uma
entrevista com Benjamin Moser, o biógrafo de Clarice Lispector”. Vice Media Group (site
de notícias). EUA/Canadá, 14/12/2015.
Disponível em: www.vice.com/pt/article/aewagp/uma-entrevista-com-benjamin-moser-o-biografo-de-clarice-lispector
[15] LISPECTOR, Clarice. Acqua Viva. Trad. Roberto Francavilla. Adelphi Edizioni: Milão, 2017.
[16] LISPECTOR,
Clarice. Un soffio di vita. Trad. Roberto Francavilla. Adelphi Edizioni: Milão, 2019.
[17] LISPECTOR,
Clarice. Tutti i racconti. Trad. Roberto Francavilla. Feltrinelli
Editore: Milão, 2020.
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