La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

A relação com a morte na poesia de Enrico Testa: análise de um poema, por Luiza Faccio

 


Foto: Dino Ignani


 
 

Enrico Testa[2] (Gênova, 1956), é professor, ensaísta e poeta italiano. Sendo a sua primeira coletânea de 1988, possui seis livros de poesia publicados até o momento. Dentre suas obras, alguns temas se destacam, tais como a presença dos elementos da natureza, o sonho, a sombra, aspectos do cotidiano como: diálogos, ambientes da casa, da cidade, da rua; bem como a temática da morte, da memória e da relação com aqueles já falecidos.
A morte e a relação com a memória é tema que segue o poeta e seus versos, estando presentes desde sua primeira coletânea Le faticose attese, de 1988, até Cairn, de 2018[3]. A morte é abordada em seus versos por diferentes aspectos em suas coletâneas: através do contato com o corpo morto, através da memória despertada por um objeto e até mesmo a tentativa de guardar a lembrança daqueles que já faleceram através do acúmulo de objetos antes pertencentes a eles ou que guardam uma memória. A relação de diálogo entre morto e vivente não é facilmente distanciável e esquecida, uma vez que este que morreu se faz constantemente presente naquele que permanece vivo como uma sombra que acompanha o sobrevivente (aqui sobrevivente entendido como alguém que permanece vivo e experiência, vivência a morte de outrem). A sombra, imagem usada para pensar esse permanente contato entre esses dois mundos: vivos e mortos, se faz constante e recorrente nos poemas de Testa, principalmente nas coletâneas mais recentes.
São muitos os poemas que poderiam ser trazidos aqui para uma breve análise, porém nos manteremos apenas com um deles para uma leitura de como a morte pode ser vista e lida na poesia de Testa. O poema escolhido é de Cairn[4], sua mais recente publicação. A obra possui alguns de seus poemas traduzidos para o português em uma antologia intitulada Jardim de sarças[5]. Em suas páginas, para além da sombra e da memória, são descritos ou aludidos hábitos, rituais, costumes diante desse momento de perda, diante do corpo agora sem vida, mas que ainda é a ligação entre aquilo que se foi e aquilo que fica, ou daquilo que está desvanecendo, está indo embora. O poeta, em Cairn, se mostra mais crítico ao abordar alguns temas, com uma posição de maior reflexão acerca das relações que moldam e cercam a sociedade, e uma crítica mais forte a posições políticas e das figuras que se encontram em certo comodismo e conformismo, em um tom um pouco mais duro e firme. Com efeito, a invectiva aparece de forma mais evidente e domina certos tons.
O título da coletânea aponta, como seus versos, para a morte, que continua a marcar presença. Como bem assinalam as resenhas de Eraldo Affinati[6], “‘Cairn’, lo sguardo e la forza lancinante dei versi di Enrico Testa”, de 26 de Março de 2018 para o jornal Romasette, a de Lorenzo Antonazzo[7] “Segnavia e segnavita: ‘Cairn’ di Enrico Testa”, disponibilizada pelo Centro di Ricerca da Universidade de Salerno e a de Patricia Peterle[8] “Enrico Testa: fuori da ogni dove” na Revista Alfabeta, a palavra ‘cairn’ possui já em sua origem e significado uma relação com a morte. De origem gaélica, cairn, tem diferentes significados. O mais literal é o que indica ser um “amontoado de pedras”. Porém, em algumas culturas ancestrais, era o nome dado a túmulos feitos de pequenas pedras soltas, onde indicavam o local da morte e onde foi enterrado o morto, bem como uma homenagem a este. Em tempos modernos é também uma forma de referenciar um caminho a ser seguido, se localizando normalmente em montanhas. Na obra de Testa, pode-se fazer uma leitura a partir da imagem da sepultura, bem como da indicação do caminho, uma vez que o próprio escrever, no sentido figurativo, pode ser esse cairn, cada poema uma pedra, que carrega uma memória, uma experiência, que mostra um caminho, e tenta ainda, não dizer adeus às lembranças.

No poema “quando entrò il lavacadaveri”, da primeira seção “Ora e qui”, a imagem de um dos primeiros rituais após a morte, antes da cerimônia fúnebre, o da lavagem e preparação do corpo é trazida para o centro do poema. O texto se apresenta em uma única estrofe de 13 versos, e se divide em dois momentos: o primeiro, da visão do “lavador de corpos” ou, no nome técnico em português, do tanatopraxista, que entra neste ambiente, e o impacto que a imagem causa: um estranho para lavar o corpo, mesmo sendo um profissional; e o segundo, o de tomar para si a tarefa de cuidar desse corpo pela última vez, na tentativa de preservar o que está indo embora. Sem dúvida alguma, a relação com o elemento arcaico aqui é mais do que uma presença, através da sensação de estranhamento ao dar aquele corpo para um desconhecido.

 

“quando entrò il lavacadaveri
(quanti pesanti blu
lungo camice verde in plastica deforme
mascherina protettiva
come a trattare un’appestata)
gli strappai di mano,
nella luce accecante dell’acciaio,
gli strumenti del suo lavoro
e lo cacciai via urlando.
Poi per l’ultima volta
mi diedi con calma
alla cura santa del tuo corpo,
riflesso nell’ombra della mia salma”[9]

                                                                                                         

Há neste lavar do corpo, por parte do “lavacadaveri” uma atitude profissional, vista aqui como um comportamento frio e mecânico, uma vez que não existe qualquer ligação com o morto. Esta situação, causa no observador, um impacto, como se ao fazer o seu serviço, o tanatopraxista estivesse extirpando algo daquele corpo, lavando também as suas memórias. Ou ainda, pode-se pensar que ao tocar e preparar o corpo para o funeral, o tanatopraxista estivesse “roubando” algo que não lhe pertencesse, mesmo tendo sido contratado para aquele serviço e sendo ele um profissional. Tal cena gera por si só uma reação violenta por parte do “eu”, que, por sua vez, quer proteger aquele corpo e o que ele representa. Daí, a reação violenta (“gli strappai di mano”) que suspende o trabalho do profissional e o afasta daquele seu objeto de trabalho. Na verdade, este é exatamente o problema: o fato de o corpo representar simplesmente um objeto, para o tanatopraxista ele é apenas mais um, não possui uma história. Todo o cuidado e calma com os quais o “eu” depois se aproxima do corpo ali exposto fazem parte de um conjunto de não ditos, mas de vivências que os ligam. Há, portanto, uma relação que é alimentada e recuperada por meio dessa espécie de ritual de despedida e de contato com o morto. A ligação entre esses dois mundos (dos vivos e dos mortos) acontece, neste poema, através do corpo, sendo ele a última conexão física e material, que ocorre de forma direta com aquele que faleceu. Depois desse adeus “final”, e aqui o “final” está entre aspas pois é um adeus ao corpo, ao físico, este permanece costurado àquilo que fica (vivo) através então da sombra: “alla cura santa del tuo corpo, / riflesso nell’ombra della mia salma”, o corpo morto refletido na sombra do corpo vivo, ou seja, essa sombra como bagagem daquilo que já não está mais presente, e a sombra do corpo morto que reflete na “salma” nos restos mortais daquele que cuida do morto, isto é, ver na morte do outro a sua própria, ficando então esta relação entre os dois. Assim como o costurar e manter vivo pela memória e pelos objetos que despertam sua lembrança. Há certa tradição, quando não se deseja mais manter um vínculo com alguém, de se desfazer de todos os objetos que lembram aquela pessoa, como se com esse gesto, fosse possível apagar todas as memórias que se tem dela. Aqui, tem-se o movimento justamente contrário, de preservar o máximo de objetos possíveis para que essa pessoa não se apague, ou seja esquecida, e neste poema da lavagem do corpo isso se dá no cuidado do corpo, também marcado como algo físico que não se deseja abrir mão. 
Essa tentativa de conservar uma memória e uma relação com o outro, se dá ao longo de toda a trajetória poética de Testa, que pode ser percebida não só através de suas coletâneas poéticas mas também em seus textos ensaísticos, como por exemplo Per interposta persona. Lingua e poesia nel secondo Novecento (Roma: Bulzoni, 1999). Há nos seus versos uma busca por esse outro, que se faz presente de diversas maneiras, seja pela sombra, imagem que está presente principalmente em Ablativo, que representa também a morte, que acompanha constantemente e está indissociável daquele que permanece vivo, seja por aquilo que no cotidiano desperte e mantenha essa ligação entre passado e presente, entre vivo e morto. A relação é a coluna de sua produção poética e a partir delas outros temas se ligam, tais como a memória, a morte, as ações cotidianas, a natureza, a velhice, a viagem e o sonho.

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Como citar: FACCIO, Luiza. "A relação com a morte na poesia de Enrico Testa: análise de um poema". In "Literatura Italiana Traduzida", v. 1, n. 10, out. 2020. 

Disponível emhttps://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/217597

 


[1] IGNANI, Dino. Disponível em:http://www.dinoignani.net/enrico_testa.html. Acesso em 29 jun. 2020.
[2] Enrico Testa é já um autor bastante citado na Revista de Literatura Italiana Traduzida, sendo relevante também uma leitura dos textos aqui publicados para um panorama maior sobre suas obras e poemas: FACCIO, Luiza. Páscoa de Neve, Enrico Testa. Disponível: https://literatura-italiana.blogspot.com/2018/08/pascoa-de-neve-enrico-testa.html. Acesso em 25 de jul. 2020; FACCIO, Luiza. Questionamentos na poesia de Enrico Testa. Disponível em: https://literatura-italiana.blogspot.com/2018/11/questionamentos-na-poesia-de-enrico.html. Acesso em 25 de jul. 2020; FACCIO, Luiza. Conhecendo Ablativo de Enrico Testa. Disponível em: https://literatura-italiana.blogspot.com/2018/04/conhecendo-ablativo-de-enrico-testa.html. Acesso em 25 de jul. 2020.
[3] Sobre a temática da relação na poesia de Enrico Testa, cf. FACCIO, Luiza. O contato com o outro na poesia de Enrico Testa. Dissertação (Mestrado em Literatura) - Pós-Graduação em Literatura, Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, p. 137, 2020; FACCIO, Luiza. “Quadretti di genere”: una lettura di Ablativo. Revista Mosaico, Rio de Janeiro, ano XIII, n. 198, p. 34-37, jul. 2020.
[4]Cf. PETERLE, Patricia. Enrico Testa - Fuori da ogni dove. Revista Literatura Italiana Traduzida. Disponível em: https://literatura-italiana.blogspot.com/2018/07/enrico-testa-fuori-da-ogni-dove.html. Acesso em 25 de jul. 2020.
[5] TESTA, Enrico. Jardim de sarças. Traduzido por Patricia Peterle, Andrea Santurbano e Luiza Faccio. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2019. O livro traz seis poemas de Cairn e quatro poemas inéditos, sendo eles: “O jardim”, “A queda do céu”, “Runas” e “Grades”.
[6] Cf. AFFINATI, Eraldo. “Cairn”, lo sguardo e la forza lancinante dei versi di Enrico Testa. Disponível em: https://www.romasette.it/cairn-lo-sguardo-e-la-forza-lancinante-dei-versi-di-enrico-testa. Acesso em: 08 fev. 2020.
[7] Cf. ANTONAZZO, Lorenzo. «Segnavia e segnavita»: "Cairn" di Enrico Testa. Disponível em: https://www.centropens.eu/archivio/item/156-segnavia-e-segnavita-cairn-di-enrico-testa. Acesso em: 02 fev. 2020.
[8] Cf. PETERLE, Patricia. Enrico Testa, fuori da ogni dove. Revista Alfabeta, Milano, 2018. Disponível em: https://www.alfabeta2.it/2018/07/08/enrico-testa-fuori-da-ogni-dove/. Acesso em 15 fev. 2020.
[9] TESTA, Enrico. Cairn. Torino: Giulio Einaudi Editore, 2018, p. 84.