La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Primo Levi não perdoa os nazistas, por Aislan Camargo Maciera

 

Em suas obras, declarações e entrevistas, o autor italiano afirmou que jamais perdoou os nazistas. Neste artigo, a tradução de duas declarações do autor, ainda inéditas no Brasil.

 

Survivor - Larry Rivers (1987)

Desde a volta para casa, em outubro de 1945, cerca de nove meses após ser libertado pelo Exército Vermelho de um dos campos do complexo de Auschwitz-Birkenau, Primo Levi assumiu o papel de testemunha. Diferentemente de outros ex deportados e prisioneiros dos campos de concentração e extermínio que preferiram o silêncio, o jovem químico de Turim escolheu outro caminho. Fez do testemunho e da reflexão sobre a experiência vivida um dos objetivos centrais de sua vida, transformando-se em um dos maiores nome da literatura do século XX.

A literatura de Primo Levi, desde o princípio, edificou-se sobre a necessidade de narrar e a necessidade de ser ouvido: “Mas era tanta a necessidade de transmitir a experiência que eu estava vivendo, de dividi-la com outros, de contá-la, enfim, que comecei a fazer isso já lá”[1]. Levi destacou, em muitas de suas entrevistas e em alguns de seus escritos que, ainda no campo, dois sonhos faziam parte da realidade dos prisioneiros. Um deles era com uma comida “gorda, suculenta, cheirosa”; o outro, era o de contar, geralmente a uma pessoa próxima, aquilo que viviam e que estavam presenciando. Em ambos os casos, as ações não se completavam: nos sonhos, não conseguiam nem se alimentar, nem serem ouvidos.

Levi aproxima a necessidade de contar à necessidade de comer, expondo que a “simbologia dos dois sonhos era muito simples”, isto é, “o querer comer e o querer contar estavam no mesmo plano de necessidade básica”[2]. Ele conseguiu contar. Apesar de uma primeira recepção que apresentou diversos obstáculos, em 1947 a editora De Silva publicava a primeira obra do autor, É isto um homem?. O livro havia sido recusado por outras editoras, entre elas a Einaudi, que iria republicá-lo somente em 1958[3]. Evidentemente que a publicação por uma grande e renomada editora como a Einaudi fez com que mais pessoas conhecessem a experiência, o testemunho e as reflexões do autor. Levi foi, definitivamente, ouvido e, a partir daí, ao longo dos anos, foi conseguindo suprir aquelas necessidades que deram origem à sua literatura.

Praticamente até meados da década de 70, a imagem de Primo Levi no ambiente cultural e intelectual italiano era a de um químico, ex partigiano e ex deportado, sobrevivente dos campos de concentração de Auschwitz, que escrevia o seu testemunho e as suas reflexões, presentes em seu primeiro livro e na obra seguinte, A trégua, publicado em 1963. Mesmo após escrever dois volumes de contos fantásticos e de ficção científica – Histórias naturais (1966) e Vício de forma (1971) – a imagem que prevalecia diante do público ainda não era a de um escritor de ofício. Contribuía para isso as próprias declarações do autor. Em entrevista concedida ao periódico Il Giorno, publicada em 7 de agosto de 1963, perguntado sobre como se sentia, “um químico que escrevia, ou um escritor que era químico”, ele responde: “Ah, um químico, que fique bem claro, não me entenda mal. Os dois livros que escrevi, escrevi por acaso”[4].

Nas entrevistas que concede durante a década de 60 e o início da década de 70, faz questão de ressaltar sua identidade “centauresca”. A dualidade evocada pela figura mitológica é a metáfora perfeita para as suas duas metades que ele assume: químico e escritor. Mas é importante ressaltar que, naquele momento, Levi já era reconhecido como uma relevante testemunha da Shoá, e seus dois primeiros livros já tinham atingido sucesso de público e chamado a atenção da crítica. Em 1965, por exemplo, é lançada a edição escolar de A trégua, que passava a fazer parte do ambiente educacional italiano. O mesmo aconteceria com É isto um homem?, em 1973. O contato com os jovens estudantes, a partir daí, ia muito além das palestras e conversas das quais participava nas várias escolas de Turim. Os seus escritos passavam a ser leitura obrigatória para aquele público que tanto o autor desejava atingir[5].

A aposentaria de Levi da indústria química na qual trabalhava ocorre somente em 1975. O autor passa a se dedicar, então, exclusivamente ao ofício de escritor, no mesmo ano em que publica o livro que, até hoje, é considerado por muitos críticos e leitores aquele que mais representa a união entre as chamadas “duas culturas”, entre as duas metades do centauro: A tabela periódica, tida como a melhor obra de divulgação científica do século XX pela Royal Institution, renomada organização britânica que se dedica à educação, investigação e difusão científicas.

 A obra, que seria responsável na década de 80 pelo sucesso internacional de Primo Levi – a partir da recepção nos Estados Unidos – marca também a inserção definitiva do autor no rol dos grandes escritores italianos da segunda metade do século passado. Sua presença nos veículos de imprensa passa a ser muito mais frequente, seja como articulista, seja como entrevistado. Levi assume definitivamente o último papel que lhe coube em vida, o do intelectual engajado, que se colocava ao lado de todos os outros que constituíam a sua identidade. Aumenta significativamente a difusão de suas opiniões e reflexões sobre assuntos ligados não somente à literatura e à Segunda Guerra, mas também à cultura geral, sociedade e política.

É exatamente nesse contexto que, em 1979, um fato curioso ocorre. Na Gazzetta del Popolo, jornal de Turim que circulou até 1983, é publicada a carta de uma leitora. A leitora em questão era uma mãe, cujo filho estava matriculado e frequentava o liceu científico. O filho deveria produzir uma resenha crítica sobre o primeiro livro de Levi, É isto um homem?, e a mãe aconselha o estudante a telefonar para o autor do livro, procurando o número no catálogo telefônico da cidade. O rapaz não acata a sugestão da mãe que, então, escreve para a seção de cartas dos leitores do jornal, solicitando o auxílio do autor. A pergunta foi vista por Levi, que a respondeu por escrito, demonstrando a costumeira disponibilidade que sempre teve com os jovens.

A tradução apresentada abaixo, inédita para os leitores brasileiros, está disponível em sua versão original no terceiro volume das obras completas de Primo Levi, organizado pelo crítico Marco Belpoliti, e publicado na Itália em 2018[6]:

 

“Eu não perdoo os nazistas”, de Michele Florio, 21 de janeiro de 1979.

“Senhor jornalista –, diz Maria Vinciguerra, – meu filho Massimiliano, que frequenta a primeira série do liceu científico, deve resenhar É isto um homem?. Sugeri, depois da leitura desse terrificante testemunho, que telefonasse diretamente a Primo Levi, mas nem ele e nem eu tivemos coragem. Queremos saber do escritor o que ele sente, mesmo após tantos anos de distância, quando de repente ouve falar – em torno de si – a dura língua alemã. Conseguiu perdoar? Sei que é um assunto tremendamente difícil, tenho até vergonha de fazer uma pergunta tão dolorosa. O senhor pode me ajudar?

PS: Parabéns pelo seu último livro, A chave estrela”.

 

Responde Primo Levi: “Não, ouvindo falar alemão não sinto nem repulsa, nem angústia: aconteceu comigo, logo depois da Liberação, mas me esforcei para sufocar em mim esses sentimentos, e consegui. Sei que outros ex deportados sentem isso; os compreendo, mas não os aprovo. A meu ver, são ‘reflexos condicionados’: acredito que seja injusto enxergar o alemão somente como a língua do nazismo. Era também a língua de Goethe e de Heine, e (por que não?) de Freud, Marx, Kafka e Einstein. Eu a aprendi no Lager: E daí? Porque deveria esquecê-la, privando-me assim de uma riqueza duramente adquirida, e de um instrumento de cultura e conhecimento?    

A questão do perdão é difícil. Não perdoei nenhum dos verdadeiros culpados, nem estou disposto agora, ou no futuro, a perdoar alguém, a menos que tenha demonstrado (com fatos: não com palavras, e não tarde demais) de ter tomado consciência das culpas e dos erros do fascismo, nosso e estrangeiro, de tê-los repudiado, ao invés de negá-los, exatamente como muitos fazem atualmente. Neste caso, sim, eu, não cristão, estou disposto a seguir o preceito judeu e cristão de perdoar o meu inimigo: mas um inimigo que se arrepende deixou de ser um inimigo”.

 

A questão do perdão foi, muitas vezes, suscitada pelos interlocutores de Levi, mas o autor jamais foi condescendente com os horrores praticados pelos nazistas. Em entrevista ao jornalista, crítico e escritor Giorgio Calcagno, publicada no suplemento literário “Tuttolibri” do jornal La Stampa, em 26 de julho de 1986, Levi afirma que “entender não é perdoar”[7]:

 

Perdoar não é um verbo meu. É imposto a mim, porque todas as cartas que recebo, especialmente de leitores jovens e, sobretudo, católicos, trazem esse tema. Perguntam-me se perdoei. Eu acredito que sou, a meu modo, um homem justo. Posso perdoar um homem e não outro; sinto-me capaz de julgar apenas caso a caso. Se tivesse diante de mim Eichman, o teria condenado à morte. (...) Eu não sou um crente, para mim não há um sentido preciso o “te absolvo”. Acredito que ninguém, nem mesmo um sacerdote, tenha o poder de condenar ou absolver. Quem comete um crime deve pagá-lo, a não ser que se arrependa. Mas não com palavras. Não me contento com o arrependimento verbal. Sou disposto a absolver quem tenha demonstrado através de fatos que não é mais o homem de antes. E não muito tarde.

 

A ideia de perdão apresentada na resposta à mãe do estudante em 1979, repete-se na entrevista de 1986. É o claro exemplo de como as palavras de Primo Levi têm força, representam o seu estilo conciso, baseado na clareza, e trazem exatidão. Sua linguagem é clara, a fim de satisfazer as necessidades básicas de sua literatura: a de contar e a de ser ouvido. As palavras do autor cristalizam-se, e expõem, de forma convicta seu posicionamento diante da desumanização e da ofensa sofrida como prisioneiro dos nazistas.

Em seu último livro, Os afogados e os sobreviventes, no capítulo intitulado “Intelectual em Auschwitz”, Levi fala do filósofo Jean Améry, pseudônimo de Hans Mayer, também ex deportado, sobrevivente, seu companheiro de barraca no Lager de Auschwitz. No trecho, ele pondera e reflete sobre o período como prisioneiro dos nazistas – assim como faz em todo o livro – dando destaque ao debate em relação às ideias de Améry. Apesar de não terem mais se visto após a liberação, trocaram algumas cartas, e o filósofo, em correspondência a uma amiga em comum, definiu Levi como “o perdoador”. A esse respeito, o autor italiano escreve[8]:

 

(...) não considero nem uma ofensa nem um elogio, mas uma imprecisão. Não tenho a tendência a perdoar, jamais perdoei a nenhum de nossos inimigos de então nem tenho vontade de perdoar a seus imitadores na Argélia, no Vietnã, na União Soviética, no Chile, na Argentina, no Camboja, na África do Sul, porque não conheço atos humanos que possam cancelar um crime; exijo justiça, mas não sou capaz, pessoalmente, de brigar nem de dar o troco.

 

A sua personalidade pacata, a lucidez ao falar de sua experiência e a forma destacada através da qual a expõe talvez tenham trazido à tona a falsa impressão do perdão ou da resignação. Não dão a ideia de uma condenação inapelável. Mas, categoricamente, o autor afirma a impossibilidade de perdoar. E, mais do que isso, expõe a dureza da condenação, sobretudo quando se refere àqueles que foram coniventes com o fascismo na Itália e com o nazismo na Alemanha. Levi, definitivamente, não é um “perdoador”, mas um autor que, através de uma linguagem comedida e destacada, condena os crimes cometidos não só durante a Segunda Guerra, mas que continuaram a ser cometidos posteriormente, em diferentes contextos. A voz condenatória de Levi ressoa sempre que, nessas diferentes realidades culturais, sociais e políticas, os horrores do nazifascismo parecem querer despertar.


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Como citar: MACIERA, Aislan Camargo. "Primo Levi não perdoa os nazistas". In "Literatura Italiana Traduzida", v.1., n.8, ago. 2020. 

Disponível em  https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/212023

 



[1] LEVI, Primo. A assimetria e a vida. Trad. Ivone Benedetti. São Paulo: Unesp, 2016, p. 169.
[2] LEVI, Primo. Op. cit, 2016, p. 170.
[3] A respeito das recusas enfrentadas pelo autor antes da publicação de seu primeiro livro, indico dois artigos, ambos de minha autoria: “O primeiro testemunho de Primo Levi”, publicado nesta mesma revista (disponível em https://literatura-italiana.blogspot.com/2018/10/o-primeiro-testemunho-de-primo-levi.html e https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209919); e “A gênese do livro primogênito de Primo Levi”, publicado na Revista de Letras da Unesp, disponível em https://periodicos.fclar.unesp.br/letras/article/view/13438.
[4] LEVI, Primo. Opere complete. Vol. III. Conversazioni, interviste, dichiarazioni. Torino: Einaudi, 2018, p. 10, tradução minha.
 [5] Em 1976, Levi adiciona à edição escolar de É isto um homem? um apêndice com as perguntas mais frequentes feitas a ele pelos jovens estudantes com os quais se encontrava, e suas respectivas respostas. A tradução de um trecho desse apêndice, não disponível na edição brasileira da obra e ainda inédito em português, foi feita por Helena Bressan Carminati, e pode ser consultada nesta mesma revista: https://literatura-italiana.blogspot.com/2020/05/traducao-de-trechos-do-apendice-e-isto.html e https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209820.
[6] LEVI, Primo. Op. cit., 2018, p. 1115, tradução minha.
[7] LEVI, Primo. Op. cit., 2018, p. 613, tradução minha.
[8] LEVI, Primo Os afogados e os sobreviventes. Trad. Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016b, p. 111.