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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Enrico Testa
Luiza Faccio
poesia contemporânea
em
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Foto: Dino Ignani |
Enrico Testa[2] (Gênova,
1956), é professor, ensaísta e poeta italiano. Sendo a sua primeira coletânea
de 1988, possui seis livros de poesia publicados até o momento. Dentre suas
obras, alguns temas se destacam, tais como a presença dos elementos da
natureza, o sonho, a sombra, aspectos do cotidiano como: diálogos, ambientes da
casa, da cidade, da rua; bem como a temática da morte, da memória e da relação
com aqueles já falecidos.
A morte e a relação com a memória é
tema que segue o poeta e seus versos, estando presentes desde sua primeira
coletânea Le faticose attese, de
1988, até Cairn, de 2018[3]. A
morte é abordada em seus versos por diferentes aspectos em suas coletâneas:
através do contato com o corpo morto, através da memória despertada por um
objeto e até mesmo a tentativa de guardar a lembrança daqueles que já faleceram
através do acúmulo de objetos antes pertencentes a eles
ou que guardam uma memória. A relação de diálogo entre morto e vivente
não é facilmente distanciável e esquecida, uma vez que este que morreu se faz
constantemente presente naquele que permanece vivo como uma sombra que
acompanha o sobrevivente (aqui sobrevivente entendido como alguém que permanece
vivo e experiência, vivência a morte de outrem). A sombra, imagem usada para
pensar esse permanente contato entre esses dois mundos: vivos e mortos, se faz
constante e recorrente nos poemas de Testa, principalmente nas coletâneas mais
recentes.
São muitos os poemas que poderiam
ser trazidos aqui para uma breve análise, porém nos manteremos apenas com um deles
para uma leitura de como a morte pode ser vista e lida na poesia de Testa. O
poema escolhido é de Cairn[4],
sua mais recente publicação. A obra possui alguns de seus poemas traduzidos
para o português em uma antologia intitulada Jardim de sarças[5]. Em suas páginas, para além
da sombra e da memória, são descritos ou aludidos hábitos, rituais, costumes
diante desse momento de perda, diante do corpo agora sem vida, mas que ainda é
a ligação entre aquilo que se foi e aquilo que fica, ou daquilo que está desvanecendo,
está indo embora. O poeta, em Cairn, se mostra mais crítico ao abordar
alguns temas, com uma posição de maior reflexão acerca das relações que moldam
e cercam a sociedade, e uma crítica mais forte a posições políticas e das
figuras que se encontram em certo comodismo e conformismo, em um tom um pouco
mais duro e firme. Com efeito, a invectiva aparece de forma mais evidente e
domina certos tons.
O
título da coletânea aponta, como seus versos, para a morte, que continua a
marcar presença. Como bem assinalam as resenhas de Eraldo Affinati[6],
“‘Cairn’, lo sguardo e la forza lancinante dei versi di Enrico Testa”, de 26 de
Março de 2018 para o jornal Romasette,
a de Lorenzo Antonazzo[7] “Segnavia
e segnavita: ‘Cairn’ di Enrico Testa”, disponibilizada pelo Centro di Ricerca
da Universidade de Salerno e a de Patricia Peterle[8] “Enrico
Testa: fuori da ogni dove” na Revista Alfabeta, a palavra ‘cairn’ possui já em
sua origem e significado uma relação com a morte. De origem gaélica, cairn, tem diferentes significados. O
mais literal é o que indica ser um “amontoado de pedras”. Porém, em algumas
culturas ancestrais, era o nome dado a túmulos feitos de pequenas pedras
soltas, onde indicavam o local da morte e onde foi enterrado o morto, bem como
uma homenagem a este. Em tempos modernos é também uma forma de referenciar um
caminho a ser seguido, se localizando normalmente em montanhas. Na obra de
Testa, pode-se fazer uma leitura a partir da imagem da sepultura, bem como da
indicação do caminho, uma vez que o próprio escrever, no sentido figurativo,
pode ser esse cairn, cada poema uma
pedra, que carrega uma memória, uma experiência, que mostra um caminho, e tenta
ainda, não dizer adeus às lembranças.
No poema “quando entrò il
lavacadaveri”, da primeira seção “Ora e qui”, a imagem de um dos primeiros
rituais após a morte, antes da cerimônia fúnebre, o da lavagem e preparação do
corpo é trazida para o centro do poema. O texto se apresenta em uma única
estrofe de 13 versos, e se divide em dois momentos: o primeiro, da visão do
“lavador de corpos” ou, no nome técnico em português, do tanatopraxista, que
entra neste ambiente, e o impacto que a imagem causa: um estranho para lavar o
corpo, mesmo sendo um profissional; e o segundo, o de tomar para si a tarefa de
cuidar desse corpo pela última vez, na tentativa de preservar o que está indo
embora. Sem dúvida alguma, a relação com o elemento arcaico aqui é mais do que
uma presença, através da sensação de estranhamento ao dar aquele corpo para um
desconhecido.
“quando entrò il lavacadaveri
(quanti pesanti blu
lungo camice verde in plastica deforme
mascherina protettiva
come a trattare un’appestata)
gli strappai di mano,
nella luce accecante dell’acciaio,
gli strumenti del suo lavoro
e lo cacciai via urlando.
Poi per l’ultima volta
mi diedi con calma
alla cura santa del tuo corpo,
riflesso nell’ombra della mia salma”[9]
Há neste lavar do corpo, por parte
do “lavacadaveri” uma atitude profissional, vista aqui como um comportamento
frio e mecânico, uma vez que não existe qualquer ligação com o morto. Esta
situação, causa no observador, um impacto, como se ao fazer o seu serviço, o
tanatopraxista estivesse extirpando algo daquele corpo, lavando também as suas
memórias. Ou ainda, pode-se pensar que ao tocar e preparar o corpo para o
funeral, o tanatopraxista estivesse “roubando” algo que não lhe pertencesse,
mesmo tendo sido contratado para aquele serviço e sendo ele um profissional.
Tal cena gera por si só uma reação violenta por parte do “eu”, que, por sua
vez, quer proteger aquele corpo e o que ele representa. Daí, a reação violenta
(“gli strappai di mano”) que suspende o trabalho do profissional e o afasta
daquele seu objeto de trabalho. Na verdade, este é exatamente o problema: o
fato de o corpo representar simplesmente um objeto, para o tanatopraxista ele é
apenas mais um, não possui uma história. Todo o cuidado e calma com os quais o
“eu” depois se aproxima do corpo ali exposto fazem parte de um conjunto de não
ditos, mas de vivências que os ligam. Há, portanto, uma relação que é
alimentada e recuperada por meio dessa espécie de ritual de despedida e de
contato com o morto. A ligação entre esses dois mundos (dos vivos e dos mortos)
acontece, neste poema, através do corpo, sendo ele a última conexão física e
material, que ocorre de forma direta com aquele que faleceu. Depois desse adeus
“final”, e aqui o “final” está entre aspas pois é um adeus ao corpo, ao físico,
este permanece costurado àquilo que fica (vivo) através então da sombra: “alla
cura santa del tuo corpo, / riflesso nell’ombra della mia salma”, o corpo morto
refletido na sombra do corpo vivo, ou seja, essa sombra como bagagem daquilo
que já não está mais presente, e a sombra do corpo morto que reflete na “salma”
nos restos mortais daquele que cuida do morto, isto é, ver na morte do outro a
sua própria, ficando então esta relação entre os dois. Assim como o costurar e
manter vivo pela memória e pelos objetos que despertam sua lembrança. Há certa
tradição, quando não se deseja mais manter um vínculo com alguém, de se
desfazer de todos os objetos que lembram aquela pessoa, como se com esse gesto,
fosse possível apagar todas as memórias que se tem dela. Aqui, tem-se o
movimento justamente contrário, de preservar o máximo de objetos possíveis para
que essa pessoa não se apague, ou seja esquecida, e neste poema da lavagem do
corpo isso se dá no cuidado do corpo, também marcado como algo físico que não
se deseja abrir mão.
Essa tentativa de conservar uma
memória e uma relação com o outro, se dá ao longo de toda a trajetória poética
de Testa, que pode ser percebida não só através de suas coletâneas poéticas mas
também em seus textos ensaísticos, como por exemplo Per interposta persona. Lingua e poesia nel secondo Novecento (Roma:
Bulzoni, 1999). Há nos seus versos uma busca por esse outro, que se faz
presente de diversas maneiras, seja pela sombra, imagem que está presente
principalmente em Ablativo, que
representa também a morte, que acompanha constantemente e está indissociável
daquele que permanece vivo, seja por aquilo que no cotidiano desperte e
mantenha essa ligação entre passado e presente, entre vivo e morto. A relação é
a coluna de sua produção poética e a partir delas outros temas se ligam, tais
como a memória, a morte, as ações cotidianas, a natureza, a velhice, a viagem e
o sonho.
Como citar: FACCIO, Luiza. "A relação com a morte na poesia de Enrico Testa: análise de um poema". In "Literatura Italiana Traduzida", v. 1, n. 10, out. 2020.
Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/ handle/123456789/217597
[1] IGNANI,
Dino. Disponível em:http://www.dinoignani.net/enrico_testa.html. Acesso em 29 jun. 2020.
[2] Enrico Testa
é já um autor bastante citado na Revista de Literatura Italiana Traduzida,
sendo relevante também uma leitura dos textos aqui publicados para um panorama
maior sobre suas obras e poemas: FACCIO, Luiza. Páscoa de Neve, Enrico Testa. Disponível: https://literatura-italiana.blogspot.com/2018/08/pascoa-de-neve-enrico-testa.html. Acesso em 25 de jul. 2020; FACCIO, Luiza. Questionamentos na poesia de Enrico Testa.
Disponível em: https://literatura-italiana.blogspot.com/2018/11/questionamentos-na-poesia-de-enrico.html. Acesso em 25 de jul. 2020; FACCIO, Luiza. Conhecendo Ablativo de Enrico Testa.
Disponível em: https://literatura-italiana.blogspot.com/2018/04/conhecendo-ablativo-de-enrico-testa.html. Acesso em 25 de jul. 2020.
[3] Sobre a
temática da relação na poesia de Enrico Testa, cf. FACCIO, Luiza. O contato com o outro na poesia de Enrico
Testa. Dissertação (Mestrado em Literatura) - Pós-Graduação em Literatura,
Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, p. 137, 2020; FACCIO,
Luiza. “Quadretti di genere”: una lettura di Ablativo. Revista
Mosaico, Rio de Janeiro, ano XIII, n. 198,
p. 34-37, jul. 2020.
[4]Cf. PETERLE, Patricia. Enrico Testa -
Fuori da ogni dove. Revista
Literatura Italiana Traduzida.
Disponível em: https://literatura-italiana.blogspot.com/2018/07/enrico-testa-fuori-da-ogni-dove.html. Acesso em 25 de jul. 2020.
[5] TESTA,
Enrico. Jardim de sarças. Traduzido
por Patricia Peterle, Andrea Santurbano e Luiza Faccio. Rio de Janeiro: Editora
7Letras, 2019. O livro traz seis poemas de Cairn
e quatro poemas inéditos, sendo eles: “O jardim”, “A queda do céu”, “Runas”
e “Grades”.
[6] Cf. AFFINATI, Eraldo. “Cairn”, lo sguardo e la forza lancinante
dei versi di Enrico Testa. Disponível
em: https://www.romasette.it/cairn-lo-sguardo-e-la-forza-lancinante-dei-versi-di-enrico-testa. Acesso em: 08 fev. 2020.
[7] Cf. ANTONAZZO, Lorenzo. «Segnavia e segnavita»: "Cairn" di
Enrico Testa. Disponível em: https://www.centropens.eu/archivio/item/156-segnavia-e-segnavita-cairn-di-enrico-testa. Acesso em: 02 fev. 2020.
[8] Cf. PETERLE, Patricia. Enrico Testa, fuori da ogni dove. Revista Alfabeta, Milano, 2018. Disponível em: https://www.alfabeta2.it/2018/07/08/enrico-testa-fuori-da-ogni-dove/. Acesso em 15 fev. 2020.
[9] TESTA,
Enrico. Cairn. Torino: Giulio Einaudi
Editore, 2018, p. 84.
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