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Um osso de morto: Tradução comentada do conto de Iginio Ugo Tarchetti, por Grazielle dos Reis Barbosa e Marcos Airam Ribeiro e Silva
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Grazielle dos Reis Barbosa
Igino Ugo Tarchetti
Marcos Airam Ribeiro e Silva
tradução
em
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Introdução
Apresentamos, a seguir, uma
tradução comentada do conto “Un osso di morto” (2003 [1869]), de Iginio
Ugo Tarchetti, escritor, poeta e jornalista italiano, conhecido por ser um dos
poucos autores italianos a se arriscar na literatura fantástica. Mesmo obtendo
baixo êxito literário em seu país de origem e sendo considerado um escritor
italiano “menor”, Tarchetti compete com outros escritores do fantástico já
consagrados, como Ernst Theodor Amadeus Hoffmann, Edgar Allan Poe, Théophile Gautier
e Prosper Mérimée, e se destaca pela sua ousadia, diferentemente de outros
autores italianos do período, que se baseavam na forma clássica romântica de
Manzoni.
Em “Un osso di morto”, o
narrador italiano reconta um curioso episódio sobrenatural vivenciado por si
mesmo: o encontro com Pietro Mariani, um espírito que teve uma de suas patelas
doadas ao protagonista do conto por um professor de anatomia, chamado Federico
M. Nessa obra de Tarchetti, o autor cria uma paródia de um conto fantástico e
de seus elementos. Destacamos como exemplo a figura do cientista cético, encarnada
por Federico M., que retrata estereótipos de sua profissão, “era uomo
amantissimo delle scienze, e della sua in particolare –
aveva virtù e doti di mente non comuni – senonché, come tutti gli anatomisti ed
i clinici in genere, era scettico profondamente e inguaribilmente”, e que,
ironicamente, apresenta-se ao protagonista depois de morto em uma sessão
espírita, outro elemento parodiado ao longo do conto.
A produção de uma paródia
de gênero e de elementos recorrentes da literatura fantástica, principalmente no
que se refere à temática, não retira “Un osso di morto” da categoria de conto
fantástico tampouco o diminui, visto que a narração de Tarchetti se enquadra com
maestria dentro das características do fantástico elencadas por Todorov (1977),
satisfazendo o que para esse autor seria o ponto principal do gênero: a
incerteza, uma vez que não afirma nem nega a veracidade dos acontecimentos
narrados, causando, por meio da identificação entre leitor e personagem, a
dúvida necessária ao fantástico.
Um osso de morto
No ano de 1855, tendo me
mudado[2] para
Pavia, dedicava-me ao estudo de desenho em uma escola particular daquela cidade;
e, após alguns meses de permanência ali, estabeleci relação com um tal de
Federico M., professor de patologia e de clínica para o ensino universitário[3],
que morreu de derrame fulminante[4]
poucos meses depois que eu o conhecera[5].
Era um homem amantíssimo das ciências, e da sua em particular, – possuía
qualidades e virtudes de uma mente incomum – todavia, como todos os anatomistas
e clínicos no geral, era um cético profundo e incurável – e era assim por
convicção, nem eu pude induzi-lo às minhas crenças, ainda que me empenhasse nas
apaixonadas e acaloradas discussões que tínhamos todos os dias. Contudo – e
fico feliz em fazer esta justiça à sua memória – ele sempre se mostrava
tolerante com as convicções que não eram as suas; e eu e aqueles que o conheciam
guardamos as mais queridas recordações dele. Poucos dias antes de sua morte,
aconselhara-me a assistir às suas aulas de anatomia, alegando que eu obteria
muitas noções úteis à minha técnica de desenho: Concordei, apesar de estar
relutante[6]; e
movido pela vaidade de parecer ao professor menos amedrontado do que realmente
estava, solicitei-lhe alguns ossos humanos, que ele me deu e que coloquei sobre
a lareira do meu quarto. Com sua morte, parei de frequentar o curso de
anatomia, e mais tarde desisti também do estudo de desenho. Todavia, conservei
comigo aqueles ossos ainda por muitos anos, já que o hábito de os ver me tornou
quase indiferente a eles, e não faz mais do que poucos meses desde que, tomado
por um medo súbito, resolvi enterrá-los, não mantendo em minha posse mais do
que uma simples rótula de joelho. Esse ossinho esférico e liso que por sua
forma e por seu pequeno tamanho eu destinei, desde o primeiro momento em minha
posse, a cumprir o ofício de peso de papel, e como aquele osso não dava nenhuma
ideia aterrorizante, já se encontrava posto sobre a minha escrivaninha por onze
anos, quando dele fui privado da maneira inexplicável que estou prestes a
contar.
Na primavera passada,
conhecera em Milão um magnetizador[7]
muito conhecido entre os amantes do espiritismo, e solicitei-lhe com instância
que me aceitasse em uma de suas sessões espíritas. Pouco depois recebi o
convite para juntar-me às sessões, e dirigi-me para lá agitado por maus
pressentimentos, tanto que por muitas vezes durante o caminho quase desisti. No
entanto, a insistência do meu amor próprio[8]
levou-me ali contra minha vontade.
Não irei expor aqui as
invocações surpreendentes que presenciei: bastará dizer que fiquei tão maravilhado
com as respostas que escutamos de alguns espíritos, e minha mente ficou tão
impressionada com aquele fenômeno, que, superado todo medo, nasceu em mim o
desejo de chamar alguém que eu conhecia, e propor-lhe eu mesmo algumas
perguntas sobre as quais já havia refletido e discutido na minha mente. Após
manifestar essa vontade, fui levado a um gabinete isolado, onde fui deixado
sozinho, como a impaciência e o desejo de invocar vários espíritos ao mesmo
tempo me deixaram titubeante sobre a escolha, e meu plano era interrogar o
espírito invocado sobre o destino humano, e sobre a espiritualidade da nossa
natureza, veio à minha mente o Dr. Federico M., com o qual, enquanto vivo, tive
discussões acaloradas sobre o tema, e decidi chamá-lo. Tomada a decisão,
sentei-me a uma mesa, dispus à minha frente uma folha de papel, mergulhei a
pena no tinteiro, coloquei-me em posição de escrever, e concentrei-me o quanto
fosse possível naquele pensamento, juntando toda minha força de vontade, e
direcionando-a àquele propósito, esperei que o espírito do doutor chegasse. Não
esperei por muito tempo. Após alguns minutos de demora, percebi por meio de
sensações novas e inexplicáveis que eu não estava mais sozinho na sala, senti,
por assim dizer, a sua presença; e antes que eu soubesse como formular uma
pergunta, minha mão agitada e convulsa, movida como que por uma força estranha
à minha vontade, escreveu inconscientemente estas palavras:
“Aqui estou. O senhor[9] contatou-me
em um momento no qual invocações mais exigentes impediam-me de vir, não poderei
demorar-me aqui e nem mesmo responder às questões que o senhor pretendia me
propor. Todavia o obedeci para agradá-lo, e também porque eu mesmo havia
necessidade do senhor; e há muito procurava um meio de entrar em contato com o
seu espírito. Durante minha vida mortal, dei ao senhor alguns ossos que eu
havia retirado do departamento anatômico de Pavia, entre os quais havia uma
rótula de joelho que pertenceu ao corpo de um ex-funcionário da universidade,
que se chamava Pietro Mariani, cujo cadáver eu dissecara arbitrariamente. Já
são onze anos que ele tortura o meu espírito desejando reaver aquele ossinho
inconclusivo[10].
Não cessa de censurar amargamente aquele ato, de me ameaçar e de insistir na
devolução de sua rótula. Eu imploro ao senhor, pela memória talvez não ingrata
que guarda de mim, se ainda conserva consigo aquela rótula, devolva-lhe,
liberte-me deste débito atormentador. Farei que venha ao senhor neste momento o
espírito de Mariani. Responda-o.”
Apavorado com aquela
revelação, respondi que, de fato, eu conservava aquela infeliz rótula de joelho
e que estava contente em poder devolvê-la ao proprietário legítimo, e que,
dessa forma, se não houvesse outro meio, mandasse Mariani a minha presença. Com
isso dito, ou melhor, pensado, senti o meu corpo relaxado, o meu braço mais
livre, a minha mão não estava mais dormente como antes, e compreendi, em uma
palavra, que o espírito do doutor havia partido.
Permaneci outro instante a
esperar. A minha mente estava em um estado de exaltação impossível de definir.
Dentro de alguns minutos,
experimentei novamente os mesmos fenômenos, ainda que menos intensos; e a minha
mão, arrastada pela vontade do espírito, escreveu estas outras palavras:
“O espírito de Pietro
Mariani, ex-funcionário da universidade de Pavia, está diante do senhor, e
reclama a rótula do joelho esquerdo que o senhor mantém consigo indevidamente
há onze anos. Responda-o!”.
A linguagem era mais
concisa e mais enérgica se comparada com a do doutor. Eu respondi o espírito:
“Eu estou totalmente disposto a restituir a Pietro Mariani a rótula de seu
joelho esquerdo, e suplico-lhe primeiramente de perdoar-me dessa posse ilegal;
desejo, porém saber como poderei efetuar a devolução que me é requerida”.
Então minha mão voltou a
escrever:
“Pietro Mariani,
ex-funcionário da universidade de Pavia, irá recuperar ele mesmo sua rótula.”
“Quando?” perguntei eu
apavorado.
E a mão registrou
instantaneamente uma só frase: “Esta noite”.
Aniquilado por aquela
notícia, coberto de um suor cadavérico, apressei-me a exclamar, mudando o tom
de voz em um segundo: “Por caridade... suplico ao senhor... não se incomode...
mandarei eu mesmo... com certeza deve haver outros meios menos
inconvenientes...”. Mal terminara a frase quando percebi, por meio das
sensações já experimentadas, que o espírito de Mariani havia se distanciado, e
que não havia nenhum meio de impedir a sua visita.
É impossível que eu possa
colocar em palavras a angústia das sensações que experimentei naquele momento.
Eu estava em meio a um pânico aterrorizante. Deixei aquela casa enquanto os
relógios da cidade soavam meia-noite: as ruas estavam desertas, as luzes das
janelas apagadas, as chamas dos faróis obscurecidas por um nevoeiro denso e
pesado – tudo me parecia mais sombrio do que de costume. Caminhei por um tempo
sem saber para onde ir: um instinto mais potente do que a minha própria vontade
me afastava da minha residência. Onde obter coragem para seguir em frente? Eu
deveria receber naquela noite a visita de um fantasma: era uma ideia tenebrosa,
uma premonição horrível demais.
Aconteceu então que, por
acaso, vagando, não sei mais por qual rua, encontrei-me diante de uma taverna,
sobre a qual vi escrito em caracteres entalhados na cobertura externa da janela[11],
e iluminados por uma chama interna: “Vinhos nacionais”, e disse seguramente a
mim mesmo: “Vamos entrar, é melhor assim, e não é um mau remédio; procurarei no
vinho aquela coragem que não posso pedir à minha razão”. E tendo me enfiado em
um canto de um salão [12]
subterrâneo qualquer, pedi algumas garrafas de vinho que bebi com avidez,
embora desgostoso com o costume do abuso daquele licor. Obtive o efeito que
desejara. A cada copo bebido o meu temor sumia consideravelmente, os meus
pensamentos se elucidavam, minhas ideias pareciam se reordenar, embora em uma
nova desordem; e pouco a pouco reconquistei de tal forma a minha coragem que ri
sozinho do meu próprio terror, levantei-me, e fui decidido para a minha casa.
Chegando ao meu quarto, um
pouco cambaleante pelo excesso de vinho bebido, acendi a lamparina, despi-me
pela metade, joguei-me na cama, fechei um olho, e depois o outro, e tentei
dormir. Mas foi em vão. Sentia-me entorpecido, rígido, catatônico, impossibilitado
de me movimentar; as cobertas pesavam em cima de mim, e embrulhavam-me e
apertavam-me como se fossem de metal derretido: e durante aquele estágio de
sonolência comecei a ver que fenômenos singulares se cumpriam ao meu redor.
Do pavio da vela que me
parecia ter apagado, e que, no entanto, era uma esteárica pura[13],
elevavam-se espirais de uma fumaça tão grossas e tão escuras, que, acumulando-se
sob o teto, escondiam-no, assumindo a aparência de uma capa pesada de chumbo: A
atmosfera do quarto, que se tornou sufocante em um instante, estava impregnada
de um odor semelhante àquele que exala da carne viva queimada, meus ouvidos
estavam surdos por um zumbido incessante do qual eu não conseguia identificar a
origem, e a rótula de joelho que eu via ali, entre meus papéis, parecia
mover-se e girar sobre a superfície da mesa, como vítima de uma convulsão
estranha e violenta.
Fiquei naquele estado não
sei por quanto tempo: eu não conseguia tirar a minha atenção daquela rótula. Os
meus sentidos, as minhas faculdades, as minhas ideias, tudo estava concentrado
naquela visão, tudo me atraía para ela; eu queria me levantar, descer da cama,
sair, mas não era possível; e a minha desolação atingiu um tal grau que quase
não me assustei quando em um instante se dissipou a fumaça emanada do pavio da
vela, e então vi a cortina da porta subir e aparecer o fantasma esperado.
Não pisquei os olhos nem
por um segundo. Avançando até a metade do quarto, ele se inclinou gentilmente e
disse-me: “Eu sou Pietro Mariani, e vim pegar, como prometido, a minha rótula.”
E visto que o medo fez-me
hesitar em respondê-lo, ele continuou com docilidade: “Me[14] perdoe
se tive que o incomodar no meio da noite... nesta hora... entendo que seja uma
hora incômoda..., mas...”.
– Ó! Não é nada! Imagina! –
o interrompi, tranquilizado por tanta cortesia de sua parte, – pelo contrário
devo agradecer-lhe pela visita... estarei sempre honrado de receber o senhor em
minha casa...
– Agradeço ao senhor por
isso – disse o espectro – mas desejo de qualquer maneira justificar a
insistência com a qual reclamei a minha rótula ao senhor ou ao egrégio doutor
de quem a recebera; observe”.
E assim dizendo, subiu uma
ponta do lençol branco no qual estava envolto, e mostrou-me a tíbia da perna
esquerda ligada ao fêmur, pela ausência da rótula, com uma faixa preta passada
duas ou três vezes na abertura da fíbula, deu alguns passos pelo quarto me
fazendo ver que a falta daquele osso o impedia de caminhar com liberdade.
– Pelos céus! –Disse eu em
um tom de homem mortificado – um digno ex-funcionário da Universidade de Pavia
mancando por minha causa: veja a sua rótula, ali, sobre a mesinha, pegue-a, e a
acomode como puder no seu joelho.”
O espectro curvou-se pela
segunda vez em um gesto de agradecimento, desatou a faixa que unia o fêmur à
tíbia, largou-a sobre a mesa, e, pegando a rótula, começou a ajustá-la em sua
perna.
– Que notícias o senhor
traz do outro mundo? – Perguntei, vendo que a conversa morria durante aquela
sua atividade.
Mas ele não respondeu à
minha pergunta, e exclamou com aspecto entristecido: “essa rótula está muito
deteriorada, o senhor não lhe fez bom uso”.
– Não acredito, – eu disse
– mas será que os seus outros ossos estão mais sólidos do que esse?
Ainda calado, curvou-se
pela terceira vez para uma saudação; e quando estava sobre o limiar da porta,
respondeu fechando-a atrás de si: “Sinta se os meus outros ossos ainda estão
sólidos”.
E pronunciando essas
palavras bateu o pé no chão com tanta violência que todas as paredes tremeram;
e aquele barulho me abalou e… acordei.
Assim que despertei,
compreendi que era a zeladora que batia à porta e dizia: “sou eu, levante-se e
venha abrir a porta.”
– Meu Deus! –Exclamei então
esfregando os olhos com o dorso da mão. – Era tudo um sonho, nada além de um
sonho! Que susto! Que o céu seja louvado…, mas que insensatez! Acreditar no
espiritismo… nos fantasmas...! Coloquei a calça rapidamente, corri para abrir a
porta; e visto que o frio me aconselhava a voltar para debaixo dos lençóis,
aproximei-me da escrivaninha para deixar a carta embaixo do peso-de-papéis…
Mas qual foi o meu terror
quando notei a ausência da rótula e em seu lugar a faixa preta que deixara
Pietro Mariani!
BIBLIOGRAFIA
“AMOR-PRÓPRIO”.
In MICHAELIS, Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova geração, 2005. Disponível em:
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php. Consultado em: 18/02/2020.
HOFFMANN,
E. T. A., O magnetizador. Trad. de Anneliese Mosch. Sintra: Colares Editora, 1997.
TARCHETTI, Igino Ugo. “Un osso di morto”. In Racconti
Fantastici. Milano:
E. Treves & C., 1869. Disponível em: <https://www.liberliber.it/mediateca/libri/t/tarchetti/racconti_fantastici/pdf/tarchetti
_racconti_fantastici.pdf>.
Consultado em: 18/05/2021.
[1]Em primeiro momento, pensamos em traduzir o
trecho “Lascio a chi mi legge l'apprezzamento del fatto inesplicabile che sto
per raccontare.” como “deixo a quem me lê o juízo do fato inexplicável
que estou para contar”, uma vez que o leitor do conto é posicionado pelo
narrador como um juiz que decidirá a veracidade dos fatos narrados, decidimos,
no entanto, utilizar o termo “apreciação”, mantendo, assim, a construção da
tradução em português mais próxima ao termo italiano "apprezzamento",
devido à existência de significação muito semelhante entre as duas línguas, já
que “apreciação”, em português, assim como “aprezzamento” em italiano, é
uma palavra ligada tanto à ação de analisar e valorar quanto ao sentimento de
prazer proporcionado pela observação ou pela experiência.
[2]A oração com o particípio passado “Domiciliatomi
a Pavia”, que possui uma estrutura muito comum no italiano, no português
brasileiro não encontra uma tradução direta. Decidimos, então, usar uma
composição verbal que pudesse abarcar a ideia de temporalidade que a expressão
em italiano possui, optando por “Tendo me mudado”.
[3]Embora, em português, a tradução de “era
professore di patologia e di clinica per l'insegnamento universitario” possa
parecer ambígua devido ao escopo de “para o ensino universitário”, decidimos
mantê-la tal como o original, visto que essa “estranheza” também existe no
texto italiano.
[4]Aqui, a escolha foi feita
levando em conta a frequência, dado que, embora o termo apoplessia seja
muito similar ao termo apoplexia em português, este é muito mais ligado ao
vocabulário médico do que ao uso geral, diferentemente do que ocorre na língua
italiana.
[5]O texto italiano de Tarchetti utiliza em
grande escala o trapassato prossimo, tempo verbal correspondente ao
pretérito mais-que-perfeito em português, uma vez que ambos apontam para uma
ação que ocorreu antes de outra ação passada. No entanto, o uso frequente do
pretérito mais-que-perfeito, seja simples ou composto, provocaria uma
estranheza na leitura do conto. Decidimos, portanto, a fim de diminuir tal
problema e ao mesmo tempo manter a correspondência verbal entre “trapassato prossimo”
e pretérito mais-que-perfeito, utilizar este último apenas em trechos nos
quais a relação temporal entre os tempos verbais fosse crucial ao entendimento
do texto, empregando, em outros trechos, o pretérito perfeito simples.
[6]Pela falta de uma palavra que contemplasse
simultaneamente o sentido de relutância e de nojo que a palavra “repugnante”
possui, decidimos por manter a hesitação do personagem em detrimento do
asco pelos ossos por meio de “relutante”.
[7]O termo “magnetizador” (“magnetizzatore”)
caracteriza na obra uma figura ligada às práticas sobrenaturais. Esse termo faz
referência a uma imagem típica do que, na França do século XIX, como descreve
Todorov (1977), era chamado de “maravilhoso cientista”. Encontramos o mesmo
termo dando, por exemplo, nome à obra “O magnetizador”, de E. T. A. Hoffmann
(1997 [1814]). Ainda segundo Todorov (1977, p.31): “na época do relato
fantástico, o que pertence ao maravilhoso cientista são as histórias nas que
intervém o magnetismo. O magnetismo explica “cientificamente” acontecimentos
sobrenaturais, mas o magnetismo em si depende do sobrenatural”.
[8]: Mantivemos o termo “amor-próprio” utilizado
no conto original ( “L'insistenza del mio amor proprio mi vi aveva spinto
mio malgrado”), pois ele também pode significar orgulho, presunção ou
arrogância, segundo o dicionário Michaelis (2005), acepções mais próximas da
tradução literal do italiano, ainda que o termo tenha assumido uma conotação
muito ligada à literatura de autoajuda, relacionando-se com autocuidado e
autoestima.
[9]A marca de formalidade
usada no conto de Tarchetti é o “voi” arcaico, pronome de segunda pessoa
do plural. Dado que em português não se expressa o registro formal por meio de
pronomes retos, a escolha foi substituí-los por pronomes de tratamento. Usamos
ao longo do texto “senhor” para marcar a relação formal e respeitosa entre os
personagens, exceto quando a repetição poderia causar empecilhos à fluência da
tradução.
[10]A palavra italiana “inconcludente” poderia
ser traduzida em português por “inconcludente” ou “inconclusivo”, escolhemos
nesse caso o último termo, visto que apresenta um tom irônico semelhante ao que
é expresso pelo autor no conto em italiano, além disso, a escolha do termo
também respeitou a frequência de ocorrência na língua de chegada.
[11]Impannata é um tipo de cobertura externa para janelas feita em
papel ou vidro e que pode servir de segunda proteção contra o frio. Devido à
complexidade e à falta de uma palavra com significado similar na língua de
chegada, optamos por resumir o termo que é marcado culturalmente, mas também
temporalmente. Embora seja algo muito específico daquela época, e que em
algumas traduções se opte pelo empréstimo linguístico nesses casos, descartamos
essa possibilidade, pois acreditamos que atravancaria a fluência da tradução.
[12]Visto que o sufixo “-accia” do termo
original “stanzaccia” possui um aspecto pejorativo, mas não define
necessariamente o tamanho físico do espaço, optamos pela combinação dos termos
“salão” e “qualquer” procurando obter o mesmo efeito de sentido.
[13]Esteárica pura é um tipo de vela produzida
com um produto químico que faz com que ela dure maior tempo acesa, por esse
motivo, no conto, o personagem se surpreende com o apagamento precoce da vela.
Decidimos manter a terminologia usada sem maiores explicações para evitar uma
intrusão maior no texto. Ademais, o leitor italiano contemporâneo também
desconheceria essa informação, dessa maneira marcamos o espaçamento temporal e
permitimos que o leitor brasileiro construa com esta tradução a mesma relação
de estranheza que o leitor italiano pode estabelecer com a obra original.
[14] O uso dos pronomes oblíquos átonos na
linguagem coloquial do português brasileiro é usualmente realizado por meio de
próclise, ou seja, a colocação do pronome antes do verbo, as gramáticas da
língua portuguesa, no entanto, condenam o emprego de próclise em algumas
construções. Dessa maneira, escolhemos seguir a prescrição das gramáticas de
língua portuguesa na tradução, no entanto, em determinado momento do conto, o
protagonista destaca que a fala de Pietro Mariani é concisa e enérgica, dessa
forma buscamos por meio da colocação pronominal evidenciar essa diferença entre
o discurso desse personagem e dos demais.
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